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Eletronorte é derrotada pela segunda vez em suas intenções de construir uma hidrelétrica no rio Xingu

O Paraense (Belém - PA)
Autor: Lúcio Flávio Pinto
10 de Jan de 2002

O engenheiro maranhense José Antônio Muniz Lopes, atual presidente da Eletronorte, pode estar testemunhando a segunda derrota na empreitada de construir, no baixo curso do rio Xingu, no Pará, a quarta maior hidrelétrica do mundo. Há 12 anos, quando era diretor da empresa, Muniz Lopes foi surpreendido pelo facão que a índia Tuíra esgrimiu bem perto de seu rosto, num teatral gesto de hostilidade, contra o propósito da empresa, de barrar o grande rio para gerar 11 milhões de quilowats de energia, quase tanto quanto Itaipu. Foi o ponto alto do I Encontro das Nações Indígenas do Xingu, em 1989, reunindo, durante nove dias, na Transamazônica, quase 600 índios. Unidos contra a hidrelétrica. A foto, que circulou pelo mundo todo, foi a Bastilha da Eletronorte. Embora a empresa estatal exibisse números atestando as vantagens da usina de Belo Monte sobre praticamente todos os outros aproveitamentos energéticos em perspectiva no Brasil, exceto Xingó, no Nordeste, a esgrima de facão de Tuíra causou mais impacto. Ela arrematava iniciativa de alguns meses antes dos caciques kayapó Paulinho Payakan e Kube-í. Ciceroneados pelo etnobiólogo americano Darrell Posey (recentemente falecido), eles foram à sede do Banco Mundial, em Washington, torpedear o pedido de 250 milhões de dólares para o programa energético brasileiro, acusando-o de destruir a natureza e violar os direitos dos habitantes nativos da região. O impacto direto da barragem de Belo Monte era relativamente pequeno, afetando apenas 550 famílias (200 das quais de índios), em uma área equivalente a metade do reservatório da hidrelétrica de Tucuruí, a primeira de grande porte da Amazônia. Mas os efeitos das duas outras barragens complementares, a serem construídas para acumular água e regularizar o regime do rio, seriam desastrosos: elas inundariam 6.500 quilômetros quadrados, o dobro da área do maior lago artificial do mundo, o de Sobradinho, no Nordeste. Além disso, no restante da bacia do rio Xingu viriam a ser instaladas mais cinco usinas, provocando o alagamento de 14 mil quilômetros quadrados em uma das regiões mais ricas e complexas da Terra. Quando todo o aproveitamento do rio estivesse concluído, tribos indígenas distantes mil quilômetros de Belo Monte seriam prejudicadas. Antecipando-se, elas mandaram aguerridos representantes ao encontro de Altamira para impedir que fosse dado o tiro de largada do plano global. Conseguiram. A Eletronorte ainda tentou convencer a opinião pública de que não iria além da hidrelétrica de Belo Monte no vale do Xingu, e que dela tiraria toda a energia necessária para cobrir as necessidades do país por algum tempo, ao menor custo do kw instalado. Mas a primeira batalha estava perdida. O Bird cancelou toda a linha de financiamento para hidrelétricas na Amazônia. A Eletronorte desviou a direção das suas baterias para a duplicação da capacidade de geração de Tucuruí, já em fase final. Mas retomou a plena carga as pressões, estimulada pela crise nacional de abastecimento energético, que impôs o "apagão". Reapresentou o projeto original com um novo perfil. Ao invés de represar o Xingu em sua própria calha, na grande volta que o rio dá logo depois de Altamira, inundando-a, se propunha agora a desviar a água por dois canais laterais, diminuindo à metade a área do reservatório, de 1.300 para 650 km2 (menos de um quarto do tamanho do lago de Tucuruí). Apenas uma pequena comunidade indígena poderia ser afetada, ainda assim indiretamente. O alagamento provocado pelo represamento coincidiria com a abrangência das inundações anuais do Xingu. A única mudança seria que, a partir da construção da represa, as águas não voltariam à posição original do período de vazante. Desta vez, não foram os índios que bloquearam o andamento do projeto, mas o Ministério Público Federal. Sensibilizados pelos argumentos de entidades civis, procuradores regionais da República acabaram conseguindo sustar na justiça o andamento do processo de licenciamento ambiental da obra. A justiça federal acolheu os argumentos do MP sem entrar no mérito da questão. Ficou nas preliminares, tão convincentes elas eram.

