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Enfim, o retorno para casa

A Crítica, Cidades, p. C3-C4
13 de Jan de 2004

Enfim, o retorno para casa
Reféns dos índios Macuxi, os sete estudantes Amazonenses relatam detalhes do momentos de tensão no cárcere

Eloísa Vasconcelos

O s sete estudantes do Centro de Animadores Paroquiais da Igreja (CAP) de Santa Luzia que estiveram como reféns dos índios Macuxi, em Roraima, na missão católica de São José do Surumu, Município de Pacaraima, chegaram ontem de madrugada em Manaus trazendo cocares e colares indígenas. Os adereços tinham um significado especial: mostrar que eles não guardavam rancores dos índios. "A gente não está com raiva do povo indígena, nós estamos decepcionados e tristes com tudo que cerca essa questão", desabafou Andreza Araújo Rezende, 25, líder do grupo.
Andreza e os colegas se referiam aos índios que rejeitam a homologação das terras por estarem supostamente manipulados por empresários e também pelo fato da imprensa local ter deturpado as informações, entre elas, afirmando que o movimento dos índios era pacífico e citando que 80% deles não queria a homologação, quando, a realidade é o contrário. "Nós tivemos no Conselho Indigenista de Roraima (CIR) e ficou comprovado que 80% dos índios são a favor da homologação contínua da terras" disse Anderson Vasconcelos 18. Um exemplo disso segundo Andreza é o fato do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, manter firme sua decisão.
A líder também se diz ressentida com o governo de Roraima que não teve qualquer "ética política",com a situação deles. "Nem mesmo uma carta com desculpas, por sermos pessoas de outro Estado, nos foi entregue", condena Andreza. Os estudantes afirmam que o movi mento é restrito apenas aos comerciantes e caminhoneiros, sem haver qualquer manifesto por parte da população que se mantém apenas assistindo. 0 grupo afirma que tudo é manipulado e encenado.
Andreza, Anderson, Gleidson Lopes, 25, Gilberto Rodrigues, Narilete Silva, 24, Dulcinéa Souza, 21, e Maik Anderson, 20, haviam chegado à missão no dia 2 para obterem experiência missionária nas aldeias.
Eles estavam hospedados na sede da missão católica São José do Surumu, em Vila Pereira, quando dia 6 a missão foi tomada por aproximadamente 200 índios revoltados com a decisão do Governo Federal em homologar a reserva Raposa/Serra do Sol, de 1,67 milhão de hectares. Por essa decisão, parte das terras que hoje são ocupadas por população de não-índios devem ser ocupadas.
Os estudantes foram feitos reféns junto com os padres Ronildo de França, César Avellaneda, missionário colombiano que chefiava os estudantes, e o irmão franciscano espanhol João Carlos Martinez, libertados semana passada.
"Nós vivemos realmente o martírio de Jesus, estivemos nas trevas mas agora estamos na luz", disse Andreza ao destacar que agora uma das primeiras providência é fazer um relatório do caso a ser encaminhado para a Policia Federal contando tudo o que passaram e testemunharam.
O grupo pretende divulgar também as fotos e as fitas sobre o caso na imprensa local e nacional, a fim de esclarecer vários pontos do episódio, dentre eles, a idéia de que o movimento dos índio foi pacífico e a falta de apoio por parte do governo de Roraima.

Dias de muito medo e agonia
Os 200 índios entraram derrubando todas as portas da missão, de acordo com relato dos estudantes. As moças se abrigaram no banheiro do quarto em que estavam, mas foram retiradas de dentro pelos invasores com a garantia de que não seriam agredidas. Os revoltosos queriam saber sobre o destino dos padres e das irmãs da missão, sobretudo os estrangeiros.
Logo depois as estudantes foram interrogadas. Dulcinéia disse que o clima ficou pior quando os índios descobriram que elas estavam mentindo ao dizer que não havia padres no local e que estavam fazendo passeio turístico.
Os estudantes contam que foram roubados em R$ 3 mil, segundo elas. Eram índios e não-índios na ação. Os não-índios traziam panos sobre o rosto. Os invasores levaram máquinas fotográficas, celulares, roupas e sapatos. "Além do dinheiro do caixa, levaram também o que nos tínhamos em mãos e as economias dos cozinheiros e dos alunos", conta Andreza.
Apesar de não terem sido agredidos fisicamente, o grupo conta que sofreu muita pressão psicológica. A todo instante pensávamos que íamos morrer", disse Narilete, principalmente quando vários deles se juntaram dentro do quarto onde elas se encontravam.
De vez em quando um deles ameaçava os jovens. Maik Anderson disse que os índios diziam que iriam matá-los e que os padres seriam enterrados vivos. "Disseram que iriam nos matar a terçadadas e a pauladas", recorda Maik.
0 choro tomou conta do grupo quando levaram o padre Ronildo para a aldeia do Contão. "Começamos a chorar porque além de termos ficado sem o nosso responsável, eles ameaçaram voltar e tocar fogo na sede", relataram.
Segundo os estudantes, esse clima tenso teria sido provocado porque os índios começaram a beber cachaça patrocinada pelos rizicultores, fazendo com que o líder deles, o tuxauá Genival Costa da Silva, perdesse o controle. Os estudantes disseram que sob o efeito da bebida deu para perceber pelas conversas dos invasores, quem estava por trás do movimento. Os comerciantes e empresários. Dulcinéia Souza diz que tudo começou a melhorar quando levaram os padres. Assim eles passaram a ficar sob a proteção dos índios pacíficos do Conselho Indígena Missionário (CIR) que foram ajudá-los depois que os agressores deixaram a missão.
Manipulados
Andreza disse que é um grupo formado por 25 malocas está sendo "manipulado" por comerciantes. São tuxauas que chegaram até a estudar na própria missão, a aprender sobre agricultura e que antes não eram contra a homologação das terras.

