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'É preciso conhecer para poder proteger'

O Globo,O País, p. 17
Autor: MANTOVANI, Mario
02 de Dez de 2006

'É preciso conhecer para poder proteger'
Diretor da SOS Mata Atlântica diz que maior desafio é làzer com que as pessoas se informem sobre a floresta

Entrevista: Mario Mantovani

Para o diretor de mobilização da Fundação SOS Mata Atlântica, Mário Mantovani - que participou da elaboração do projeto de lei da Mata Atlântica juntamente com o ex-deputado Fábio Feldmann, em 1992 - a aprovação da regulamentação sobre a floresta, depois de 14 anos do que classifica de "chantagens dos ruralistas" no Congresso, é o reconhecimento de que as entidades ambientalistas fazem um trabalho sério. Na década de 80, quando pouco se falava em preservação ambiental, Mantovani iniciou o projeto de educação ambiental na União dos Escoteiros do Brasil. Na SOS Mata Atlântica, foi um dos responsáveis pela elaboração do primeiro atlas do desmatamento da reserva florestal, que mostrou a necessidade de se criar uma legislação para preservação de um dos mais importantes ecossistemas do país. À frente da organização não-governamental, que hoje conta com mais de 200 mil sócios, Mantovani afirma que o grande desafio é fazer com que as pessoas conheçam a floresta, para que possam passar a protegéla: "O Brasil não conhece a Mata Atlântica, e quem não conhece, não protege".

O Globo: O que significa a aprovação da Lei da Mata Atlântica para os ambientalistas?

Mário Mantovani: É um reconhecimento do que é Mata Atlântica. Não havia esta segurança jurídica para intervir junto ao Ministério Público, não tinha como enquadrar um prefeito que vai fazer um projeto para especulação imobiliária de qualquer jeito e destruir a floresta. E essa lei deixa tudo mais tranqüilo, pois qualquer cidadão pode batalhar por ela. Para as entidades, é um reconhecimento da ação que fazem em defesa do meio ambiente e da Mata Atlântica, de que é um negócio realmente sério, não é um delírio como muitos dizem.

Como nasceu o projeto?

Mantovani: A história começou quando a SOS lançou o Atlas da Mata Atlântica no Rio de Janeiro, na Eco 92. Naquela época estava se desmaiando o equivalente a um campo de futebol a cada quatro minutos.
Foi então que surgiu o projeto de lei, inclusive para antecipar este desastre anunciado, porque, se continuasse o desmatamento naquele ritmo, nós teríamos menos de 30 anos de florestas. O projeto de lei surgiu para dar uma pretensa resposta naquele momento.

Quais motivos adiaram tanto a aprovação da lei?

Mantovani: O que aconteceu nos últimos 14 anos é que passamos por muitas chantagens dos ruralistas. Mas não podemos pôr tudo na conta deles. Nós tivemos problemas com pessoal de imobiliárias, mineração, em razão dos interesses na riqueza da Mata Atlântica. Mas isso foi bom porque construímos esta agenda comum. Era uma caminho natural. Estamos falando de 16 estados, 3.400 municípios do Brasil. Tudo isso fez com que a lei tivesse esta construção coletiva, e mostra que as entidades têm o poder de construir políticas públicas. É fruto de uma forma inédita de fazer lei no país.

Qual foi o maior entrave no Congresso?

Mantovani: A luta no Congresso era muito mais em função de os ruralistas não entenderem. Eles imaginavam que a lei seria sobre os 15% do território brasileiro. Mas depois ficou claro que incide somente sobre os 7% que restam. E tem um outro dado muito importante: 80% do que resta de Mata Atlântica estão nas mãos de particulares. No Paraná e Santa Catarina houve dificuldade, pois os ruralistas não queriam admitir que a araucária era Mata Atlântica. Eles queriam continuar tirando a araucária.
E dos 7% do que restam no Brasil, 0,3% eram de araucária.

Quais os principais problemas enfrentados na preservação da Mata Atlântica?
Mantovani: O que ainda resta de Mata Atlântica não está inteiro, está isolado, em fragmentos. E quando está fragmentado você perde em biodiversidade e pelas espécies que reproduzem entre elas, que realizam a chamada "erosão genética": não há interligação e os bichos se reproduzem entre eles. Esta história é terrível, visto que a Mata Atlântica é a segunda floresta mais ameaçada do planeta e uma das mais ricas em biodiversidade.

Nesses 14 anos, o projeto manteve-se atual?

Mantovani I: O projeto não ficou parado na Câmara. Ele foi atualizado com a Lei dos Recursos Hídricos, de unidades de conservação, ou seja, foi sendo melhorado.

Qual o próximo desafio dos ambientalistas?

Mantovani: Temos que divulgar ainda mais a importância da Mata Atlântica. O Brasil não conhece a Mata Atlântica, nossas universidades não produzem conhecimento sobre ela.
E quem não conhece, não protege. Precisamos mostrar que preservação não é coisa de ambientalista ou de ruralista, é uma questão da sociedade.

A mais destruída e ainda a mais rica do globo
Da cobertura original da Mata Atlântica, restam só 7%. mas biodiversidade é muito grande

Do 1,2 milhão de quilômetros quadrados da floresta que um dia recobriu todo o litoral brasileiro, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, hoje restam intactos apenas cerca de 7%. A destruição, garantem historiadores, começou já no desembarque de Pedro Álvares Cabral e segue ininterrupta até hoje. Mas, mesmo sendo um dos biomas mais ameaçados do planeta, a Mata Atlântica continua sendo uma das regiões mais ricas em biodiversidade.

