VOLTAR

A economia nas águas de março

JT, Artigos, p. A2
Autor: JORGE, Miguel
24 de Mar de 2004

A economia nas águas de março

Miguel Jorge

Quando desaba um temporal na capital paulista, causando sofrimentos e tragédias, os paulistanos ficam com a impressão de que o potencial de água da cidade é inesgotável, dispensando medições do nível dos reservatórios, avaliações dos técnicos da Sabesp e medidas de redução de consumo. Ao tomar o seu banho diário, lavar o carro e a calçada (!) ou regar as plantas do jardim, pouco nos importamos com o fato de a água, no Brasil, ainda ser um artigo de luxo - 20% dos brasileiros não têm acesso a ela e 40% não têm água tratada. Para piorar, parece-nos faltar até informações sobre o uso da água, enquanto quem é informado não mostra a mínima vontade de economizar, atraindo freqüentes racionamentos.
Se chove muito, conclui-se que há água em abundância, que isso é ótimo para a lavoura e a torneira da cozinha e o chuveiro do boxe podem ficar abertos enquanto se fala ao telefone. Se não chove, de pouco adianta instalar em empresas e prédios públicos as torneiras mecanizadas, que se abrem por um tempo determinado, se elas são acionadas várias vezes.
0 motivo por que isso ocorre se vê diariamente em residências, lojas, shoppings, fábricas, hospitais, escolas, indústrias, etc. que usam a água de forma desleixada, irresponsável e extravagante, como se esse recurso da natureza não representasse uma fonte de vida, necessária a toda a comunidade. Enquanto o consumo entre os americanos caiu 25% desde os anos 70, com os programas de reutilização da água, no Brasil gasta-se cada vez mais.
Esse aumento de consumo tem conseqüências muito desagradáveis para nossa vida urbana, principalmente para as classes de baixa renda, que não se libertam da lata d'água na cabeça, como relata um velho samba de Carnaval que traça o perfil da mãe de família cheia de filhos e sem água em casa. Com o Programa de Incentivo à Redução do Consumo de Água, do governo estadual, e a chegada às residências das contas de água com metas de consumo, os contumazes cantores de chuveiro, o jovem que lava carros na rua e a dona de casa frenética que lava a calçada, em vez de varrê-la, talvez resolvam mudar de hábitos. Se não pela vantagem de gastar menos dinheiro - a partir de 15 de abril, menos 20% no consumo dará direito a descontar 20% na conta -, pelo menos para se convencer de que, se todos pouparem, é o conjunto da sociedade que acabará sendo beneficiado.
A idéia é atender às necessidades básicas dos consumidores no que mais afeta seu bem-estar, ao lado da casa para morar e da energia elétrica, a água é um bem ao qual se dá valor apenas quando ela não existe ou quando se adota um racionamento. Esse novo programa de incentivo à redução do consumo, que se concentrará na área metropolitana da capital, até outubro, quando termina a estiagem, pretende atingir, sobretudo, 6 milhões de moradores de apartamentos que, com poucas exceções, gastam tanta água, individualmente, que dificultam a vida uns dos outros. Como a imensa maioria dos prédios tem só um hidrômetro para medir o consumo de todos os moradores, quem se esforça por economizar vê-se prejudicado por quem gasta sem limites - o ideal seria cada apartamento ter seu medidor.
Também nesse aspecto o êxito do programa dependerá do bom senso dos consumidores e da capacidade de gestão dos síndicos, que precisarão desenvolver uma consciência de economia e exercitarem no seu dia-a-dia um controle mais efetivo do que seu prédio consome. Afinal, é no entrelaçamento do consumo individual privado e do consumo coletivo que o programa terá ou não sucesso, já que a concessionária de água não multará quem não fizer os 20% de economia (o perdulário já estará sendo punido pela tabela progressiva, isto é, quem gastar mais pagará mais).
Vinculados que estamos todos a uma vida cada vez mais comunitária, num Brasil que já tem problemas demais, que nos parecem insolúveis, não podemos mais voltar à era de encher panelas para preparar o jantar, dar banho nas crianças e lavar a louça.

Miguel Jorge é jornalista e vice-presidente executivo de Assuntos Corporativos do Santander Banespa

JT, 24/03/2004, Artigos, p. A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.