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Esperança e destruição no garimpo da selva

O Globo, O País, p. 12-13
21 de Jul de 2007

Esperança e destruição no garimpo da selva
Em um mês, mata virgem cedeu lugar a cenário de árvores abatidas e riachos desviados que lembra Serra Pelada

Chico Otavio

Faz tempo que este grito não era repetido tantas vezes na floresta: "Bamburrou!". Na gíria do garimpo, bamburrar é encontrar grande quantidade de ouro, fazer fortuna inesperadamente. Desde Serra Pelada, não se via tanta gente bamburrar. Num cenário que mistura esperança e destruição, centenas de pessoas, em um mês, transformaram o que era um trecho de mata virgem, às margens do Rio Juma, no sul do Amazonas, num impressionante garimpo. Em busca da redenção pelo ouro, garimpeiros não param de chegar todos os dias, cavando crateras, abrindo picadas, derrubando árvores, mudando cursos de riachos e desbravando implacavelmente a floresta, como fizeram gerações anteriores.

O pedreiro João da Silva e Silva, de 40 anos, bamburrou. Em três dias e meio de garimpo, este morador de Apuí, município mais próximo da extração, a 455 quilômetros de Manaus, retirou da terra quase um quilo e meio de ouro. João faz parte do pequeno grupo de garimpeiros que "aquilou", outro jargão, e mudou de vida. Vai erguer sua primeira casa de alvenaria, comprou duas motos (para ele e para a mulher, Francisca, de 26 anos) e sobrou dinheiro para uma segunda casa, que pretende alugar. Mas nem todos têm a sorte de João. A grande maioria voltará de bolsos vazios, como Irinéia Leandro, de 45 anos, há cinco dias no garimpo sem retirar um único grama.

- Vim de Rondônia. Quatro dias de viagem. Quero apenas dez gramas para poder voltar para casa - desespera-se.

Grau elevado de pureza do ouro
As autoridades se confundem quanto ao número de pessoas concentradas ali. A prefeitura estima em quatro mil; a PM, em oito mil. Mas um dado é incontestável: o garimpo se consolida, dia após dia, como um fator de risco sanitário, social e ambiental. Não há água potável. Não há banheiro. O lixo é jogado em qualquer parte. Buracos e picadas expõem raízes de árvores que escaparam da serra elétrica e ameaçam desabar sobre o garimpo. A área, abafada e chuvosa, é um grande atoleiro. O cenário é compartilhado pelo anofelino, velho conhecido das autoridades sanitárias: o mosquito transmissor da malária.

Eldorado do Juma, dizem os especialistas, é mesmo um fenômeno. Gilmar Predebon, ourives há 22 anos, explica que o grau de pureza do ouro local é elevadíssimo. Numa escala até cem, está na casa 98. O garimpo é fértil também em lendas e personagens. Uma única pergunta produz diferentes respostas:
- Quem achou o ouro?
- Paulo, Agenor e Neguinho
- responde José Ferreira da Silva Filho, o Zé Capeta, de 44 anos, que se diz dono da terra.
- Foram o Tibúrcio e o Faixa Branca - diz o fazendeiro Mário Antônio da Silva, dono da propriedade vizinha.

Os desbravadores dificilmente se apresentarão para reivindicar o mérito. Preferem a boca fechada, pois são certamente os que retiraram as maiores quantidades. Como todo garimpo, o Juma é regido por regras próprias, onde ganha mais quem chega primeiro. O chefe do posto do Incra em Apuí, Euclides Mottee, disse que as terras pertencem à União, destinadas à reforma agrária. Valério Miguel Grando, engenheiro do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), afirma que a área está bloqueada e ninguém tem licença para lavrá-la. Mas nada disso vale ali. Nem Zé Capeta, que se diz dono do lugar, conseguiu grota fértil para desbarrancar. A lei protege o pioneiro, e ele estava em Rondônia no momento da descoberta.

Só após o primeiro mês de atividade, junto com os retardatários, chegaram a Polícia Federal, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e outras autoridades federais. A PM montou um posto com 12 homens. Na quinta-feira, funcionários da Fundação de Vigilância e Saúde colhiam mosquitos para análise e distribuíam hipoclorito para purificar a água destinada ao consumo, providências tímidas diante da ação humana no local.

Governo estimula cooperativismo
É bem verdade que já havia autoridades ali muito antes. O vice-prefeito de Apuí, Aminadal Gonzaga de Souza, e dois vereadores freqüentam o Juma desde o início. No sistema de castas que rege o garimpo, eles pertencem ao clã mais forte, dos donos dos barrancos mais produtivos. Estes dificilmente pegam na bateis, pois arrendam o pedaço a terceiros, no sistema de "meia praça", recebendo 50% do ouro retirado. Pela combinação, 8% pertenceriam a Zé Capeta, mas o suposto dono reclama do lucro obtido até agora.

