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Em terra de surdos, gritar não resolve

OESP, Vida, p. A19
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
23 de Mar de 2006

Em terra de surdos, gritar não resolve

Marcos Sá Correa

O livro tinha tudo para se chamar Não Foi por Falta de Aviso. Mas seu título, ainda mais pálido que a capa verde-abacate, parece feito de propósito para pegar o leitor de surpresa. Dentro, as 216 páginas de sermões ambientais tacham de "tarados" os caçadores que abasteciam as colônias gaúchas de sabiás para as grandes festas da passarinhada com polenta. De "idiotas" os madeireiros. De "negociatas" as políticas públicas. De "farsa" o Dia da Árvore. De "horroroso" o futuro do País. De "incuráveis" a indolência, a preguiça e a imprevidência que inspiram no Brasil a exploração da natureza - desde que os marinheiros da frota de Pedro Álvares Cabral pisaram no litoral baiano e colheram os palmitos que reforçariam o serviço de bordo na viagem para a Índia. Em outras palavras, fechado, O Rio Grande do Sul e a Ecologia soa manso. Aberto, rosna.

É obra póstuma, com textos de Henrique Luiz Roessler, "um naturalista contemporâneo". Ou melhor, de um contador que, empregado na Capitania dos Portos, trabalhou de graça como fiscal de caça e pesca. Roessler criou em 1955 a União Protetora da Natureza, uma ONG pioneira. E escreveu no suplemento rural do jornal Correio do Povo até às vésperas de morrer, em 1963. Três regimes e quatro Constituições passaram pela política brasileira desde que ele pôs o ponto final em suas 301 crônicas semanais. De lá para cá, podem ter desaparecido as matas que ele tentou preservar. Mas as denúncias que ele fez continuam novas em folha.

Como no caso da reforma agrária, que se aliou ao desmatamento. "Logo após a concentração dos sem-terra na Fazenda Sarandi, seguida da expropriação da mesma pelo Estado, atacou-se, inusitado e afobado, o trabalho de extração da madeira de lei existente da referida gleba", ele conta, citando uma CPI na Assembléia Legislativa. Na época, governava o Rio Grande do Sul o engenheiro Leonel Brizola, padroeiro do Movimento dos Agricultores Sem-Terra, o Master.

Esse avô do MST foi a vanguarda das madeireiras nas terras devolutas do Estado. "Os intrusos derrubavam as árvores e as vendiam às serrarias, que ali perto ou até dentro das áreas protegidas se estabeleciam", informa Roessler. "E a própria administração começou a compartilhar a devastação, vendendo as célebres árvores 'desvitalizadas', chamuscadas pelo fogo ou 'tombadas', sem que nos contratos constasse a maneira do tombamento, que geralmente era produzido pelos machados."

E ai do Serviço Florestal se abrisse inquérito contra as invasões. "Imediatamente, a Imprensa, a Assembléia Legislativa e todos os 'homens de corações bem formados' se bandeavam para o lado dos pobres agricultores sem terra", diz ele.

Como fiscal voluntário, Roessler viajava sem parar pelo Rio Grande. E ia vendo "caminhões-reboques levando madeira para os depósitos e postos de embarque", o "céu toldado pela fumaça dos incêndios florestais e pelas queimadas das roças", as noites iluminadas "pelo clarão das fogueiras e braseiros nas encostas e cumes dos morros" e as "serras mecânicas derrubando árvores centenárias em poucos minutos".

Era tudo feito às claras. Mas, a julgar pelo silêncio oficial, só ele parecia achar "desconcertante" que o "Instituto Gaúcho da Reforma Agrária abriu concorrência pública para vender 2.568 árvores de grande porte, sendo 1.117 pinheiros, 1.078 canelas, 80 cedros, 1 cabreúva, 20 tarumãs, 148 pessegueiros-do-mato, 37 açoita-cavalos, 11 ipês, 38 angicos, 28 cangeranas e 10 louros, localizados em terras públicas, no município de São José do Rio Preto". E aonde não chegava a reforma agrária, havia o Serviço de Proteção aos Índios, pai da Funai, traficando madeira nativa nas reservas de Nonoai, Guarita, Rio Ligeiro e Cacique Doble. Há quase meio século, Roessler fez mais que o possível para "alarmar a opinião pública" e "convencer o poder público da necessidade de providências" contra a malversação do "mísero restolho de nossas florestas". Até hoje não o ouviram.

Marcos Sá Correa, Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, Vida, 23/03/2006, Vida, p. A19

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