Uma experiência que nunca será esquecida
Os sete jovens foram para a missão aprender o que é a vida missionária, ter experiência com os índios que são ricos em cultura, saber como é o papel das missões e depois voltar e aplicar isso na comunidade paroquial. Andreza disse que todos pensam em retornar porque, embora tenha passado por uma árdua experiência, ficou um ciclo muito bom depois que foram deixados em paz pelo grupo dos Macuxi revoltosos.
É que ao ficarem sobre a proteção dos índios pacíficos, os tuxauas destas tribos os viram desamparados e prometeram cuidar deles, protegê-los como se fossem seus f lhos. Por alguns foram criados fortes laços em que o grupo de jovem passou a compartilhar dos mesmos hábitos dos índios. "A gente passou a dormir no chão com eles e afazer a refeição junto deles". O resultado dessa aproximação fez com que os índios chorassem muito quando o grupo partiu, segundo eles. (EV)

Família relembra horas e angústia

A mãe de Andreza, Antonia Rezende, 46, disse que sofreu muito nos dias em que a filha foi mantida como refém pelos índios. "Eu só pensava na possibilidade deles judiarem da minha filha", disse ao completar que acompanhava o caso direto pela TV. 0 pai de Andreza, Antonio, disse também que não dormia sonhando em reencontrar a filha. "Isso foi triste mesmo".
Marly Silva de Lima, 40, que é leiga missionária da Consolata, abraçou forte Gilberto Rodrigues. Ela se dizia feliz com a volta do grupo a quem atribui ter vindo uma missão traçada nos planos de Deus. "Eu acompanhei esse grupo há dois anos e sei como vinham, lutando", completa.
0 conselheiro do grupo, pároco Luciano Estefanini, 62, que foi buscá-los na rodoviária também viu como missão divina a experiência do grupo. Ele que já tem experiência de ter vivido 26 anos na missão de Surumu e passado por situação parecida cita como exemplo o dia em que quase foi morto por um homem branco, quando rezava em uma igreja, que fica localizada um pouco acima da localidade de Surumu. Dos índios ele diz nunca
ter sofrido nada, porque realiza trabalho junto a diversos grupos, e reafirma a posição dos estudantes de que, infelizmente, o atual grupo de índios revoltosos vem sendo "comprados pelos brancos" nos últimos anos. "Eles foram comprados pelo governo de Roraima e por fazendeiros para se colocarem contra os parentes deles, e contra a demarcação", ataca o pároco.

Funai e Incra voltam a funcionar
Apesar da reabertura dos órgãos federais, o protestos dos índios contra a homologação das terras parece ainda estar longe do fim

Gerson Severo Dantas

O Instituto Nacional d e Colonização e Reforma Agrária (Incra) e !,' a Fundação Nacional do L Índio (Funai) em Boa Vista voltaram a funcionar, ontem, após a invasão promovida por agricultores posseiros, assentados e índios contrários a homologação em área contínua da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, no nordeste de Roraima, há uma semana. Os manifestantes defendem a 'homologação da reserva em áreas descontínuas, preservando o município de Uiramutã, as zonas produtoras de arroz e manutenção das estradas abertas.
Na Funai, invadida às 7h da última segunda-feira por aproximadamente 200 índios das etnias Macuxi, Uapixana e Taurepang, o admi nistrador em Exercício, Manoel Reginaldo Tavares, responsabilizou os rizicultores (plantadores de arroz) pelo movimento deflagrado pelos indígenas, que não concordam com a homologação da Raposa/Serra do Sol em uma área contínua de 1,75 milhão de hectares, que vão desde a aldeia Raposa, no município de Normandia, até a Serra do Sol, no município de Uiramutã, fronteira com a Guiana Inglesa.
A principal queixa desses índios, a mesma dos rizicultores, é de que a homologação implicará na desativação de Uiramutã, na saída dos não-índios e no fechamento de estradas.
Vivemos muito bem aqui, não há conflito e o comércio com os brancos é bom para nós", diz o tuxaua da aldeia macuxi de Contão, município de Pacaraima, Genival da Costa Silva. Os índios só deixaram o prédio no sábado à noite, quando foram notificados pela Polícia Federal de que havia uma ordem do juiz federal Helder Girão para a desocupação do prédio.
0 tuxaua Genival Silva, por sinal, foi o responsável pela ação mais radical dos protestos, que foi o seqüestro dos padres Ronildo França e Cesar Avellaneda e do irmão franciscano João Carlos Martinez, também na segunda-feira. Na ação, os macuxi de Contão também fizeram reféns um grupo de sete estudantes amazonenses, que estavam na missão São José do Surimu para conhecer o trabalho dos :missionários da ordem Consolata. Os estudantes, quatro homens e três mulheres, chegaram ontem de manhã a Manaus, seis dias antes do previsto no programa da viagem, planejada há dois anos pelos estudantes, integrantes do clube de jovens da paróquia de Santa Luzia, no bairro do mesmo nome, Zona Sul de Manaus.
No dia do seqüestro dos religiosos, liberados na quarta-feira à tarde, os amazonenses ficaram com medo de morrer e tiveram dinheiro e objetos levados pelos Macuxis contrários a homologação em terras contínuas. "Foram momentos muito ruins, pois eles ficavam debochando de nós e dizendo que iam nos comer", lembra o estudante de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Anderson Vasconcelos, 18.

