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Em busca do começo do mundo

O Globo, Revista O Globo, p. 18-23
Autor: SALGADO, Sebastião
18 de Set de 2005

Em busca do começo do mundo
Sebastião Salgado mostra imagens inéditas no Brasil do projeto "Genesis", uma viagem ao início da Terra

Por Fernanda da Escóssia, da aldeia Kuikuro, no Xingu

O SOL DO MEIO-DIA ESTÁ A PINO NA aldeia dos índios kuikuros, no Parque do Xingu, norte de Mato Grosso. O calor sobe do chão de terra. Na sombra de uma barraca armada no meio da aldeia, os índios pintam o corpo com tintura de urucum. Preparam-se para o Quarup, a cerimônia de luto das tribos do Xingu. Entre os brancos que acompanham a festa, há um muito branco, de calça, camisa e chapéu sujos da terra vermelha da aldeia, e equipamento a tiracolo. O fotógrafo Sebastião Salgado foi ao Quarup em busca de imagens para seu mais novo projeto: "Genesis", um conjunto de registros do planeta Terra em sua origem, tal como era no início dos tempos. Algumas dessas imagens, inéditas no Brasil, foram cedidas pelo fotógrafo ao GLOBO para esta reportagem.
- Estou buscando o planeta do início. Ele ainda existe. Nós destruímos 54% do planeta, mas 46% ainda estão, de uma maneira geral, como ele foi concebido - diz Salgado.
Pela primeira vez, animais e natureza como objeto de trabalho
O fotógrafo começou no ano passado a viagem por essa Terra primordial. Pela primeira vez, seu trabalho mostrará o planeta com animais e paisagens - muitas vezes, sem o homem que nele habita. Até hoje, o objeto das lentes de Salgado, um dos fotógrafos mais premiados do mundo, defensor da chamada "fotografia engajada", foi o homem e tudo o que lhe diz respeito - seu trabalho, sua terra e sua vida.
"Genesis" mostrará a natureza em equilíbrio, seja na força da erupção dos virungas, vulcões africanos localizados entre Uganda, Ruanda e Congo, seja na dança das baleias da Patagônia. Essas imagens já foram captadas para o projeto. O livro terá quatro capítulos: um sobre paisagens, um sobre animais e dois sobre grupos humanos. No capítulo "Arca de Noé" estará o resultado da viagem pelas Ilhas Galápagos, o arquipélago do Pacífico que inspirou Charles Darwin a desenvolver a teoria da evolução das espécies. Salgado viajou pelas 13 ilhas e fotografou iguanas, tartarugas e pássaros. Com as tartarugas, uma descoberta: para chegar perto delas, é preciso se ajoelhar, pois os animais fogem de quem se aproxima de pé.
O livro é um projeto de oito anos, realizado em parceria com a Unesco. Parte do material já começou a ser publicada em revistas como "Paris Match" (França) e "Rolling Stone" (EUA). As fotos serão utilizadas também num programa educacional criado em parceria com a Unesco do Brasil. A Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) é uma das patrocinadoras do projeto e do programa educacional, junto com a Unesco. Um projeto piloto, usando as fotos, será testado no ano que vem em escolas de Vitória, no Espírito Santo.
- Vamos tentar aplicar o projeto no resto do Brasil, e a Unesco vai distribuir gratuitamente, sem direito de autor, no mundo inteiro, as fotos desse mundo preservado - diz o fotógrafo.
A próxima parada de Salgado é a Namíbia, para fotografar povos antigos do deserto, como os himbas. Depois, ele irá à Etiópia e ao Sudão.
O QUARUP ENTROU NO "GENESIS" DE Sebastião Salgado como um pedaço da origem do Brasil. A cerimônia é a encenação de uma lenda da tribo kamaiurá que representa o mito da criação e a busca de uma explicação para o que está depois da morte. Na lenda, o índio Mavutsinim tenta fazer com que os mortos voltem à vida: corta troncos de madeira - quarup quer dizer tronco ao sol - carrega-os para a aldeia e enfeita-os como se gente fossem, para que revivam. Até hoje, os troncos pintados no Quarup representam mortos ilustres ou queridos das tribos do Xingu.
O fotógrafo, que nunca estivera no Xingu, ficou dois meses na região. Viajou com a mesma dupla que o acompanha nas andanças pelo mundo: a mulher, Lélia Wanick Salgado, sua colaboradora em todos os projetos, e Jacques Barthermy, auxiliar, produtor e guia de segurança que o ajudou, por exemplo, em escaladas arriscadas na Antártida. O grupo esteve em três aldeias: dos índios waurá, kamaiurá e kuikuro - onde se hospedou na oca do cacique da tribo, abrigo também de pesquisadores que trabalham na região. Salgado viu dois Quarups e, num deles, ganhou dos índios uma alcunha que significa "menino passarinho".
- Foi por causa da careca e das sobrancelhas brancas - diz o fotógrafo, rindo.
Salgado fotografou o Quarup e seus personagens, como as virgens que, depois da primeira menstruação, passam um ano fechadas nas ocas, sem tomar sol nem cortar o cabelo. Na festa, encerram um rito de passagem: dançam, cortam os cabelos e estão prontas para se casar. As homenagens aos mortos duram toda a madrugada. O Quarup termina com o torneio de huka-huka, um jogo de lutas entre os guerreiros da tribo anfitriã e os de aldeias convidadas para a festa. Dos caciques do Xingu, Salgado ouviu relatos de ameaças ao parque de 2,8 milhões de hectares, criado em 1961 por decreto do então presidente Jânio Quadros, depois de anos de trabalho dos irmãos Villas-Bôas na região.
As principais ameaças são o avanço descontrolado de madeireiras e plantações de soja, além do risco de poluição dos rios. Salgado defende um movimento nacional em defesa do parque, que considera referência cultural para o Brasil e a humanidade. Ele conta que desde menino ouvia falar do Xingu, área que entrou no imaginário do Brasil depois da Expedição Roncador-Xingu, lançada por Getúlio Vargas no final da Segunda Guerra para desbravar o Centro-Oeste e liderada por Orlando Villas-Bôas.- O Xingu é um pedaço do Brasil que tem de ser preservado. Para minha geração, é importantíssimo - diz Salgado, um economista que nos anos 70 trocou a carreira na Organização Internacional do Café, em Paris, pela fotografia.
Lá trabalhou para agências fotográficas como Gamma e Magnum. Em 1981, flagrou o atentado ao presidente americano Ronald Reagan. Seu primeiro livro foi sobre índios e camponeses da América Latina ("Outras Américas", 1984). De lá pra cá, o foco de seu trabalho tem sido o homem no mundo em desenvolvimento. É embaixador do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e membro da Academia de Artes dos Estados Unidos.