BELOMONTE
Acampamento da Eletronorte em desativação
Inconsistência - Para liberar a construção de um complexo hidrelétrico que, com a linha de transmissão associada, para o Centro-sul do país, exigirá o equivalente a 6 bilhões de dólares (quase 15 bilhões de reais), a Eletronorte entregou o Eia-Rima (Estudos de Impacto Ambiental-Relatório de Impacto Ambiental) à Fadesp, a fundação de pesquisa da Universidade Federal do Pará, com sede em Belém. Fez contratação direta, sem licitação pública, baseada no pressuposto de uma notória competência que, na verdade, a Fadesp não possuia. Muito pelo contrário: os Eias-Rimas da fundação para as hidrovias Araguaia-Tocantins e Tapajós-Teles Pires foram rejeitados judicialmente, por completa inconsistência. Além da ausência de licitação, o MP federal apontou mais duas faltas cometidas pela Eletronorte: os estudos ecológicos só poderiam ser realizados depois de prévia autorização do congresso nacional, que não foi consultado, e a competência para esse tipo de licenciamento seria do órgão ambientalista da União o Ibama, e não da secretaria estadual do Pará, a Sectam, aonde o processo vinha tramitando, já que o Xingu banha o território de dois Estados, o Pará e Mato Grosso. Atingida por esse duro golpe, a Eletronorte anunciou que prosseguirá na justiça a defesa de suas teses, que deram respaldo ao gasto de mais de quatro milhões de reais através do convênio com a Fadesp para a elaboração do Eia-Rima. Mas as possibilidades de que venha a derrubar a decisão já adotada são mínimas. Por isso mesmo, a empresa tomou uma iniciativa ainda mais drástica: anunciou, de súbito, a suspensão temporária de suas operações em Belo Monte, desmobilizando os 35 técnicos e servidores que atuavam no escritório da empresa em Altamira. O anúncio foi a senha para mobilizar setores locais em defesa da obra para fazer frente aos críticos do projeto da Eletronorte, exatamente como ocorreu na primeira batalha, em 1989. A estatal acusa os ambientalistas de radicais, insensatos e instrumentos de interesses estrangeiros. Garante que o retardamento provocará prejuízos à economia da região e do Estado, além de pesar sobre o equilíbrio nacional da oferta e consumo de energia. Alerta para a perda das oportunidades de emprego e renda que resultariam de um investimento de 6 bilhões de dólares. Numa época de crise, esse discurso é um autêntico canto de sereia. Independentemente do desfecho desse novo capítulo do contencioso em torno de Belo Monte, o episódio tem sentido pedagógico para quem estiver disposto a dele tirar boas lições. Ficou claro que, pelo menos em relação a obras de grande porte, a avaliação do seu impacto ecológico deve ser feita numa instância neutra, arbitral, independente. O realizador da obra recolheria uma determinada taxa para a formação de um fundo, a ser administrado pelo Ibama. O instituto elaboraria os termos de referência e organizaria a licitação pública para a contratação do agente que assumiria a responsabilidade pelos estudos ecológicos. O trabalho ficaria acessível a todas as partes interessas ou envolvidas, inclusive a empresa, num processo no qual seriam sempre possíveis a consulta, o diálogo e mesmo a controvérsia. A empresa sujeita ao licenciamento forneceria as informações e poderia questionar a qualidade dos estudos, mas na condição de terceira interessada - e não, como agora acontece, de dona dos resultados. Grande parte dos Eias-Rimas tem sentido meramente utilitário. O contratado, de alguma maneira, acaba fazendo exatamente o que quer o contratante. A sociedade civil, convocada para audiências públicas, tem um poder de intervenção limitado, inclusive por sua pouca informação sobre o tema a ela submetido. O órgão público intervém apenas formalmente, ou, em geral, para sacramentar uma decisão previamente acertada. O processo é, por esse aspecto, tão nominalmente democrático quanto essencialmente inconsistente. Talvez por isso, a Eletronorte imaginou conseguir o apoio da sociedade local, que antes lhe faltara, contratando a universidade estabelecida na área, ao invés de recrutar empresa especializada ou instituição de fora, mesmo (ou sobretudo) não estando essa universidade tecnicamente habilitada a desincumbir-se da tarefa, que seria mais de relações públicas do que exatamente de ciência. A interveniência do MP federal, endossada pela justiça, tirou a eficácia dessa estratégia. Na melhor das hipóteses, a Eletronorte vai ter que recomeçar tudo do princípio e talvez precise devolver os R$ 4 milhões considerados indevidamente aplicados. Se isso realmente acontecer, ficará a questão: como será a terceira batalha da guerra pela quarta maior hidrelétrica do mundo? (AE)

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