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Em defesa do direito linguístico

Folha de Boa Vista - http://www.folhabv.com.br/fbv/noticia.php?id=67856
Autor: Diego Barbosa da Silva *
10 de Ago de 2009

A Unesco lançou em fevereiro deste ano a terceira edição do Atlas das Línguas em Perigo no Mundo, coordenada pelo linguista australiano Christopher Moseley. Nessa nova edição, cerca de 2.500 das 6.909 línguas do mundo estão em perigo, sendo 32,3% nas Américas. Em comparação com os números de línguas faladas em cada continente, o atlas nos revela que cerca de 90% das línguas autóctones das Américas estão na lista, 40% das asiáticas, 25% das oceânicas e 20% das africanas.

No Brasil, hoje, de acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem cerca de 225 sociedades indígenas e aproximadamente 55 grupos de índios isolados, alguns nunca contatados, sobre os quais ainda não há informações objetivas. Estima-se que essas sociedades correspondem a 190 línguas indígenas faladas no país (em 1500 eram faladas 1100 línguas, segundo cálculo do linguista Aryon Rodrigues), de pelo menos, 30 famílias linguísticas diferentes. Línguas estas, todas indígenas e ameaçadas, de acordo com a Unesco.

A nova edição do atlas nos chama atenção não apenas pela quantidade de idiomas em risco, mas também pelo debate que o tema pode proporcionar. Afinal, as línguas são entendidas como parte da cultura e estão submetidas às transformações. Dessa forma, poderíamos encarar com certo grau de naturalidade o desaparecimento de qualquer língua, assim como o surgimento de novas, baseados na ideia de transformação cultural.

Um exemplo disso é o latim, que era falado pelos romanos e se transformou, a partir do contato com outros povos, nos idiomas neolatinos como conhecemos hoje, sem mencionar a própria língua portuguesa, com as variedades brasileira e européia. Outros exemplos são as mais de cem línguas de sinais utilizadas hoje no mundo, desde a primeira criada por Charles l´Epée no século XVIII ou ainda as línguas crioulas que surgiram a partir do contato linguístico através da colonização.

As línguas se transformam, pois são partes do homem e por isso modificam e são modificadas a partir da realidade representada. Destarte, Claude Hagège, um linguista francês, afirma que "as línguas vivas não existem em si, mas por e para os grupos de indivíduos que delas se servem na comunicação cotidiana". No entanto, não podemos ignorar a rápida transformação do mundo, nos últimos anos (comunicação, transportes, economia etc) e o acelerado processo de desaparecimento de línguas em um curto período de tempo.

Sem dúvida, a extinção de uma língua é uma perda incomparável e inestimável para a diversidade humana, tão irrecuperável que Moseley, o coordenador do Atlas, a compara com o desaparecimento de espécies de fauna e flora e outro linguista, David Crystal, afirma que "os ecossistemas mais fortes são aqueles que têm maior diversidade, pois a uniformidade crescente traz perigos para a sobrevivência de uma espécie a longo prazo". Embora haja diferentes razões para a extinção de línguas, atualmente a mais comum é a morte dos últimos falantes de uma língua como aconteceu com eyak, após a morte de Marie Smith Jones, no Alasca, no ano passado.

Porém, como impedir tal fato? A Unesco defende a documentação e gravação de conversas para preservação. Todavia, muitas vezes exagera-se ao defender a preservação a todo e qualquer preço, pois não podemos nos esquecer também de que uma língua pode desaparecer quando o indivíduo ou grupo de indivíduos que a fala não queiram mais se expressar ou representar a realidade ao seu redor sob a forma dessa língua e prefiram substituí-la por outra, ou ainda modificá-la a partir do contato linguístico.

Vale ressaltar que existem vários sentidos para preservação e não estamos nos referindo àquela que consiste apenas em registrar, gravá-la e documentá-la, mas sim de manter a língua utilizada viva, como patrimônio, expressão e valor de um povo, afinal como Crystal afirma "se a diversidade é um pré-requisito para o sucesso da humanidade, então a preservação da diversidade linguística é essencial, pois a línguas está no cerne do que significa ser humano".

Portanto, dentro desse sentido de preservação, devemos ter sempre em mente que o indivíduo-falante deve ter o direito de escolher qual língua quer utilizar, seja ela dos seus ancestrais, materna ou de maior prestígio nacional e internacional, porém não nos resta dúvida que o Estado deve proporcionar meios para que essa escolha seja feita em pé de igualdade entre as línguas. O Estado deve garantir que o indivíduo de uma língua ameaçada possa continuar a utilizar seu idioma, se assim desejar, e não a substitua por outra que possa asseverar melhor cidadania e acesso à educação e outros direitos.

Dia nove de agosto é o Dia Internacional dos Povos Indígenas e, nesse debate polêmico sobre direito linguístico está implícito outro, mais amplo, referente ao sentido de ser índio no Brasil e também o direito de pertencimento a uma identidade outra. Afinal, assim, como você não deixa de ser você ao trocar de roupas, o índio não deixa de ser índio ao usar bermudas, navegar na internet ou falar português.

* Cientista Social

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