Salgado, que nunca estivera no Xingu, ficou dois meses na região, fotografando rituais indígenas
O mineiro Salgado, de 61 anos, levou para sua cidade a preocupação com o planeta: ele e Lélia criaram em 1998 em Aimorés, no Vale do Rio Doce, o Instituto Terra, uma ONG que trabalha na recuperação da Mata Atlântica e já plantou mais de 500 mil árvores na região. Salgado planeja levar índios do Xingu para oficinas de preparação de sementes no Instituto Terra.Outro projeto realizado no Xingu é um calendário de 2007 com imagens das tribos, a ser lançado no ano que vem. Nos fundos da aldeia dos kuikuros, à guisa de estúdio, foi montada uma meia-parede de palha para servir de fundo para as fotos do calendário. Por lá passam os principais personagens da tribo para servir de modelo. A renda será revertida para as tribos. Entre as fotos no estúdio de palha e as visitas às aldeias, dois meses se passaram. Para o trabalho, foram necessários a autorização da Funai e o consentimento das tribos. O Quarup, no livro de Salgado, é parte do capítulo intitulado "O homem antigo", sobre populações que mantêm um modo de vida tradicional. Da festa sai também a lição da "pax xinguana" - celebrada pelas tribos há 300 anos, para pôr fim às guerras na região.Quando começa o Quarup, ao cair da tarde de uma quinta-feira, os guerreiros tomam conta do centro da aldeia. O vermelho do urucum se mistura com as cores das miçangas que enfeitam os guerreiros. Assim como as paisagens e os animais do "Genesis", o Xingu é fotografado em preto-e-branco - para Salgado, as imagens em preto-e-branco são "abstrações em si mesmas", e cada pessoa é convidada a imaginar as cores a partir dali. E, a quem se admira do colorido da festa, o fotógrafo lembra que seu Quarup terá cores diferentes:
- Vai dar lindos tons de cinza.
A jornalista esteve no Parque do Xingu nos dias 25 e 26 de agosto, a convite da Funai

Quando eu era menino, tinha o sonho de vir ver o Quarup, que para mim representa um pouco a pré-história índia do Brasil"

