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Em busca do Brasil global

CB, Opinião, p. 11
Autor: MARZAGÃO, Augusto
02 de Fev de 2004

Em busca do Brasil global

Augusto Marzagão
Jornalista e autor do livro A semeadura e a colheita (Ed. Ao Livro Técnico)

Numa primeira análise, o estilo Lula de pensar e governar o Brasil tem acentuado os paradoxos, as contradições, as disparidades, os altos e baixos e os enigmas vindouros do nosso destino de país emergente. É que o presidente petista chegou logo apostando na maior presença e influência do Brasil no plano do relacionamento e das decisões internacionais, enquanto aqui dentro, nas fronteiras internas do país real, continuávamos enfrentando problemas político-administrativos, econômicos, sociais e tantos outros ainda fortemente inibidores do nosso salto decisivo de desenvolvimento sustentado. Quer dizer, o presidente Lula passou a trabalhar na superexposição das nossas credenciais de vanguarda deixando as carências e os atrasos da retaguarda doméstica para as soluções do seu governo. Parece evidente que o Brasil precisa, em algum momento, encaixar essas duas metades hoje desniveladas, para poder cumprir, de forma consistente e eficiente, os seus propósitos de liderança ou ao menos de proeminência no restrito clube das nações emergentes.

Na mídia nacional são freqüentes os prognósticos de que estamos fadados a compor com a China, a Rússia e a Índia um próximo quarteto de potências mundiais e, nesse contexto, o presidente Lula aparece encarnando uma posição providencial e estelar. Nem por isso, porém, nós brasileiros podemos esquecer os grandes obstáculos que, intramuros, ainda temos pela frente, como a considerável massa de famintos e desempregados, a péssima distribuição de renda, as precariedades da infra-estrutura produtiva, a insegurança pública, o crime organizado, a baixa qualidade educacional, a rarefação da poupança interna, o endividamento, os tropeços e conflitos da tentativa de reforma agrária e variadas categorias de excluídos sociais.

Não deixa de ser ilustrativo, por exemplo, a crescente participação de grupos indígenas na disputa da propriedade e posse de terras, seguindo os passos e a palavra de ordem invasora do MST. O cenário dessas refregas contrasta surrealisticamente com o Brasil do século 21; tribos incontroláveis invadem fazendas e expulsam os seus donos, matam o gado e destroem plantações, bloqueiam estradas, desafiam a Funai, resistem às decisões judiciais para a desocupação das terras, fazem reféns em suas encenações de guerra, tudo em nome de reivindicações que ultrapassam às vezes a questão dos legítimos direitos indígenas e remontam ao tempo do descobrimento do Brasil.

Houve tempo em que a imagem do Brasil no exterior vivia maculada por acusações de massacre e genocídio de nossas etnias indígenas sob as vistas complacentes das autoridades governamentais. E o que se vê hoje, na verdade, é uma geração crescente de índios de muitas tribos exigindo uma política bem articulada (e sem preconceitos) do governo para que melhor se integrem à sociedade e à realidade nacionais, com a necessária aquisição da cidadania plena através, ao mesmo tempo, de uma maior proteção do Estado e de um comportamento menos ressentido e belicoso de outros núcleos indígenas.

Esse capítulo indigenista (e aqui haveria que falar também do abominável trabalho escravo) aqui aparece apenas para ressaltar a complexidade que acompanha o processo de desenvolvimento do país, dentro do qual se entrechocam as forças progressistas e os fatores naturais ou artificiais que, de várias maneiras, entravam os impulsos do avanço. Tudo começa, aliás, com a continuidade da nossa expansão demográfica (hoje bem menor, porém ainda expressiva), uma problemática bola de neve alimentada sobretudo pela população mais pobre do país.

Nenhum governo, civil ou militar, se preocupou sequer em administrar uma política de planejamento familiar, graças à qual as famílias carentes pudessem ao menos tomar conhecimento de que não estão obrigadas, como um decreto do destino, a gerar proles numerosas e fadadas à pobreza e à marginalização social. O novo ministério de Lula assume, apesar da responsabilidade de reduzir a assimetria e o hiato existentes entre o Brasil ainda distante das nações centrais e o país que o atual presidente da República pretende colocar na primeira linha das potências emergentes, para mapear, inclusive, nova geografia do comércio mundial.

É arriscado dar um salto decisivo para o futuro somente usando a retórica das nossas consideráveis potencialidades no diálogo ou nos entreveros com as lideranças dos países ricos, nem basta organizar e liderar uma frente de países periféricos para estabelecer uma massa crítica capaz de alterar fundamentalmente as regras desiguais e injustas de convivência e interação com a elite da comunidade internacional. O Terceiro Mundo viável, ou seja, hoje o máximo de vinte nações do planeta, terá que se livrar das suas piores vulnerabilidades como condição sine qua non para sair do atoleiro de suas dependências externas e de suas insuficiências internas.

Vejamos como se passam as coisas num país de desenvolvimento desequilibrado e instável: as exportações brasileiras, por exemplo. Nossas vendas para o exterior representam somente 1% do comércio mundial, mas agora estamos com vantagens de produção e de competitividade para aumentar sensivelmente esse volume insignificante. Entretanto, o que acontece na frente interna? Acontece a crise das infra-estruturas de apoio: faltam rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, armazenagem, marinha mercante própria, energia elétrica, burocracia ágil e outros componentes do esforço exportador na escala e na modernização tecnológica exigidas. Chegaremos ao ponto de um Brasil global, com toda a sua mecânica de desenvolvimento operando harmoniosamente? Eis uma incógnita que não comporta respostas imediatistas e simplistas e o próprio presidente Lula deve saber disso mais do que ninguém.

CB, 02/02/2004, Opinião, p. 11

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