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A figueira e o bagre

OESP, Economia, p. B2
Autor: MING, Celso
24 de Abr de 2007

A figueira e o bagre

Celso Ming

Para aplacar a fome, Jesus Cristo procurou frutos numa figueira carregada de folhas. Como não era a estação dos figos, não encontrou o que queria. Apesar da justificativa a favor da árvore, Jesus não gostou da falta de frutos e amaldiçoou a figueira. No dia seguinte, ela apareceu seca 'até as raízes'. É o que conta o evangelista Marcos (cap. 11, vers. 12 e seguintes).

Alguns ecologistas entendem que o uso de poderes divinos para matar uma árvore é um despropósito. E maior despropósito ainda é exigir que uma árvore tenha um comportamento inadequado (dar frutos fora do seu ciclo), apesar da propaganda enganosa proporcionada pelo viço das folhas. Por mais que exegetas e hermeneutas insistam no caráter simbólico do texto, esses ambientalistas questionam a atitude ecologicamente incorreta de Jesus.

Na semana passada, o presidente Lula amaldiçoou o bagre, cuja trajetória aquática está atrasando a construção das hidrelétricas do Rio Madeira. O Ibama não despacha licenciamento ambiental para as obras porque seus técnicos não sabem como garantir a migração dos peixes. Como ainda não obteve poderes divinos, embora às vezes aja como se os tivesse, Lula ainda não acabou com o bagre. Deve faltar pouco.

Não há projeto de desenvolvimento que não brigue com os ambientalistas. Construir estradas, pontes, portos, poços de petróleo, a expansão da agricultura ou um projeto de combate à seca, como a transposição do São Francisco, tem impacto ambiental. Não há modo de gerar energia em escala que não produza danos à natureza. Disso não escapa nem a energia eólica, porque os aparentemente inofensivos cata-ventos causam carnificina cada vez que passarinhos distraídos ou morcegos entram em rota de colisão com suas pás giratórias.

Se o nível atual de exigências impostas pelos ambientalistas estivesse em vigor há 40 anos, a maioria das hidrelétricas brasileiras não teria sido construída. A barragem de Itaipu sepultou sob suas águas as cataratas de Sete Quedas. As represas ao longo dos Rios Tietê, Paraná e Paranapanema inundaram milhares de quilômetros quadrados com sua enorme biodiversidade.

A ministra Marina Silva chegou a dizer que é preciso preservar o sustento de comunidades ribeirinhas que tiram proveito da pesca. Fosse só por isso, seria mais barato adiantar para essa gente por, digamos, 20 anos, o produto da pesca artesanal do que atrasar as obras. Mas o Ibama parece mais interessado no futuro dos bagres do que no suprimento energético do País.

Se o problema é o futuro do bagre, a solução também parece fácil. Bastaria construir canais nas barragens que garantissem a migração, procedimento normal em obras desse tipo. Mas o problema é bem mais amplo. Falta quem decida e toque as coisas. O problema é de gerenciamento.

Em tese, ninguém é contra: é preciso manter o equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental. Mas não há critério objetivo para definir o que seja esse equilíbrio. E, na falta desse critério, só há uma saída: a decisão tem de ser política e tem de ser do governo. Amaldiçoado ou não, o bagre está mesmo no colo do presidente Lula.

Celso Ming, celso.ming@grupoestado.com.br

OESP, 24/04/2007, Economia, p. B2

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