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Exemplo para o país

CB, Opinião, p. 21
Autor: SMERALDI, Roberto
17 de Abr de 2007

Exemplo para o país

Roberto Smeraldi
Jornalista, é diretor da OSCIP Amigos da Terra - Amazônia Brasileira

A cidade de São Paulo é palco de um conflito sobre a Lei Cidade Limpa, a respeito da poluição visual. O caso merece análise fora do contexto local: não é possível continuar a tolerar, como se fosse questão social, o conflito entre legalidade e interesse público, por um lado, e, por outro, o interesse de pequenas minorias que desafiam a ordem justificando a usurpação em nome de supostos direitos a trabalhar, produzir, empregar.

Como ambientalista engajado, há mais de duas décadas, na tutela de interesses difusos, estou acostumado a esse tipo de conflito. Aliás, o dos outdoors paulistanos parece a versão caricatural, quase de opereta, de uma situação bem mais grave e difusa que caracteriza o país inteiro. Como comparar isso com a grilagem de milhões de hectares de terras da União, em nome da competitividade da agropecuária? Ou com a extração ilegal de madeira, em nome da sobrevivência dos posseiros da Amazônia? Ou com a extinção de nossos mananciais, em nome do direito à habitação? Ou com o trabalho escravo, em nome do milagre dos biocombustíveis? Ou com a instalação até mesmo de portos ilegais e sem licença, em nome do crescimento das exportações? Ou com o tráfico de drogas, em nome de alguma renda nos muitos bairros de miseráveis de nossas cidades?

Em suma, país afora, se multiplicam casos de afronta à ordem constitucional e legal bem mais graves e gritantes do que os que ocorrem em São Paulo por culpa dos poluidores visuais. Uma minoria gritante e desafiadora desconsidera as leis e o interesse público, fazendo-se ouvir pelos políticos e pela imprensa. Por seu lado, a grande maioria prejudicada assiste ao conflito inerte e sem capacidade de afirmar pró-ativamente os direitos difusos.

No final, a opinião pública acaba até comprando em parte a idéia suicida de que o caminho da ilegalidade é mesmo o único que pode beneficiar os deserdados pelas omissões do Poder Público, pela iniqüidade do crescimento econômico e pelas injustiças crônicas do país. E, inevitavelmente, a legalidade republicana vai se esfacelando, numa bola-de-neve de fatos consumados que regem o país mais do que qualquer carta constitucional. O Poder Judiciário, via de regra, ratifica: em São Paulo, distribui generosamente liminares aos que assumem ter agido ilegalmente; no Pará, ainda este mês, corrobora um processo de licenciamento ilegal de uma grande obra, já que ela seria uma "redenção econômica".

Mas, por que então o caso de São Paulo merece atenção? Primeiro, porque é raro um governante assumir pessoalmente a causa do interesse difuso protegido pela lei, contra o interesse de um lobby ilegal votante. São Paulo está oferecendo ao Brasil, dessa forma, uma oportunidade ímpar de resgatar a dignidade de sua cidadania. Segundo, porque os conflitos que se consomem na Amazônia profunda, nas favelas ou na Serra do Mar não chegam a ser percebidos como reais pelos tomadores de decisão da vida política, econômica e da informação.

No final, o caminho mais fácil é sempre aquele de tolerar o que acontece longe, até mesmo para remover do inconsciente culpas atávicas e por saber que muitos outros grupos se beneficiaram dessa forma. Já o conflito dos outdoors se dá no caminho de casa para o trabalho de grande parte dos tomadores de decisão do país.

O desfecho da briga que o prefeito Kassab resolveu comprar, inusitadamente, será importante e decisivo para o rumo do Brasil. Se o prefeito ganhar, começará a ficar claro que é possível, para a comunidade, deixar de ser chantageada pelo crime mais ou menos organizado, assim como de pagar as taxas explícitas e implícitas que a ilegalidade lhe impõe historicamente. Será um pulo do gato cultural de natureza histórica, capaz de gerar confiança do país em si mesmo, condições de maior prosperidade para a economia e afirmação da cidadania. A democracia brasileira poderá passar da adolescência para a idade adulta.

Se o prefeito perder, São Paulo vai assinalar ao país inteiro que sim, ele pode e deve continuar tolerando e justificando tudo, da grilagem de terras ao desmatamento da Amazônia, porque sempre haverá um grupo cuja atividade econômica ficará prejudicada pela lei que defende o interesse público. E teremos todos de agradecer, de joelhos, a Fernandinho Beira-Mar pelos empregos e as exportações que ele e seus pares fomentaram.

CB, 17/04/2007, Opinião, p. 21

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