- Não arrecadei nem dois quilos de ouro - queixou-se.

Como o grama de ouro na região não chega a R$ 40, ele teria faturado cerca de R$ 80 mil. A tensão mais visível afeta o grupo mais fraco, dos "requeiros", os que chegaram depois. Eles compõem a grande maioria, autorizada a garimpar áreas mais pobres ou exploradas. As sobras.

De chuteiras (calçado preferido no garimpo), botas ou descalços, roupas inadequadas e bateis enfiada na cabeça, eles percorrem todos os garimpos em busca de um pedaço de terra. O mais visado é a Grota Rica ou Fofoca, onde o estrago é brutal.

Sem condições de deter o avanço, Incra e DNPM estimulam os garimpeiros a formar uma cooperativa, para assegurar distribuição mais justa do ouro e apresentar um plano futuro de recuperação ambiental.

Até quinta-feira, mais de 1.500 garimpeiros haviam feito a pré-inscrição e uma assembléia aconteceria ontem para fundar a entidade. Capeta quer a presidência. João da Silva e Silva, o pedreiro que aquilou, não figura entre os inscritos. Este veterano de Serra Pelada garante que não volta mais ao Juma. Como poucos, percebeu a hora de parar.
- Volto mais não. Deus me ajudou. Antes, gastava tudo, agora tenho família - diz João, pai de quatro filhos.

O risco da malária
Hospital já registra aumento de casos

O primeiro alerta já foi dado. O número de casos de malária em Apuí, que oscilou no ano passado em tomo dos 30 casos mensais, atingia 50 pessoas em apenas duas semanas de janeiro. O cirurgião Luiz Alberto Mendonça, diretor do Hospital Estadual Eduardo Braga, assegurou que os 20 casos adicionais vieram do garimpo do Rio Juma. Testes de laboratório comprovaram a presença do anofelino, o mosquito transmissor da doença, pelo menos na base de onde partem as lanchas rumo ao garimpo.

Como o período de incubação da malária é de até 14 dias, autoridades de saúde afirmam que o pior está por vir:
- O garimpo seria uma maravilha se tivesse sido planejado. Mas não é o caso. Longe disso, virou uma área de alto risco para epidemias - alerta Luiz Alberto.

A lista que assusta não inclui apenas malária, mas males de transmissão hídrica, como a febre tifóide e a hepatite. Muitos garimpeiros estão internados tratando de severas infecções intestinais. A média mensal de internações, em tomo de 70, deve subir para 300. A prefeitura reivindica do governo estadual a instalação de um posto no garimpo, para atuar principalmente na prevenção. Teme não dar conta do recado na retaguarda. O médico se diz assustado. Sua barba, por fazer, acentua cansaço. Mas ele próprio integra o exército de gente encantada pelo surto do ouro. Na semana passada, assinou a lista dos sócios fundadores de uma futura cooperativa, que abrirá outro garimpo em local ainda guardado em segredo.

Fortuna sem sujar as mãos de lama

O canto forte do peito-de-aço, um pequeno pássaro, é uma das poucas manifestações da fauna que resiste à ocupação humana no garimpo. Numa área de 25 quilômetros quadrados, o que se ouve é o barulho de motosserras, cavadeiras de duas bocas, picaretas, motores, facões e, principalmente, conversas.

- Está acabando - grita Mário Jorge do Nascimento, vendedor de sanduíches que deixou a lanchonete em Nova Aripuanã (AM) para oferecer nas grotas hambúrgueres e suco. Dois sanduíches custam um grama de ouro, cerca de R$ 35:
- Hoje ganhei 40 gramas.
Vendi 70 dos cem sanduíches. Quero vender tudo - festeja.

O preço da sobrevivência é uma adversidade a mais na rotina do garimpo. Além das condições inóspitas da selva ocupada, onde a mesma água de beber escoa dejetos humanos, os garimpeiros pagam preços abusivos por comida, bebida e utensílios. Muita gente ganha fortunas em ouro sem sujar as mãos de lama. Uma lata de Coca-Coca na currutela, vila erguida na beira do Rio Juma, ponto de partida para as área de garimpo, não sai por menos de R$ 4.

Cantinas construídas com lona têm TVs, som alto e músicas de duplo sentido. Meninas entre 13 e 17 anos estão em toda parte, com roupas curtas e maquiagem pesada, e se dizem cozinheiras. Os garimpeiros demonstram intimidade, tentam dar tapas quando elas passam.

O cabo França Moreira, comandante do posto da PM, diz que, se flagrar prostituição infantil, entregará a menina ao Conselho Tutelar em Apuí, a 74 quilômetros. Sobre o corruptor, nenhuma referência. França reconhece que 12 PMs é quase nada entre oito mil garimpeiros e dá eco aos boatos sobre a presença na região de foragidos do presídio Urso Branco, de Rondônia.

