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Essa antropologia que me fascina

OESP, Caderno 2, p.D1, D3
27 de Nov de 2004

Capa:O Brasil de Lévi-Strauss
A única grande etnologia que existe hoje no mundo é a brasileira, diz ao Estado o antropólogo francês.

"Essa antropologia que me fascina"
Um dos intelectuais mais respeitados do mundo faz 96 anos amanhã e fala das saudades do Brasil
Gilles Lapouge
Correspondente
(Tradução de Alessandro Giannini)
PARIS - Como estamos distantes da Rua Sete de Abril ou da Praça da República, neste imóvel parisiense rico e sofisticado onde Claude Lévi-Strauss - que completará 96 anos amanhã - me recebeu esta manhã para relembrar a exposição da São Paulo do século passado e a criação da Universidade de São Paulo. Fotos feitas por ele dessa São Paulo dos anos 30 podem ser vistas até amanhã, o dia de seu aniversário, no Centro Universitário Maria Antonia. A exposição foi organizada como parte dos festejos de comemoração dos 70 anos da USP.
Dessa universidade, Lévi-Strauss foi, com Fernand Braudel e Roger Bastide, uma figura emblemática. Mais tarde, de volta à França, se tornaria o etnólogo mais famoso do mundo. Mas, mesmo convertido em acadêmico francês, professor no Collège de France, ele nunca mais esqueceria o Brasil que foi ao mesmo tempo um de seus sonhos de juventude, o grande encontro de seu destino e o material sobre o qual fundou seu sistema: a antropologia estrutural.
Muitas vezes, ele foi retratado como um homem frio. Não seria hora de dizer o quanto esse homem é simples, amigável e às vezes agradável? Sobre a mesinha do salão onde ele me recebe com cortesia e atenção, eu vejo o álbum publicado em 2003 por O Estado de S. Paulo/ Editora Terceiro Nome, sob a coordenação de Ruy Mesquita Filho, que reúne fotos dos arquivos do jornal.
"Sim", diz ele folheando as páginas, "é um livro surpreendente". E, como se estivesse falando consigo mesmo, murmura nomes de ruas percorridas antigamente, em 1935, 1936, pelo jovem professor de filosofia recém-saído de uma pequena cidade do interior da França, Laon, e atônito por ter sido jogado na loucura de São Paulo - Vale do Anhangabaú... Bom Retiro, Largo do Arouche... São João... Rua Barão de Tatuí... Largo de São Francisco, sim, sim... Largo São Bento...
"É preciso imaginar como eram as coisas em 1934. Nesta época, a etnologia ainda não era respeitada na Universidade. Havia equipes que trabalhavam com Marcel Mauss, Paul Rivet, Lucien Lévy-Bruhl, mas não constava no programa estrito da Universidade. Na verdade, no que me diz respeito, eu não era antropólogo, mas um simples professor de filosofia em Laon. E me aborrecia por lá. A filosofia não me satisfazia e eu queria partir."
Partir?
Eu queria descobrir horizontes mais amplos. Entrar em contato com a natureza (minha paixão, no fundo) e os povos.
O senhor pensava no Brasil?
De jeito nenhum. Sorte. Eu poderia ter ido para outro país. Não conheço grande coisa do mundo...
Nada de viagens?
Meus pais tinham uma casa na França, nos Cévennes (sul da França). Era um lugar selvagem. Era apaixonado por geologia. Passava horas correndo nas montanhas. Belas lembranças. Perseguia, no flanco de uma colina, a linha de contato entre duas placas geológicas... E de repente essa oportunidade! Fui sondado para viajar para o Brasil e agarrei essa chance. Vi aí a possibilidade de levar minhas especulações filosóficas para o campo da etnologia. O mesmo tinha acabado de ser feito por outro filósofo da minha geração, Jacques Soustelle, que aproveitou sua estada no México para descobrir a antropologia.
Então, o senhor vai para a USP. E lá ensina que disciplina? A filosofia? A etnologia?
Sociologia. Uma transição, para mim, entre a filosofia dos meus estudos e essa antropologia que me fascina. Ao mesmo tempo, desde que me fosse permitido, fazia trabalho de campo. Primeiro, com um professor da USP, o geógrafo, o excelente geógrafo Pierre Monbeig, de quem eu era muito próximo. Eu percorri com ele o Estado de São Paulo, o Paraná, Santa Catarina... Paralelamente, fazia meus alunos trabalharem na cidade de São Paulo, produzindo monografias sobre tal rua, sobre tal quarteirão .
Um ensaio de antropologia...
