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Família indígena como se baila na tribo

O Globo, Segundo Caderno, p. 1
Autor: JAN NIKLAS
19 de Set de 2018

Família indígena como se baila na tribo
ANTROPÓLOGA RELATA, EM LIVRO, RELAÇÃO COM LÍDER INDÍGENA QUE A 'ADOTOU'

Quando Paletó morreu em janeiro de 2017, Aparecida Vilaça não conseguiu chorar como os wari. O ritual fúnebre do povo indígena do interior de Rondônia manda que os parentes alternem crises de choro com cantos que celebram o morto. Em outros tempos, antes do contato com os brancos, o cadáver era ainda desmembrado e assado para ser comido pelo grupo na frente dos familiares. Era a forma de iniciar o luto, mostrando que aquele corpo não era mais o ente querido - apenas carne. Ao longo de 30 anos de relação, Paletó havia se tornado o pai indígena de Aparecida. Mas, ao receber a notícia em sua casa no Rio de Janeiro, a antropóloga não conseguiu cantar como havia aprendido - só escrever.

No dia seguinte à morte, ela deu início a uma expedição pelas suas memórias com o povo que foi seu objeto de estudo, mas que também se tornou parte de seu núcleo familiar e afetivo. Em especial Paletó. Nascido em meados dos anos 1930, o indígena viveu três décadas sem qualquer contato com a civilização ocidental. Viu seu povo ser dizimado (sobrou apenas um terço da população original), viu filhos e esposa serem assassinados, parentes vencidos por epidemias e sua cultura ser colonizada por missionários evangélicos. E é guiada pelas lembranças deflagradas com a morte do pai wari, que Aparecida Vilaça lança o livro "Paletó e eu: memórias de meu pai indígena" (Todavia).

A antropóloga, que trabalha no Museu Nacional há 35 anos, chegou ao território dos wari em 1986, para seu trabalho de campo. Carregava consigo teorias etnológicas, gravadores e uma cadeira de praia (objeto indispensável para a saúde da coluna na mata). Seu interesse era entender as relações de parentesco do grupo, objeto fundamental do estudo da antropologia. Hoje, conclui que sua maior realização, além das relevantes contribuições à pesquisa científica, foi a complexa teia familiar estabelecida a partir de Paletó, unindo o Rio de Janeiro e o Rio Negro.

- Tinha amor ali. Não é que o conteúdo antropológico seja secundário, mas esses aprendizados são indissociáveis das relações que eu fui estabelecendo. Minha obra foi ter feito os meus filhos netos do Paletó, meus pais irmãos do Paletó e dos wari. Aprendi muito, mas acima de tudo conectei essas pessoas - reflete ela.

Aparecida acredita que, dessa forma, produziu o que o antropólogo Roy Wagner (que morreu neste mês aos 79 anos) chama de "antropologia reversa". Nesse processo, despertado pelo intenso convívio no campo, as barreiras entre o "eu" e o "outro" são borradas.

- Enquanto pra gente trabalho é produzir dados, documentos, para eles trabalho é fazer relações. Uma pessoa que "fez muito", para um wari, é quem teve muitos filhos, alimentou todos. Eu fiz cultura, fiz meus livros, mas entendi a forma de fazer dos wari, que é criar relações humanas.

O relacionamento com o pai indígena começou por ele ser guardião dos relatos de mitos em seu núcleo. A todos que perguntava sobre algo, escutava a mesma resposta: "pergunta pro Paletó". Ele passou a usar essa alcunha, aliás, quando conheceu a peça de roupa e começou a circular nu, coberto apenas por um paletó.

Apesar de não ser um xamã (líder espiritual), ele tinha uma posição de protagonismo nos rituais wari. Organizava festas, inventava letras de música, agregava todos em torno de seu carisma. Era um grande comunicador - na língua indígena, já que não falava português.

- Ele era um representante político no sentido da relação com os brancos. Mergulhava em outro mundo, vivia intensamente aquilo, para voltar para o dele e traduzir o que havia visto - conta ela sobre Paletó.

AVENTURAS NO RIO DE JANEIRO

A vocação de Paletó para se abrir ao mundo levou Aparecida a trazê-lo, junto a Abrão (seu filho e "irmão indígena" da antropóloga) para o Rio de Janeiro em três ocasiões, que renderam relatos engraçados no livro sobre sua visão dos brancos.

Ao andar com ele pela primeira vez no metrô, Aparecida perguntou como se sentia: "Acho que vou fazer minha casa aqui", respondeu. Comparava a multidão na Rua Nossa Senhora de Copacabana a cardumes de peixes do Rio Negro. A cor branca das pessoas que via na praia seria porque "o mar comeu suas peles".

Em 1992, a antropóloga o levou para conhecer o Museu Nacional, que foi destruído em um incêndio há duas semanas. Ao ver uma múmia pela primeira vez, Paletó ficou chocado: "Como os parentes deles deixam fazerem isso com seu corpo?". E, ao avistar uma caixa com ossos, perguntou: "Mas vocês fazem isso com os inimigos?". Porém, se o luto pela morte de Paletó foi resolvido com o livro, a perda do Museu Nacional ainda não foi digerida.

Porém, se o luto pela perda de Paletó foi resolvido com o livro, e se converteu em algo alegre devido o humor e inteligência com que ele levou a vida, a perda do Museu Nacional ainda não foi digerida pela pesquisadora.

- São lutos separados. No museu perdemos tudo. Fala-se em "recuperar" o que foi perdido, mas é impossível. Já este livro é um luto que consegui resolver positivamente.

O Globo, 19/09/2018, Segundo Caderno, p. 1

https://oglobo.globo.com/cultura/livros/antropologa-relata-em-livro-rel…

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