Fechamento das BRs frustrou turistas
Além do seqüestro dos religiosos e da invasão dos prédios da Funai e do Incra, o protesto de indígenas e agricultores incluiu o fechamento das BRs 174 e 401, o que bagunçou a vida de amazonenses, que estavam indo ou voltando de férias no balneário venezuelano de Margarita, ilha do Caribe que se tornou um dos principais destinos turísticos do amazonense. Conforme um agente de turismo com R$ 2 mil era possível uma família de quatro pessoas passar bem durante 15 dias em Margarita, que está em fase de baixa estação. Para se ter idéia do valor, basta dizer que R$ 2 mil é o preço de apenas uma passagem Manaus-Fortaleza-Manaus. Aproveitando os preços vantajosos, uma série de excursões foram organizadas por grupos particulares e empresas de Manaus. Neste particular, o drama da família Rosseti foi exemplo do sufoco passado por quem foi pego de surpresa pelas manifestações. Eles formaram um grupo de 30 parentes, alugaram ônibus e estações em uma praia de Margarita, onde passaram oito dias, incluindo o reveillon. 0 drama aconteceu na volta, quando foram parados por índios e não puderam entrar no Brasil. A situação empurrou os Rosseti de volta à Santa Elena do Uairén, município venezuelano onde faltou hotel para todos os turistas parados nas barreiras. Conforme uma integrante do grupo, na sexta-feira, quando a BR-174 foi liberada, já estava faltando água e comida no município. Esse mesmo integrante da excursão também estimou em cerca de 500b número d amazonenses retidos na fronteira, onde foram parados mais de dez ônibus. i, esses turistas se juntaram outros 20i que segundo autoridades de Roraima se hospedaram nos hotéis de Boa Vista.
Reforma agrária
Liberado na sexta-feira à tarde, o Incra voltou a funcionar normalmente ontem e, conforme o gerente Executivo do órgão, Lurens do Nascimento, iniciou o pagamento de 1280 créditos (financiamento) a assentados de todo o Estado. Esses créditos estavam liberados há uma semana, mas o protesto prejudicou o calendário de pagamento. Lurens criticou o movimento, que segundo ele, sequer apresentou uma pauta de reivindicação. "Fui a Brasília sexta-feira e não levei nada, pois eles não disseram o que queriam", disse.

Denuncia
Atentado à soberania nacional
Os indígenas e agricultores contrários a homologação da Raposa/Serra do Sol em área contínua, que se dizem em estado de vigília, ganharam ontem o apoio oficial do Sindicato dos Engenheiros do Estado de Roraima, que divulgou um "Manifesto ao Povo Brasileiro" onde denuncia que a homologação é um atentado à soberania nacional, a segurança e aos direitos individuais e coletivos.
Os engenheiros de Roraima, no manifesto assinado pelo presidente da entidade, Jorge Luiz Cordeiro Dias, afirmam que a reserva em área continua vai promover "o êxodo rural, aumento dos bolsões de pobreza nos centros urbanos, aumento da criminalidade e prostituição infantil, além de contribuir para o crescimento do desemprego e a desestruturação da família". "Tudo isso vai na contramão do projeto Fome Zero, prioridade do Governo Federal" diz Cordeiro Dias.

Problema divide opinião

A homologação em terras contínuas é defendida pela Igreja Católica, o Conselho Indigenísta de Roraima e 76 Organizações Não-Governamentais com atuação na Raposa/Serra do Sol. Eles argumentam que a preservação da cultura, usos e costumes dos 15 mil índios das etnias Macuxi, Uapixana, Ingaricós e Taurepangs que vivem na área só será possível se o contato com os não-índios for evitado. 0 antropólogo João Pacheco de Oliveira, do Museu Nacional e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que fazer da reserva uma área descontínua manterá um estado de dependência dos índios em relação, principalmente, aos rizicultores. A Igreja Católica, por sua vez, diz que por trás desse conflito está uma briga religiosa, pois os índios contrários a homologação em área contínua são, na maioria, evangélicos.

A Crítica, 13/01/2004, Cidades, p. C3-C4

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