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Embriaguez bioenergética

FSP, Mais, p. 8-9
21 de Jan de 2007

Embriaguez bioenergética
Brasil abraça biodiesel sem plano estratégico, dizem analistas, e pode esbarrar em barreiras ambientais à exportação

Eduardo Geraque
Da reportagem local

Todos os caminhos do biodiesel brasileiro, hoje, levam à UE (União Européia).
Ao mesmo tempo em que é grande o potencial do produto nacional de entrar em um mercado importante, barreiras econômicas, ambientais e logísticas poderão impedir que esse fluxo tenha início.
Especialistas afirmam que, ao ir com muita sede ao pote do combustível verde, os produtores brasileiros e o governo poderão ver muitas oportunidades serem perdidas, por falta de um plano estratégico.
"O Brasil ainda não exporta biodiesel, apesar de estar perto disso. Há uma série de barreiras externas que não podem ser desprezadas neste momento", disse à Folha o consultor em energia Roberto Kishinami.
A UE já anunciou sua opção pelo biodiesel. No documento "Visão para 2030", lançado no ano passado, fica claro que o objetivo do grupo europeu é chegar daqui a 23 anos com um quarto de seu sistema de transporte funcionando com combustíveis não-fósseis. Na semana passada, o bloco anunciou uma meta de redução de 20% nas suas emissões de gases de efeito estufa -novamente, com auxílio dos biocombusíveis.
Na próxima quarta-feira, nos EUA, o presidente George Bush fará seu discurso anual no Congresso. Na pauta, a importância estratégica de apostar todas as fichas no etanol.
"A Alemanha já definiu uma posição de restrição à importação de biocombustíveis que não comprovem cumprir com preocupações socioambientais", avisa o consultor.
Isso significa que óleo nenhum será comprado de lavouras onde existirem trabalho infantil ou escravo, onde houver desmatamento e uso excessivo de pesticidas, além do plantio das polêmicas sementes geneticamente modificadas.
Segundo Kishinami, a posição alemã já foi submetida aos dirigentes da UE, que deverá adotar a prática. "Essas questões são certamente ampliadas pelo lobby dos agricultores europeus, que não querem concorrência com o Brasil ou qualquer outro país competitivo".
O próprio presidente da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), Silvio Crestana, está ciente dessas dificuldades. Segundo ele, lá fora, existem hoje duas críticas principais ao país.
"A primeira é sobre a falta de garantia de um fornecimento regular. A segunda é sobre a certificação." Para o presidente da Embrapa, ligada ao Ministério da Agricultura, está na hora de o Brasil se preocupar com a questão da "acreditação".
"Quem estiver fora dos padrões terá feito o investimento e não conseguirá vender depois", afirma.
O próprio Crestana compara a construção do projeto do biodiesel brasileiro a uma casa. "Nós, muitas vezes, começamos a obra pelo telhado. Não podemos esquecer a produção de biomassa", lembra o dirigente público.
Dentro dessa falta de planejamento nacional, Weber Amaral, diretor do Pólo Nacional de Biocombustíveis, órgão também criado pelo Governo Federal que funciona no campus da USP (Universidade de São Paulo) em Piracicaba, prefere fincar bem os pés na terra.
"Antes de mais nada é bom dizer que os biocombustíveis não são a solução de todos os nossos problemas. Em escala mundial, eles vão responder por, no máximo, 20% da demanda energética. Nunca haverá uma participação maior do que essa", disse.
Para Amaral, faltam planos estratégicos que identifiquem os principais gargalos para o mercado dos biocombustíveis de uma forma geral. "O Brasil não tem, por exemplo, uma padronização do álcool que é exportado hoje", lembra.
Em 2006, foram mandados para o exterior 3 bilhões de litros de etanol. A maior parte dessa produção foi descarregada nos Estados Unidos. O biodiesel, no curto prazo, não deve pesar muito nas exportações.

Monopólio
O ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, do primeiro governo Lula, também sabe da importância de não tratar a questão do biodiesel como uma panacéia. "Temos que ter cuidados com os grupos que querem apenas se aproveitar da situação e que não estão totalmente envolvidos nesse processo", disse Rodrigues, agora professor da USP.
O ex-ministro, que coordenou um evento sobre o tema no fim do ano passado no IEA (Instituto de Estudos Avançados), diz crer no potencial da agricultura brasileira, principalmente em relação a produção de etanol e biodiesel. Para ele, isso não será o problema.
No mesmo evento, entretanto, vários gargalos internos foram discutidos pelos debatedores. Para Guilherme Dias, da FEA (Faculdade de Economia e Administração da USP) o desenho do modelo, baseado no monopólio da Petrobras em vez da gestão descentralizada do biodiesel, é algo que preocupa.
"Além disso, é preciso ter em mente que haverá uma competição entre as plantações de biomassa para óleo vegetal e para a alimentação humana. Não adianta dizer que não", afirma o economista.
Para ele, o biodiesel deve competir com o óleo diesel, dentro de uma verdadeira lógica de concorrência. "E isso não ocorre com o atual sistema nacional de leilões [pelos quais a Petrobras compra biodiesel dos produtores]", disse.