- Nossa primeira preocupação aqui foi garantir a segurança da tropa. Jamais conseguiremos proteger os outros se não nos protegermos.

Há meninos no garimpo, e eles trabalham duro, ajudando os pais a girar as bateias. Ramiro Messias, de 14 anos, trabalha com seu pai, David, ex-oleiro de Apuí. Em uma semana, Ramiro arrecadou sete gramas:
- Vou investir o dinheiro que ganhar em algo que dê futuro. Quero ser engenheiro.

Construção de mitos também é acelerada no garimpo
Tudo é acelerado no Juma, até a construção de mitos, gente que não tinha nada e virou rico da noite para o dia. Na galeria de heróis, Raimundo Nonato Carvalho, de 41 anos, tenta manter a rotina. Embora digam que ele aquilou, com mais de 12 quilos de ouro, vende churrasquinhos de carne a frango a R$ 1.

- Comecei em Serra Pelada. Já passei por muito lugar.

Nonato é dono de um dos barrancos mais férteis da Grota Rica e comanda uma equipe de 20 homens. Ganha metade do que cada um extrair. Tem aparecido com mais freqüência na cidade, onde vende cerca de 50 espetinhos por dia, sinal de que o ouro começa a perder a força.

Outras frentes, como as grotas do Fumaça e do Chocolate, ampliam a área ocupada. Mas a maioria quer a Grota Rica. Um dos garimpeiros aponta o morro de 70 metros ao lado da clareira aberta pelo garimpo e diz:
- Nós vamos botar tudo isso abaixo.

Empresas perdem empregados para o garimpo

Dona da Incopol, maior madeireira de Apuí, Jaqueline Ferraço dispensou no fim do ano seus 43 funcionários, esperando que retornassem no dia 3. Só oito voltaram. Os demais se embrenharam no garimpo. A empresária quer processar os empregados e não se conforma com o prejuízo causado pelo abandono, principalmente nos contratos de exportação para EUA e Hong Kong.

O impacto do garimpo em Apuí divide a população. Jaqueline faz parte do grupo de prejudicados. O ouro levou mão-de-obra indispensável, como bitoladores e laminadores. Do outro lado, um grupo prospera: taxistas, mototaxistas, pilotos de voadeiras, donos de outros tipos de transporte (vale tudo para levar gente até o garimpo), comerciantes de roupas, eletrodomésticos e alimentos.

Com população de quase 20 mil habitantes, Apuí era uma típica herança do processo de ocupação da Amazônia pela pecuária nos anos 80. Sua população é formada por migrantes de vários estados, que passaram quase duas décadas derrubando árvores para a formação de pastos. Um destes pioneiros é o próprio prefeito, Roque Longo.

- Já derrubei um bocado, mas parei há dez anos.

Paranaense e pecuarista, ele está assustado com a febre do ouro na cidade. Lamenta que a fofoca tenha ido tão longe e tão rápido. Como a suposta área do garimpo fica no município vizinho, Nova Aripuanã, embora mais perto de sua cidade, Roque está convencido de que Apuí só terá o ônus da descoberta.

- Não pára de chegar gente.

Alguém precisa convencer esse povo de que não há ouro para todos. O que vai acontecer quando o dinheiro acabar? Ou quando estourar uma epidemia de malária ou outra doença? - indaga, arregalando os olhos.

Aposentadorias e pensões do INSS são ignorados
A presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Raimunda Nascimento da Silva, conta que a entidade dedicou meses para obter no INSS beneficios para os associados - principalmente aposentadorias e pensões. O processo foi acompanhado com interesse, e as cartas de concessão começaram a chegar no dia 22 de dezembro.

- Mas ninguém veio buscar. Simplesmente ignoraram - conta, perplexa.

Ela está convocando os beneficiados de casa em casa.
Mas todos estão no garimpo.

Raimunda sabe que muita gente pobre conseguiu mudar de vida com o ouro. Mas desconfia que o garimpo pode virar uma grande tragédia social:
- Este povo não vai conseguir nada. Sem dinheiro para voltar, acabará batendo aqui.

Na madrugada de quinta para sexta-feira, o pecuarista Marcos Maciel atravessou a avenida Mario Andreazza, a principal da cidade, com mais de 80 cabeças de gado. Ele diz que o garimpo levou metade de seus trabalhadores. Teve de alugar pastos vizinhos, razão da travessia.

A vida social também não escapou ao impacto. O frei franciscano Itacir Fontana contou que foi obrigado a cancelar o evento mais importante da igreja, o almoço beneficente em homenagem ao padroeiro da cidade, São Sebastião, por falta de quórum.

Sua preocupação com o garimpo, contudo, passa longe de atividades cívicas. Para o frei, o ouro pode agravar um drama que corrói há tempos a cidade - a prostituição infantil.

O Globo, 21/07/2007, O País, p. 12-13

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