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E o cerrado? Foi esquecido?

CB, Opinião, p. 21
Autor: ESPÍRITO SANTO, Cesar Victor do
07 de Jun de 2006

E o cerrado? Foi esquecido?

Cesar Victor do Espírito Santo
Engenheiro florestal, é superintendente executivo da Fundação Pró-Natureza (Funatura) e coordenador geral da Rede Cerrado

No ano em que o extraordinário romance de nossa literatura, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, completa 50 anos, obra na qual o cerrado, o sertão, o sertanejo estão descritos de forma magistral, o Congresso Nacional poderá oferecer como presente o total desprezo e desrespeito por aquele que, no momento, é o mais ameaçado dos biomas brasileiros: o cerrado.

A Comissão Especial do Cerrado da Câmara dos Deputados, criada para apreciar a proposta de emenda à Constituição (PEC) que inclui o cerrado e a caatinga entre os biomas considerados patrimônio nacional pela Constituição, simplesmente não se reúne. De 16 reuniões convocadas, somente a de instalação ocorreu, quatro foram canceladas e, em 11, não se obteve quorum. Fica a questão: ou os deputados não estão dando a devida atenção à matéria, ou há uma ação deliberada de um grupo para provocar o arquivamento.

No caso do cerrado, constata-se que nas últimas quatro décadas o bioma vem sendo palco de destruição sem precedentes. Cerca de dois terços da sua extensão original foram totalmente destruídos pela expansão da fronteira agrícola, dando lugar a grandes monocultivos agrossilvopastoris e pela produção desenfreada de carvão vegetal (utilizado pelas siderúrgicas para a produção de ferro-gusa, matéria-prima do aço).

Mas por que isso está acontecendo e a sociedade brasileira não reage? Por puro desconhecimento das riquezas do cerrado, considerado pelo setor rural como a última grande fronteira agrícola do planeta. A riqueza da biodiversidade do cerrado é comparável à da Amazônia. Sua diversidade sociocultural é também extremamente rica. O cerrado é a caixa-d'água do Brasil. Nele nascem rios formadores das principais bacias hidrográficas brasileiras, a sanfranciscana, a tocantinense e a do Paraná.

O modelo de desenvolvimento econômico que se desenvolve na região do cerrado é altamente concentrador de renda, de terra e, ademais, é excludente. Utiliza-se pouca mão-de-obra e muito maquinário, muita adubação química, muito agrotóxico, muita semente transgênica, tudo produzido pelas grandes corporações multinacionais. É o famoso agronegócio. A produção é, em sua maior parte, exportada. Os lucros das corporações vão para as respectivas matrizes, ou seja, Estados Unidos, Europa e Japão.

Não que se defenda o abandono do agronegócio, mas a forma como ele vem se dando no cerrado. Além disso, deve haver um equilíbrio maior entre o agronegócio e as demais formas de desenvolvimento, que se dão em bases mais sustentáveis. Uma das principais iniciativas deve ser um efetivo incentivo à produção sustentável de produtos do cerrado, ao turismo ecológico e cultural e à agricultura familiar. Também os bancos oficiais poderiam adotar como norma não aprovar financiamentos para quem deseja abrir novas áreas de cerrado, financiando apenas a produção em áreas já incorporadas ao processo produtivo.

Outra ação importante está ligada ao zoneamento ecológico e econômico (ZEE) da região, no qual seriam definidas as zonas mais propícias às diferentes atividades, tais como a produção agropecuária e florestal, a mineração, o extrativismo sustentável do cerrado, a definição de unidades de conservação de proteção integral, de reservas extrativistas, de reservas de desenvolvimento sustentável, a definição de áreas de proteção de mananciais, a delimitação das terras indígenas e de quilombolas, as áreas de expansão urbana e de transporte, a produção de energia, dentre outros aspectos. O ZEE deve ter como base a informação técnico-científica e o conhecimento tradicional dos povos do cerrado. Deve ser construído pelo poder público com a efetiva participação da sociedade.

Boa parte da biodiversidade do cerrado já é amplamente utilizada de várias formas (remédios, alimentos, artesanatos, corantes, aromas, construções). Com mais estudos, a gama de utilização aumentará bastante. O turismo ecológico e cultural possui potencial enorme na região, tendo como foco a valorização das tradições culturais, os parques nacionais e outras áreas protegidas. A definição de roteiros, de forma participativa, que tenham como base a história, a cultura, a culinária regional, a riqueza natural, deve ser incentivada, além da capacitação de agentes locais como guias, pequenos empreendedores para implantação de pousadas e restaurantes, dentre outros aspectos.

O cerrado, se trabalhado de forma séria, com políticas públicas adequadas e inclusivas, não há justificativa para destruí-lo. É muito importante que a Câmara dos Deputados faça a sua parte e aprecie a PEC que reconhece o cerrado e a caatinga como patrimônio nacional.

CB, 07/06/2006, Opinião, p. 21

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