Ineficiente
Para Amaral, da USP, ainda são muitas as variáveis internas que precisam ser dimensionadas, antes mesmo da ponta da cadeia produtiva.
"Por causa da questão logística, a matéria-prima tem de estar sempre perto da indústria. Não é apenas o preço final do biodiesel que importa. É preciso saber qual o balanço energético, e de carbono, que cada uma das matérias-primas em questão apresentam."
Segundo as contas de Amaral, baseadas em vários estudos, a soja -que desponta como a matéria-prima de escolha do Brasil- é uma das piores opções, se levada em conta somente a questão energética.
Além de o volume de líquido extraído dela ser pequeno (apenas 18% do grão de soja vira óleo), ela tem uma relação de quatro para um entre a energia produzida e consumida: ou seja, um quarto do teor energético de uma saca de soja equivale ao que foi gasto para cultivá-la.

Cana campeã
O campeão nesse quesito é o etanol, que tem um índice energético médio de dez (gera dez vezes mais energia do que se consome em sua produção).
O dendê, cultivado na Amazônia brasileira, apresenta um índice 5. As variações dependem do tipo de estudo feito, que leva em conta topografia, clima e solo de cada região.
Na categoria quantidade de óleo por planta, o girassol, a mamona, o algodão, o pinhão-manso, o amendoim e o dendê estão na frente da soja. Entre todos esses vegetais, pode-se tirar de 30% a 60% de óleo vegetal de cada grão.
O Brasil, que investiu entre 2003 e 2005 a quantia de R$ 16 bilhões em projetos realizados sobre o biodiesel, vai investir o dobro nos próximos dois anos, também por essa mesma via.
Isso, com o intuito de gerar conhecimento científico de qualidade em todos os estados da Federação e ainda recursos humanos que sejam capazes de desatar os nós tecnológicos que vão surgir.
Tudo indica, porém, que é essa é a parte mais fácil de resolver dessa equação.

Questão de cultura
A soja, que avança sobre a floresta e concentra terras, caminha para dominar a matriz do biodiesel nacional

Enviado especial a Piracicaba

A tendência de a soja virar o grão hegemônico do biodiesel brasileiro pode fazer o projeto nacional dos combustíveis sustentáveis sair pela culatra.
Esse percurso desconsidera as aptidões geográficas do país. O mais natural é que um mosaico de culturas sirva de base para a produção de biomassa.
"Qualquer afirmação hoje [sobre qual o principal grão a ser usado na produção] é um pouco precipitada. Temos um mapa onde é possível enxergar as vantagens comparativas e competitivas de uma cultura sobre a outra", afirma Sílvio Crestana, da Embrapa.
O dendê, já plantado na Amazônia, será uma opção para o Norte. A soja, que ainda tem de vencer alguns problemas tecnológicos, terá força no Centro-Oeste e no Sudeste, juntamente com o girassol e o amendoim.
A empresa Brasil Ecodiesel, uma das pioneiras do programa, que é apoiada pelo governo, já tem o óleo de soja como sua matéria-prima principal, apesar de ter nascido com o objetivo de explorar a mamona.
O domínio da soja, como revelou à Folha em novembro, já ocorre no semi-árido do Piauí, onde opera a Brasil Ecodiesel. Foi lá, na cidade de Floriano, que o presidente Lula esteve para inaugurar a usina da empresa, em 2005.
A mamona, segundo o projeto original, daria emprego e renda para os colonos da região. Hoje, os agricultores familiares colhem 70% menos do que em 2005.

Desmatar é mais barato
Os empresários do agronegócio, a maioria instalados no Centro-Oeste, esperam fornecer 90% da matéria-prima para o biodiesel brasileiro. A estimativa do governo é que esse grão não passe dos 60%.
Os 30% de diferença podem ser determinantes para que um dos grandes temores do mercado internacional se confirme ou não nos próximos anos.
A dúvida é se a soja vai ou não brigar ainda mais com as florestas e o cerrado, como tem ocorrido nos últimos anos.
A questão ambiental, admite Crestana, tem sido um grande quebra-cabeça. "O grande jogo é aproveitar os 50 milhões de hectares de pastagens pouco produtivas que temos."
Segundo o presidente da Embrapa, a conta é a seguinte: "Nos próximos 30 anos será necessária a produção de 100 bilhões de litros de biodiesel. E, para isso, vamos precisar de 40 milhões de hectares."
Ele mesmo indica o obstáculo que precisa ser transposto. "A questão pega no investimento. Para recuperar 20 milhões de hectares pouco produtivos são necessários R$ 40 bilhões. Ainda está mais barato derrubar floresta."