A pré-história do Brasil em foco

Por Fernanda da Escóssia

Dormir, só em rede; banho, só de rio; e comunicação com o resto do mundo, só pelo rádio. Uma antena parabólica instalada na aldeia e um gerador permitem, às vezes, ver televisão. Para incluir um sonho de menino - o Xingu e o Quarup - em seu novo livro, Sebastião Salgado teve de aprender e apreender a rotina dos índios. Não parece muito difícil para quem já foi a mais de cem países revelando a vida de grupos humanos. Ao mesmo tempo, foi uma estréia para o fotógrafo, que nunca estivera na região. Salgado falou sobre seu novo projeto, "Genesis", e fez um apelo pela preservação do Parque do Xingu.

Qual o seu roteiro de viagem até agora?

Sebastião Salgado: Comecei em Galápagos, passei dois meses e meio lá, fazendo tartarugas, iguanas, vulcões, pássaros. Tive autorização do Parque Nacional de Galápagos. Eu tinha um barco só para mim e viajei por todas as ilhas. Estive nos virungas, os vulcões na África, entre Uganda, Ruanda e Congo, fazendo vulcões em erupção e gorilas de montanha. Fiz as baleias franco-austrais na Patagônia, estive em janeiro e fevereiro na Antártida e estamos indo para a Namíbia. Devo chegar a Paris ainda em setembro, no fim do mês tenho uma exposição e dia 29 vamos para a África, trabalhar com outras tribos.

O que o senhor espera mostrar com o projeto "Genesis"?

Salgado: É um trabalho que vai levar ao todo oito anos, e eu estou buscando o planeta do início. Ele ainda existe. Nós destruímos 54% do planeta, mas 46% ainda estão, de uma maneira geral, como o planeta foi concebido. O homem passou por muitas dessas regiões, mas não conseguiu destruí-las. No livro, vamos mostrar os pólos - só o Pólo Sul tem uma superfície maior que a do Brasil - os grandes desertos, as grandes cadeias de montanhas, uma grande parte da floresta tropical, tanto na América Latina como na África, como na Papua-Nova Guiné, são as florestas frias do Sul, as florestas frias do Norte. Eu estou buscando, e ainda vou buscar durante oito anos, esse planeta do início.

Por que o senhor decidiu incluir o Quarup e o Xingu em seu novo livro?

Salgado: O Xingu significa muito, principalmente para a gente que é brasileiro. O Xingu, para a minha geração, representa o primeiro contato forte do Brasil com o mundo indígena. Nos anos 50, quando eu era menino, na época de Getúlio Vargas e Juscelino (Kubitschek), quando começou a aparecer o grande contato com o mundo indígena, eu tinha o sonho de vir ver o Quarup, que para mim representa um pouco a pré-história índia do Brasil. Ele conseguiu preservar de uma maneira muito forte, até hoje, esse lado. A primeira vez que eu vim ao Xingu e vi o Quarup foi agora, quando houve um Quarup muito bonito na tribo waurá. Para a minha geração era importantíssimo, mas eu nunca tinha trabalhado aqui na região.

Mesmo incluído nesse planeta preservado do "Genesis", o Xingu convive hoje com muitas ameaças. Acha que é possível detê-las?

Salgado: Esse mundo do Alto Xingu é um mundo que todos nós, brasileiros, vamos ter que preservar. Vamos ter que lutar muito e ajudar essas tribos a preservar a tradição delas, porque há uma ameaça muito grande contra elas. Existia uma grande quantidade de florestas, até pouco tempo, próxima daqui. Com a invasão da soja, num país onde o importante é o lucro, é a ganância, houve uma detonação das florestas periféricas. As nascentes dos rios, que ficam fora dos limites do parque, estão sendo poluídas. Tem um projeto de construção de duas barragens que foi parado, um movimento dos indígenas parou a construção. A barragem é a morte do rio. Isso é uma civilização aquática. Eles não comem animais de terra, eles só comem peixe, tomam quatro, cinco banhos ao dia, todas as fábulas deles vêm do rio. Sendo o Quarup e as tribos do Xingu uma grande referência nacional, nós temos que preservar isso, e estaremos preservando um pouco da História do mais profundo Brasil.

O senhor está acompanhando a crise política no país e o que está acontecendo com o governo Lula?

Salgado: Não, não estou. Estou aqui há mais de um mês, não estou acompanhando e não queria comentar.

O Globo, 18/09/2005, p. 18 a 23

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