VOLTAR

Entre Hollywood e o cinema da exclusão

O Globo, Segundo Caderno, p. 10
Autor: PADILHA, José
09 de Fev de 2013

Entre Hollywood e o cinema da exclusão
Enquanto monta 'Robocop', diretos lança 'Segredos da tribo', sobre abusos contra índios ianomâmi

Entrevista
José Padilha
Direto de Toronto, onde acompanha a montagem do remake de "RoboCop" (1987), o diretor carioca José Padilha pilota de longe a estreia de um documentário finalizado há três anos, mas inédito em circuito até hoje. Premiado no Festival de Sundance de 2010, "Segredos da tribo", que Padilha lança no dia 22, abriu o É Tudo Verdade, no Rio, naquele ano. Nele, o diretor de "Tropa de elite" relata as polêmicas nos bastidores da incursão de etnógrafos e biólogos americanos e europeus no território ianomâmi da Venezuela, entre as décadas de 1960, 70 e 80.

Rodrigo Fonseca
rodrigo.fonseca@oglobo.com.br

"Segredos da tribo" estreia no momento em que todas as atenções ao seu redor voltam-se para o projeto "RoboCop". O original, de Paul Verhoeven, trazia uma crítica ao discurso da publicidade dos anos 1980 e à mercantilização da violência. Qual será a sua crítica?
Hoje em dia o jornalismo das grandes corporações parece ter absorvido a histeria que era própria da publicidade da década de 1980, sobretudo quando o assunto é violência. Há uma falta de senso crítico generalizada, e acontecem sérias distorções na cobertura tanto de guerras internacionais como de programas de combate a violência regional. As armas de destruição em massa iraquianas são um bom exemplo disso. Guardadas as proporções, o tratamento ufanista e eleitoral que a grande midia brasileira deu à tomada do Alemão também foi muito distorcido. "RoboCop" fala um pouco sobre isto, e também sobre uma série de questões éticas e legais que o uso de robôs de guerra suscita. Um assunto que, creio eu, será muito importante em um futuro próximo.

De que maneira a experiência em Hollywood, mediada por estúdios, altera a perspectiva autoral que você teve com "Tropa de elite" e com docs como "Segredos da tribo"?
Os grandes filmes de Hollywood são feitos dentro de uma estrutura bastante diversa da que temos no Brasil, onde se tem completa liberdade, mas grande limitação de recursos. Aqui, se por um lado, você tem muito mais recursos, por outro, precisa apresentar e defender as suas ideias para terceiros. Isso não é necessariamente ruim nem bom. É apenas a natureza do processo.

Numa entrevista na época do lançamento de "360", ao avaliar a experiência de cineastas brasileiros no exterior, o diretor Fernando Meirelles comentou que você dizia estar penando em Hollywood. Houve sofrimento nesse processo de trabalho hollywoodiano?
No meu caso, estou aprendendo bastante, tanto do ponto de vista pessoal quanto do profissional. Os recursos do filme têm me ajudado a desenvolver competências que eu simplesmente não poderia desenvolver no Brasil. Um bom exemplo são as técnicas de filmagem, de montagem e de pós-produção de sequências com muita computação gráfica.

Três anos depois de devassar as milícias do Rio e vender 11 milhões de ingressos com "Tropa de elite 2", você volta às telas com o documentário "Segredos da tribo", um ensaio sobre vaidades intelectuais na antropologia indigenista. De que maneira o filme reflete os danos que essa vaidade pode causar a uma pesquisa sobre povos indígenas?
A antropologia das tribos ditas "primitivas" sempre foi problemática. Ao final das inúmeras entrevistas que fiz com antropólogos de várias universidades importantes, fiquei com uma impressão ruim da disciplina. Os métodos característicos da antropologia cultural nesses casos me parecem demasiadamente personalistas. As ciências, humanas ou não, precisam de alguma solidez metodológica. Dados precisam ser minimamente checados para serem considerados válidos. No caso da antropologia dos Yanomami da Venezuela, por exemplo, isso não ocorreu. Antropólogos famosos, como Napoleon Chagnon e Jacques Lizot, relataram experiências etnográficas extremamente diversas, e apesar disso seus relatos foram tacitamente aceitos como válidos em seus respectivos meios acadêmicos. Se a antropologia das tribos remotas fosse uma disciplina madura, novas pesquisas teriam sido feitas para tentar decidir, empiricamente, entre etnografias tão díspares.

O filme retrata casos de abuso médicos e sexuais na relação entre pesquisadores e índios. De que forma esses escândalos reverberaram fora das universidades?
O que se viu, tanto por parte dos estruturalistas quanto dos marxistas e dos ociobiólogos que estudavam os Yanomami, foram tentativas de vencer o embate acadêmico no grito, denegrindo moralmente os seus adversários. Um processo que terminou expondo, de parte a parte, desvios éticos de enorme gravidade. E o que fizeram as instituições que patrocinaram as pesquisas de Lizot e Chagnon? Varreram a sujeira para baixo do tapete!Tanto o Collège de France quanto as Universidades de Michigan e de Santa Barbara preferiram tentar salvar a reputação de seus departamentos de antropologia cultural do que lidar com os problemas de maneira eticamente aceitável.

Você confirma sua participação na direção da série de TV "Narcos", sobre a vida do traficante Pablo Escobar, para 2014?
O projeto é uma coprodução entre a Zazen, o (produtor) Eric Newman e a Gaumont, para a NetFlix. Será a nossa primeira série para a TV. O sonho é levar a série para o Rio. É um projeto bem grande, para vários países, equivalendo a mais de dez grandes longas. Com certeza, iria movimentar o mercado audiovisual carioca e trazer divisas. Temos grandes diretores, que poderiam dar conta do recado superbem. A questão é como competir com os incentivos fiscais dos EUA e Canadá, que são, ao contrário do que se divulga no Brasil, mais volumosos e desburocratizados do que os nossos. Mas vamos tentar.

De certa forma, seus três longas documentais, "Ônibus 174" (2002), "Garapa" (2008) e agora "Segredos da tribo", são ensaios sobre a exclusão a partir de tensões externas, sociais ou institucionais. Você vê conexões de discurso entre eles?
Penso cada um dos meus projetos em seus próprios termos. Parto de histórias, e faço opções estéticas e narrativas a partir delas. "Garapa" foi filmado em PB, quase como cinema direto (estética documental na qual a câmera parece invisível frente ao seu objeto de estudo, evitando interferências externas no que é filmado). "Segredos da tribo" foi baseado em livros e em entrevistas. "Ônibus 174" saiu de pesquisas de material de arquivo. Cada um desses filmes teve a sua especificidade e o seu caminho narrativo. O mesmo vale para os dois "Tropa". Quem frequenta os festivais de documentários sabe o quão raros são os filmes que não lidam, de uma maneira ou de outra, com tensões sociais e institucionais.

E como seus documentários dialogam com o espírito de denúncia de "Tropa de elite" ?
Fiz os dois "Tropas" para completar o argumento do "Ônibus 174", de forma que eles também nasceram de uma perspectiva documental, tendo seus roteiros sido fortemente baseados em pesquisas e entrevistas.

Como ficaram seus projetos brasileiros de longas, sobretudo o filme sobre a tomada do Alemão e o projeto sobre corrupção política, com texto do cientista social Luiz Eduardo Soares?
Todos estão andando bem, em processo de desenvolvimento de roteiro. O roteiro do filme sobre a batalha do Alemão ainda está sendo desenvolvido.

O Globo, 09/02/2013, Segundo Caderno, p. 10

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.