Impactos regionais
Ao mesmo tempo em que olha para as questões nacionais e internacionais do projeto do biodiesel brasileiro, o Pólo Nacional de Biocombustíveis está participando de um projeto em escala regional, em pequenas e médias propriedades.
"O biodiesel não vai resolver todos os problemas do mundo. Mas também não podemos ficar de fora dele", afirma Arnaldo Bortoletto, diretor da Coplacana (Cooperativa dos Plantadores de Cana de Açúcar do Estado de São Paulo). O projeto entre o pólo e os produtores de Piracicaba já está em andamento. A idéia é aproveitar parte da terra para produzir biodiesel.
"A matriz será a soja, por causa do custo-benefício" admite Bortoletto. A oleaginosa vai conviver com a cana-de-açúcar, que continua sendo o produto principal dos 3.500 cooperados na macrorregião de Piracicaba.
"Nosso produto principal é a cana. O biodiesel é apenas um projeto complementar", avisa o dirigente do grupo. Até o fim do ano, a esmagadora já deve entrar em funcionamento.
O farelo da soja, que será produzido em grande quantidade por causa da baixa quantidade de óleo presente nos grãos, será usado em uma fábrica de ração.
A expectativa é que o biodiesel possa ser trocado, no futuro, com os fornecedores dos plantadores de cana. As instalações poderão produzir até 15 mil litros de óleo ao dia. "Uma das nossas preocupações também é com a qualidade do produto", afirma Bertolotto.
Tanto a soja como a cana-de-açúcar, em termos energéticos, poderão encontrar grandes mercados no cenário internacional nos próximos anos. Mesmo considerando que a UE fez sua opção pelo biodiesel e não pelo etanol -os europeus temem a dependência de uma única commodity, seja ela o petróleo hoje ou a cana amanhã.
"O álcool de cana-de-açúcar é biocombustível de maior produtividade no mundo (6.000 litros por hectare por ano) e de melhor balanço energético (8 a 9 joules de energia renovável por joule de energia fóssil gasta), afirma Luís Augusto Cortez, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Estratégico da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
O grupo do pesquisador já fez um grande estudo sobre o etanol no Brasil, que foi apresentado ao CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos), ligado ao MCT (Ministério de Ciência e Tecnologia).

Áreas protegidas
A pesquisa monta um cenário otimista para a cana-de-açúcar no Brasil. Até 2025, com um investimento pesado anual, de cerca de R$ 10 bilhões, é possível chegar a uma produção de 104 bilhões de litros por ano, segundo as estimativas do grupo de Campinas. Hoje, a produção brasileira é de 3,6 bilhões de litros aproximadamente.
De acordo com Cortez, isso pode virar realidade por meio dos chamados arranjos produtivos. Seria possível construir 615 deles no Brasil nessas próximas quase duas décadas.
Cada uma dessas unidades de produção de cana ocuparia uma área de 420 mil hectares e produziria 2,55 bilhões de litros de álcool por ano.
"E toda a questão ambiental já está prevista. Haverá a manutenção das áreas protegidas", explica o professor. Talvez, segundo Cortez, a expansão ocorra em detrimento das zonas de soja. "Outra opção é usarmos as áreas já desmatadas que não estão sendo mais totalmente aproveitadas", avisa.
Ainda dentro dessas projeções, todo esse álcool, lá em 2025, renderia US$ 31 bilhões em exportação para o Brasil e um aumento no PIB (Produto Interno Bruto) da ordem R$ 153 bilhões. "O impacto no emprego também será grande."
Para o consultor em energia Roberto Kishinami, todos os dilemas do projeto do biodiesel brasileiro passam por um único lugar. "No geral, 99% dos problemas estão na falta de coordenação. Temos de fazer as escolhas dentro das nossas possibilidades. Temos de ter foco e não necessariamente buscar a solução apenas financeira. Devemos olhar para as várias tecnologias e enxergar que umas são mais concentradoras [de terra e renda] que outras".
Na visão do consultor, um ex-diretor do Greenpeace Brasil que já fez alguns trabalhos na África, em países produtores de cana-de-açúcar, a educação é outro ponto central. "Sem isso, o risco aqui é criar um novo grupo de excluídos." (EG)

FSP, 21/01/2007, Mais, p. 8-9

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