- No pouco que sobrou da mata, ela ainda é uma das campeãs em diversidade biológica e endemismo (espécies que só ocorrem ali), e isso já justifica a preservação - afirma Adriano Paglia, analista de biodiversidade da ONG Conservação Internacional. - Além disso, por causa da deterioração da mata, o maior número de espécies ameaçadas do Brasil está lá.

De fato, dos 633 animais ameaçados de extinção no Brasil, mais da metade, 383, vive na Mata Atlântica.

- Em alguns casos, a situação é muito urgente - afirma Paglia. - Muitos desses animais estão catalogados na categoria de criticamente em perigo. Se nada for feito, em menos de 40 anos podem simplesmente desaparecer do planeta.

Ao todo, a floresta abriga 2.181 espécies de animais. Entre as plantas catalogadas, são mais de 20 mil. Segundo especialistas, esses números podem ser muito maiores, já que boa parte das riquezas naturais do Brasil é desconhecida. Dados do Ibama apontam que nem 1 % da biodiversidade brasileira foi identificado. Não bastasse isso, a mata abriga sete das nove bacias hidrográficas do país.

Tamanho banco genético natural pode se converter numa fonte inesgotável de riquezas para o país ou num dos maiores eventos de desperdício planetário de que se tem notícia. No início dos anos 2000, o Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada (Ipea) estimou esse patrimônio brasileiro em pelo menos US$ 2 trilhões. É que as espécies de plantas e animais - conhecidas e por descobrir - são a base dos mais diversos produtos, de remédios a substâncias usadas na indústria.

Primeira área do Brasil a ser colonizada e habitada, a Mata Atlântica abriga hoje 60% da população do país, ou 110 milhões de pessoas. Os maiores centros urbanos brasileiros estão em sua área e os especialistas concordam que é preciso saber conciliar a conservação dos remanescentes da mata com o cenário atual.

A destruição da Mata Atlântica começou nos primórdios da colonização do país com a extração do pau-brasil, seguida dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do café e do ouro. A expansão da agricultura e da pecuária também tiveram um forte impacto na floresta, bem como a exploração predatória da madeira. Por fim, a industrialização também se fixou em suas terras.

- A Mata Atlântica é o bioma brasileiro mais degradado por razões históricas bem conhecidas - diz Paglia. - E muitas dessas razões continuam valendo hoje - acrescenta o especialista, lembrando que apenas 2% dos remanescentes estão sob proteção integral do governo.

Saiba o que muda na lei
Restrições ao desmatamento das áreas existentes: O projeto para defender a preservação da Mata Atlântica transforma em crime o desmatamento não autorizado e torna mais severas punições e multas do Código Florestal.

Manutenção das áreas oreservadas: Atualmente, só 7% da Mata Atlântica continuam preservados no Brasil, e nos últimos anos foi possível recuperar 0,5% do que existia. A nova lei permite o estímulo à conservação, porque prevê a criação de um fundo de restauração da Mata Atlântica, que seria formado com dinheiro público e privado. O governo ainda não decidiu quanto será o total investido no fundo, mas estima a quantia em centenas de milhões de reais. Os recursos devem vir de multas e de transferências do poder público. O projeto prevê ainda a possibilidade de incentivos - que precisam ser regulamentados ainda -- para os donos de terras preservem as áreas que possuem Mata Atlântica.

Recuperação de áreas já desmatadas: Atualmente, o Código Florestal obriga que as propriedades rurais preservem pelo menos 20% de suas florestas quando ficam em regiões de Mata Atlântica. Mas muitos proprietários não respeitam isso, porque a legislação é da década de 60 e quando adquiriram suas terras já estavam desmatadas. A avaliação dos técnicos do governo é de que hoje há muita dificuldade das pessoas que compraram propriedades já desmatadas para recuperar essas áreas. A lei prevê, por exemplo, que numa mesma bacia hidrográfica um proprietário que tenha mais de 20% de floresta em sua área possa oferecer a área preservada como compensação por outra desmaiada. Nas áreas de reserva ambiental, como parques estaduais e nacionais, o proprietário pode também pagar o equivalente ao montante desmatado na sua fazenda e pagar uma taxa para manter área equivalente dentro de uma reserva ambiental. Desde que a reserva seja próxima da área desmatada.

A degradação e a diversidade da floresta

A Mata Atlântica abrangia uma área equivalente a
1,36 milhão de km2 e estendia-se originalmente ao longo de 17 estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí)

Hoje, restam apenas cerca de 100 mil km2, 93% já foram devastados. Vivem na área de Mata Atlântica cerca de 110 milhões de brasileiros ou mais de 60% da população do país. Esta população depende da proteção da floresta para a obtenção de recursos naturais essenciais á vida, como a água

Riqueza
Mais de 20 mil espécies de plantas, sendo 8 mil endêmicas

270 espécies conhecidas de mamíferos

992 espécies de pássaros

197 espécies de répteis

372 espécies de anfíbios

383 dos 633 animais ameaçados de extinção no Brasil

350 espécies de peixes

Beneficies para a população Sete das nove bacias hidrográficas brasileiras
Regulagem do fluxo de mananciais hídricos Controle do clima Fonte de alimentos e plantas medicinais Lazer, ecoturismo, geração de renda e qualidade de vida

Pressão contra o verde
Extração de pau-brasil, ciclos econômicos de cana-de-açúcar, café e ouro Agricultura e agropecuária Exploração predatória de madeira Industrialização, expansão urbana desordenada e poluição.

O Globo, 02/12/2006, O País, p. 17

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