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Ética no uso da água

JB, Outras Opiniões, p. A11
Autor: WERTHEIN, Jorge
25 de Mar de 2004

Ética no uso da água

JORGE WERTHEIN Doutor em educação

A dificuldade de acesso à água potável está nos forçando a repensar nossos conceitos de estabilidade, dependência e responsabilidade, assim como nossa percepção sobre a sustentabilidade do planeta e das futuras gerações. Nos últimos anos, começamos a afastar o falso mito da inesgotabilidade dos recursos hídricos, construímos foros de debate e demos os primeiros passos para assumir um compromisso global para lidar com o problema. Falta-nos agregar um componente ético capaz de dar unidade e sustentabilidade a essa mudança.
Mais de 5 milhões de pessoas morrem anualmente com doenças causadas pela contaminação da água e pela falta de saneamento e de água para fins de higiene. Há hoje 1,5 bilhão de pessoas sem acesso à água potável e 2,9 bilhões - cerca de metade da população mundial - sem serviços sanitários básicos. Uma das metas da ONU, em 2000, previa a redução à metade da população mundial sem acesso à água doce e potável até 2015. Para isso, seria necessário levar água encanada a mais de 300 mil pessoas por dia e saneamento básico a mais de 500 mil. A meta não será cumprida. Ao contrário, espera-se que até lá milhões de pessoas tenham morrido, incluindo uma média de seis mil crianças por dia.
Declaração da ONU de 1999 mostra, por outro lado, que o montante de recursos necessários para levar, até 2009, água e saneamento para quem não tem, equivale ao que se gasta por ano na América do Norte e Europa com alimentos para animais de estimação. É o dilema ético, mais do que a escassez de recursos hídricos, que aflora e dá perversidade a esse debate.
Como trazer essa percepção ao nível das consciências individual e coletiva? A resposta começa pela percepção de que os problemas estão mais associados à distribuição e ao conhecimento sobre seu uso do que a quantidades reduzidas desse recurso. Se tivermos em conta que não há vida sem água, e que àqueles a quem se nega a água nega-se também a vida, estabeleceremos o ambiente ético e solidário sobre o qual devem se mirar as nossas ações.
Aprendemos a encarar a água como uma fonte de conflitos, sem dar muita atenção ao fato de que esses conflitos reproduzem desigualdades sociais históricas. Precisamos estabelecer uma agenda positiva, capaz de racionalizar o uso da água e ajustar este desafio ético às dimensões políticas e econômicas.
Esse é um problema transnacional, que exige interdependência das políticas de gerenciamento dos recursos hídricos e cooperação entre Estados e sociedade. Daí podem surgir novos valores, capazes de mostrar que nossa sobrevivência depende da água e a conservação dos recursos hídricos depende de uma ação sustentável e integrada de toda a humanidade. A água, fonte da vida, nos dá hoje a oportunidade de promover essa discussão. Cabe a nós não desperdiçá-la.
Jorge Werthein -Representante da Unesco no Brasil

JB, 25/03/2004, Outras Opiniões, p. A11

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