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Em cem dias de governo, um século de retrocesso na política indigenista brasileira

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Autor: PAULA, Juliana de
12 de Abr de 2019

Em cem dias de governo, um século de retrocesso na política indigenista brasileira

Por Juliana de Paula
sexta-feira, 12 abril 2019 18:43 7 Comentários

O governo Bolsonaro, ainda durante a campanha, prometia que não iria demarcar "um centímetro quadrado a mais" de terras indígenas. As promessas começaram a ser cumpridas no dia 1o de janeiro. Com a edição da MP no 870/2019, que estabeleceu a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios, o novo governo retalhou a política indigenista vigente desde a redemocratização do país. Bolsonaro transferiu a Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1967, do Ministério da Justiça, terreno teoricamente neutro, para o Ministério da Mulher Família e Direitos Humanos. Contudo, retirou da Fundação a competência para identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, atribuição deslocada para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

Retrocedemos mais de cem anos. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado em 1910, esteve durante quase toda a sua existência subordinado ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, com exceção do período entre 1934 a 1939, quando esteve no Ministério da Guerra. O órgão foi extinto em 1967, após o Relatório Figueiredo registrar os descalabros cometidos pelo SPI. O relatório revelou as atrocidades praticadas pelo Estado contra os povos indígenas: tortura de crianças, doação de roupas contaminadas por varíola, envenenamento de aldeias inteiras, indígenas vivendo em regime de escravidão. Foi criada, então, a Funai.

A história, ao que parece, não serviu de lição e novamente os direitos das minorias são entregues e submetidos à conveniência política das maiorias pertencentes à bancada ruralista, que dominam o Ministério da Agricultura e Pecuária. A bancada já propôs ao menos 25 Projetos de Lei que ameaçam a demarcação de terras indígenas. Seus integrantes fazem declarações públicas contra os direitos indígenas.

"A história, ao que parece, não serviu de lição e novamente os direitos das minorias são entregues e submetidos à conveniência política das maiorias pertencentes à bancada ruralista, que dominam o Ministério da Agricultura e Pecuária".
A nova estrutura da política indigenista inaugurada por Bolsonaro é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Entre outras coisas, ao editar a MP 870/2019, o direito a consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, tratado internacional ratificado pelo Brasil desde 2004, foi ignorado. Além disso, o retrocesso social é óbvio ululante.

O Ministério Público Federal também se manifestou contrário à nova estrutura administrativa. De acordo com o coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, Antonio Carlos Alpino Bigonha, "a Constituição da República diferenciou as atividades produtivas indígenas do conceito de agricultura, nos termos dos arts. 187 e 231, respectivamente. A transferência das atividades de demarcação de terras indígenas para o MAPA submete os interesses dos índios, disciplinados no Título da Ordem Social da Carta Magna, aos interesses agrícolas de que trata o Título da Ordem Econômica e Financeira".

Recentemente Bolsonaro vem prometendo rever demarcações e abrir as terras indígenas para a mineração. Como os direitos dos índios estão protegidos pela Constituição, a exigir, para qualquer ação mais contundente, revisão dos parâmetros constitucionais vigentes, a "brecha" para viabilizar essas atividades consiste, agora, em requentar narrativas sobre supostos laudos antropológicos fraudados e índios miseráveis e manipulados ideologicamente por organizações "internacionais" para impedir o desenvolvimento nacional. Se Bolsonaro conhecesse melhor a realidade indígena saberia que para os índios a riqueza é manter a floresta e suas culturas. Tampouco os índios precisam de quem quer que seja para resistir e lutar pelos seus direitos, tão atrozmente pisoteados durante o processo "civilizatório". Lutar pela própria vida é imperativo humano.

"Se Bolsonaro conhecesse melhor a realidade indígena saberia que para os índios a riqueza é manter a floresta e suas culturas."
Quanto às ameaças ainda não ultimadas, é bom lembrar que terras demarcadas e homologadas são o que o direito nominou como ato jurídico perfeito e direito adquirido, os quais não podem ser modificados pela vontade arbitrária e de ocasião de governos novos ou velhos. No mais, demarcar terras é dever imposto ao Poder Executivo pela Constituição, que assegurou aos índios o direito originário sobre as terras que ocupam, além de garantir a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. A Constituição, essa nobre soberana, também rompeu com qualquer possibilidade de integracionismo e assimilacionismo dos índios à comunhão nacional. Não podemos retroceder mais. É preciso aprender com os desastres do passado. No caso dos povos indígenas não bastará reescrever livros: a história está escrita e inscrita na carne dos índios e da sociedade brasileira. Não é possível esquecer. Nem silenciar.

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