O Globo, Rio, p.24-25
13 de Fev de 2005
Estação de esgoto de R$ 3,7 milhões não funciona
Sem tratamento, Rio Carioca mancha paisagem da Baía de Guanabara com 300 litros de dejetos por segundo
Amanhece na orla do Flamengo: os primeiros minutos do dia revelam um cenário irretocável, dominado pela Baía de Guanabara, com o Pão de Açúcar ao fundo. Mas, à medida que o sol aparece, percebe-se que o quadro precisa de retoques. No meio da paisagem, o histórico Rio Carioca, que séculos atrás matou a sede do Rio, deságua na baía mergulhado em esgoto. Em sua foz, uma estação de tratamento que custou R$3,7 milhões e deveria contribuir para despoluir a Praia do Flamengo tem papel decorativo: está parada há pelo menos quatro meses.
Obras foram iniciadas no governo Garotinho
A estação de tratamento do Rio Carioca foi construída com dinheiro da multa aplicada à Petrobras pelo vazamento de 1,3 milhão de litros de óleo na baía, em janeiro de 2000. As obras foram iniciadas no governo Anthony Garotinho e inauguradas em 30 de setembro de 2002, na gestão Benedita da Silva. O sistema tem capacidade para tratar 300 litros de esgoto por segundo. De acordo com o estado, a poluição do Rio Carioca é causada por ligações clandestinas, já que o esgoto da região é jogado no emissário de Ipanema.
Na manhã de sexta-feira, havia na estação apenas um funcionário, que usava uniforme da DT Engenharia, empresa de São Paulo contratada pelo estado para operar o sistema. Sem uso, parte do equipamento já está enferrujada e até corroída. O empregado contou que desde que chegou ao lugar, há cerca de quatro meses, a estação nunca funcionou. Perguntado sobre o que fazia durante o plantão, ele respondeu prontamente:
Nada. Não há o que fazer.
A DT Engenharia não quis comentar o assunto. Já a Secretaria estadual de Meio Ambiente admite que a estação funcionou adequadamente por apenas nove meses, da inauguração até junho de 2003, quando teria terminado o contrato com a DT Engenharia. Segundo a secretaria, a firma recebia R$30 mil por mês. Desde então, ainda de acordo com o estado, a unidade só funciona quando há produtos químicos para tratamento.
A secretaria alega ainda que a estação está completamente fora de operação há apenas três meses. Em outubro do ano passado, no entanto, a Cedae já admitia que o tratamento estava parado há quatro meses.
Desculpa já foi falta de produtos químicos
Da inauguração até hoje, o estado já apresentou uma série de motivos para a ociosidade da estação. Durante uma paralisação em fevereiro de 2003, a secretaria informou que a operação dependia de negociações com a Cedae. Sete meses depois, a desculpa era a falta de produtos químicos. Já em outubro passado, o pretexto era um problema no computador que controla o funcionamento da estação.
O presidente da Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla), Ícaro Moreno Júnior, disse que o órgão assumirá em breve a operação da estação de tratamento do Rio Carioca:
Assim que assumirmos, vamos realizar estudos para botá-la em funcionamento.
A água que matava a sede da cidade
Arcos da Lapa: o que restou do aqueduto
O Rio Carioca que nasce na base do Corcovado e corta quatro favelas e os bairros de Cosme Velho, Laranjeiras e Flamengo, antes de desaguar na Baía de Guanabara está intimamente ligado à história da cidade. Em sua foz, onde hoje é a Praia do Flamengo, foi construída, em 1503, a mando de Gonçalo Coelho, uma casa que ficaria marcada para sempre na memória do Rio. Os índios tamoios que viviam na região passaram a chamá-la de carioca (casa de homem branco), termo que daria nome não só ao rio como ao povo da cidade, segundo conta o historiador Milton Teixeira.
O Carioca foi também o rio que abasteceu a cidade séculos atrás. No século XVII, ele começou a ser canalizado entre a nascente, no fim da Rua Almirante Alexandrino, e o Centro. Para levar a água até o atual Largo da Carioca, foi construído um aqueduto. As marcas estão aí até hoje, nos Arcos da Lapa. Segundo Milton Teixeira, no Largo da Carioca, foi erguido o primeiro chafariz da cidade. Ele foi demolido em 1926.
