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Festa para espíritos iluminados

JB, País, p. A4
29 de Ago de 2005

Festa para espíritos iluminados
Quarup evoca tradições milenares dos índios no Xingu

Paulo de Tarso Lyra
Enviado especial

O sol começa a esconder-se no horizonte, por trás das ocas e da pista de pouso dos bimotores da Funai e da Polícia Federal. O Parque Nacional do Xingu se enche de cores, danças, ritos, gritos, lamentos, choros. É o Quarup: dia em que os índios rezam seus mortos e, num ritual sagrado, pedem que os espíritos deixem o mundo material e subam definitivamente ao céu.

Neste 25 de agosto, quinta-feira, um branco, índio de coração e alma, está entre os homenageados: Apoena Meirelles, filho de sertanista e um dos maiores especialistas em nações indígenas do Brasil, assassinado em outubro do ano passado. Ao lado do tronco que o representa, um índio histórico: o cacique Nahu, da etnia Kuikuro, o único que falava português na década de 1940. Por conta dessa habilidade, os irmãos Villas-Boas conheceram as 14 etnias do Xingu, abrindo espaço para a homologação do parque, em 1953.

Os anfitriões Kuikuro passam o dia ansiosos pelo início da festa. Uma dupla de índios entra de oca em oca, de hora em hora, tocando uma longa flauta de madeira caurá. Guerreiros retiram os escassos pêlos do corpo com um pente de dente de peixe-cachorro, que rasga a pele, faz sangrar. Mordem o lábio, não gemem nem choram. São guerreiros da tribo que vão lutar o uka-uka contra adversários-amigos de outras etnias.

Eles chegam com adornos coloridos, balões, pinturas. Em fila, circulam pelo espaço aberto que existe entre as ocas, cantam, celebram os Quarups. Na festa deste ano, foram cerca de mil índios de oito etnias diferentes. Grupos que até 300 anos atrás brigavam, mas descobriram que a paz é o melhor caminho. Abandonaram as armas, hoje lutam para manter a cultura viva e trocam entre si os produtos da economia de cada aldeia: colares, cestos, pentes de madeiras, bacias. As mulheres, carregando seus filhos pequenos no colo, preparam os bijus e os peixes do Rio Xingu e da lagoa próxima à tribo. Os manjares serão oferecidos aos convidados.

A chegada dos grupos no final da tarde não significa que eles estarão, ainda, diretamente ligados à festa. Depois que todos circulam e dançam, os cantadores, em estado próximo do transe começam a balançar chocalhos, a cantar uma música tradicional, que as novas gerações indígenas pouco entendem, mas que vem sendo passada de pai para filho, há séculos. É o sinal, a senha para os parentes dos chefes mortos.

No Quarup, a homenagem sempre é feita a um cacique ou a um parente, índios comuns não têm esse privilégio. Mas acompanham, respeitosos, os parentes enlutados, que sentam-se em torno do tronco pintado e choram. Choram muito, lágrimas brotando com facilidade e escorrendo pela pele pintada de urucum. Choram a noite inteira, sob um céu estrelado, um lamento tristonho e hipnotizante, acompanhado pelos cantadores, com chocalhos pintados à mão, realçados pela ausência de luz elétrica na tribo. Enquanto os parentes choram, os demais celebram. Dão gritos de comemoração, soltam fogos. A festa começa para todos ao nascer do sol do dia seguinte.

A sexta-feira começa com a fila de índios visitantes à espera da autorização para entrar na tribo. Os chefes de cada etnia param à frente. Os caciques Kuikuro vão até eles, estendem as mãos e os levam até as cadeiras em torno do ''ringue'' onde serão disputadas as lutas entre tribos, batizadas de uka-uka. A luta é simples: colocando a mão por trás da coxa do adversário, vence quem consegue derrubar o outro. Como tudo é festa e nem sempre a vitória de um lado se concretiza, o empate é um resultado comum e comemorado por todos.

Depois que os lutadores selecionados por cada tribo duelam, o uka-uka vale para todos os índios, que começam a lutar em duplas. Os brancos convidados para a festa se perdem nos confrontos, mas cada índio sabe ao certo com quem está lutando, às vezes por horas. Índios mais jovens, inspirados pelos seus ídolos, também lutam, entre si, fora do espaço dividido pelos adultos.

A festa está chegando ao fim, mas ainda há momentos marcantes. As meninas reclusas, afastadas da sociedade desde a primeira menstruação antes do Quarup, saem das ocas escuras, franjas tapando os olhos para que não possam mirar os demais integrantes da tribo. Circulam por todas as etnias, oferecendo sementes de pequi para os caciques.

Ao final de tudo, os Quarups são levados até a lagoa, as madeiras partem boiando. Os índios começam as trocas com os brancos, pedem as redes, os cobertores e retribuem com seus colares, pulseiras, cestos. Deixam estampada a alegria pelo prestígio à festa grandiosa que proporcionaram. Como disse o filho de Apoena Meirelles, Francisco Maldi Soares de Meirelles.
- Eles cultuam o espírito, uma lição que nós, brancos, precisamos aprender - resumiu Francisco.
Até o próximo Quarup.

JB, 29/08/2005, País, p. A4

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