Sim. Os grandes patronos da Universidade e o próprio Ruy Mesquita eram muito ligados a uma etnologia inspirada em Augusto Comte, em Emile Durkheim. Já eu, estava "recheado" de etnologia anglo-saxã.
Suas missões no Mato Grosso foram um pouco mais tarde, não?
Em 1935, em vez de voltar para a França nas férias, fiz a primeira expedição na terra dos Bororos (três meses). No verão (francês) seguinte, voltei à França para as férias e apresentei em Paris as coleções que eu havia constituído no Mato Grosso e também artigos, publicações. Foi assim que eu me tornei, oficialmente, etnólogo. Em 1937, voltei ao Mato Grosso. Conheci algumas sociedades: os Bororo e sua cultura tão rica, tão complexa; os Caduevo, muito reservados e que combatiam as apropriações de suas terras; os Nhambiquara, com sua reputação de violentos e na realidade muito simpáticos, muito dóceis e difíceis de encontrar porque eram seminômades... Mas também muito bons artistas (cerâmicas, pinturas corporais)...
O senhor estava acompanhado - ou controlado - por um etnólogo brasileiro. Qual era o papel dele?
Estávamos na era Vargas. Por que esse controlador? Não sei. Talvez quisessem garantir que eu não estivesse espionando? (Dá um sorriso maroto. Ironia. Mas com homens dessa estatura, não se sabe onde termina a brincadeira e começa a seriedade...)
Voltemos a São Paulo, entre os anos 35 e 37. Sua vinda ao Brasil, o senhor a contou no livro Tristes Trópicos ( 1955), seu livro mais subjetivo, mais literário. (Muito freqüentemente cita-se a primeira frase - "Eu odeio viagens ) . E essa viagem? Dezenove dias num cargueiro, numerosas escadas, Santos, o mergulho repentino nos trópicos?
São Paulo. Foi um choque. Tenho 96 anos. E São Paulo foi minha juventude, entende? Havia a febre intelectual da jovem Universidade de São Paulo - os outros professores franceses, homens de talento, lembro de Roger Bastide, Fernand Braudel... ou um italiano como Ungaretti, professores alemães, os primeiros exilados do nazismo... Mas você sabe, cada um tinha seu setor, não nos víamos muito, a não ser para algumas necessidades mundanas, por sinal, agradáveis. Eu freqüentava muito os brasileiros. Um dos homens mais impressionantes para mim foi Paulo Duarte. Sergio Milliet também. Eu era muito ligado a Mario de Andrade. Me apaixonei pelos seus estudos sobre a música popular e gostava muito dele. Foi graças a ele que pudemos montar uma missão franco-brasileira no Mato Grosso. A revista Tempos Modernos, em Paris, acaba de lançar um número especial consagrado aos meus trabalhos. Publicou o fac-símile de quatro cartas que escrevi para Mario nos anos 1930, quando ele era secretário de Cultura do município de São Paulo. Reencontramos essas cartas no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. A primeira era datada de Corumbá, dia 15 de janeiro de 1936, a segunda de 25 de outubro de 1936, a terceira de Uriatiri, dia 17 de janeiro de 1938, e finalmente uma de São Paulo, 1938. (Enquanto eu percorro essas cartas datadas de meio século atrás e tão emocionadas, Lévi-Strauss folheia o álbum 'São Paulo de Piratininga'.) É isso. É isso. Claro, mudou muito. Voltei em 1985. Quis ver a casa onde morei em 1935. Peguei um táxi, mas o engarrafamento era tão grande! Eu tinha só duas horas livres. O táxi nunca conseguiu chegar até a rua. Isso me causou uma impressão estranha. Que a casa tivesse desaparecido, até seria possível, mas a rua, ainda devia estar lá... E depois... (Faz um gesto desdenhoso com a mão, um pouco triste, como para apagar uma lembrança ausente, a rua que partiu...) As minhas lembranças são um pouco tênues. Você sabe... nessa idade, esquecemos das coisas.
De volta aos brasileiros...
Brasileiros? Sim, eles vêm a Paris. Veja... Há 15 dias, recebi a visita de dois índios Bororo. Eles lecionam na Universidade salesiana de Don Bosco, em Campo Grande. Eles cantaram e dançaram. Imagine: há 15 dias, escutei os mesmos cantos ouvidos há três quartos de século no Brasil. Foi, sim, muito tocante... Tenho uma grande admiração pelos etnólogos brasileiros. Diria até que a única grande etnologia que existe atualmente no mundo é a brasileira. Conduziu trabalhos de primeira grandeza. É extraordinariamente prolífica. É puramente brasileira.

OESP, 27/11/2004, p. D3

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