O historiador conta ainda que o Rio Carioca serviu de fonte para atiçar o imaginário carioca:
Diziam que as mulheres que bebiam suas águas ficavam mais formosas. Já os homens recuperavam o vigor físico.
Um dos últimos trechos visíveis do Rio Carioca, no Parque do Flamengo, está sendo coberto por um deque, que se estende desde a estação de tratamento até a foz.
Flamengo: poluição 90 vezes acima do limite
Dois anos e meio depois da anunciada limpeza, praia ainda recebe esgoto do Rio Carioca e da Marina da Glória
A praia de Fernando Azevedo é a do Flamengo. Morador da Cidade Nova, ele é um dos cariocas que agüentam índices até 90 vezes maiores que o tolerado para curtir as águas mansas da Baía de Guanabara. Na manhã da última sexta-feira, tentava aproveitar com a família o que restou daquela praia.
Que praia vamos freqüentar? Essa é a mais perto de casa. Além disso, as coisas aqui são mais baratas argumenta.
O estado não parece ouvir os apelos desse público. As obras na orla do Flamengo e de Botafogo previam duas etapas: a estação de tratamento do Rio Carioca e a eliminação de pontos de lançamento de esgoto na Marina da Glória, esta com verba do programa de despoluição da baía. O sistema do Rio Carioca está inoperante e, nos fundos do Museu de Arte Moderna (próximo à Marina), ainda há esgoto a céu aberto.
O governo prometeu que tão logo as obras estivessem concluídas, em 2002, o banho seria liberado na Praia do Flamengo. Dois anos e meio mais tarde, as águas têm índice de poluição muitas vezes acima do tolerado: 90 mil coliformes fecais por cem mililitros (o limite é de mil coliformes). Em Botafogo, o número chega a 1,6 milhão.
Os números assustam o infectologista Edmilson Migowski, professor da UFRJ. Ele explica que, nessas proporções, aumentam significativamente as chances de contaminação do banhista. Nas fezes, diz ele, há vários vírus, parasitas, amebas e outros organismos transmissores de doenças como hepatite A, estomatite e até meningite:
O vírus da hepatite A, que pode levar à morte, resiste por semanas à água salgada. E, quanto maior o índice do agente infeccioso, ou seja, do coliforme fecal, maiores são as chances de contaminação. No Flamengo e em Botafogo, são altíssimas. É um risco alto banhar-se ali.
O pescador João Antônio Machado, de 50 anos, que de vez em quando trata micoses na pele, diz que até acreditou na melhoria da praia, mas hoje não tem mais esperança.
Às vezes aparecem manchinhas na pele, mas eu cuido. Quando a maré está baixa, a gente sente até o cheiro do esgoto. É uma pena.
A Degradação da Baía
ASSOREAMENTO: Na primeira reportagem da série sobre a Baía de Guanabara, publicada em 30 de janeiro, O GLOBO mostrou que 15% da área total da baía, equivalentes a 60 quilômetros quadrados, foram assoreados pela degradação.
ESGOTO: Dez anos depois de iniciado o programa de despoluição, o estado só trata 25% do esgoto lançado na baía. A meta era tratar, até 1999, 58% do total.
PRAIAS DA BAÍA: Das 53 praias da baía, apenas quatro estão liberadas para o banho de mar. Os índices de coliformes fecais chegam a 1,6 milhão por cem mililitros, como em Botafogo.
ÁGUA: Dos 10 reservatórios construídos com o dinheiro do programa de despoluição, apenas um funciona. Os moradores vizinhos aos reservatórios vazios bebem água da chuva.
PESCA:O estoque de pescado caiu 40% desde o início do programa de despoluição, segundo a Federação dos Pescadores do Rio. A UFRJ estima redução de 20% por ano na pesca de camarão.
LIXO: Parte dos R$16 milhões de dólares destinados à construção de usinas de lixo e à ampliação da coleta foi desperdiçada em projetos fracassados.
GASTOS:As obras da estação de tratamento de esgoto de Alegria, a maior do programa, estão quase paradas. O contrato será reajustado em 30%, de R$98 milhões para R$128 milhões.
PARAÍSO:Um mangue de 20 quilômetros quadrados, único vestígio não degradado da orla, pode virar estação ecológica. Equivale a 5% do perímetro da baía.
O Globo, 13/02/2005, Rio, p.24-25
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