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Doutor da floresta

O Globo, Segundo Caderno, p. 1
03 de Fev de 2017

Doutor da floresta
Mostra no IMS revela como as obras pintadas pelo botânico alemão Von Martius em expedição ao Brasil no século XIX ajudaram a criar a imagem de país que temos hoje

Nelson Gobbi

Via de pouco mais de 100 metros, a Rua Von Martius está situada próximo ao muro posterior do Jardim Botânico, no bairro carioca de mesmo nome, do lado oposto ao das palmeiras imperiais que guardam a entrada da área verde de 137 hectares. A localização não é aleatória: a rua foi batizada em homenagem ao botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), que aportou no Brasil em 1817, junto à Missão Austríaca que acompanhou a grã-duquesa Maria Leopoldina da Áustria para seu casamento com o príncipe Dom Pedro I. Durante os três anos que permaneceu no país, o pesquisador e pintor naturalista percorreu 10 mil quilômetros pelas regiões Norte, Nordeste e Sudeste, catalogando e registrando espécimes vegetais no maior levantamento da flora brasileira até os dias de hoje. As plantas e paisagens registradas por Von Martius em litografias foram publicadas posteriormente na monumental obra coletiva "Flora brasiliensis", composta por 40 volumes, com mais de 20 mil espécimes catalogadas.
Mas não apenas a extensa pesquisa botânica rendeu a Von Martius homenagens Brasil afora - além de batizar ruas e edifícios em outras cidades, o alemão também é lembrado no Dia Nacional da Botânica, comemorado em 17 de abril, data de seu aniversário. A expedição, que também incluía o zoólogo Johann Baptist von Spix e o pintor Thomas Ender, revelou um país em formação, registrando os aspectos culturais, folclóricos e linguísticos da população. Parte dessa produção está na exposição "O mapa de Von Martius ou como escrever a história natural do Brasil", com abertura amanhã no Instituto Moreira Salles. Com curadoria de Julia Kovensky, coordenadora de iconografia do IMS, e da historiadora e professora Iris Kantor, a seleção foi realizada no acervo do Instituto, que contém cerca de 200 obras de Von Martius. A mostra reúne 46 de suas litografias e a reprodução do mapa com o trajeto da Missão Austríaca, que criam um panorama da produção do naturalista e da própria expedição.
- Von Martius fazia parte de um mundo em que o estudo da ciência era feito de uma forma mais ampla, ele se envolvia com tudo. História, antropologia, medicina, arte, tudo fazia parte de sua formação e ele observava todos estes aspectos no Brasil - aponta Julia. - Ele fez uma verdadeira etnografia, registrando músicas, línguas indígenas, a cultura de diferentes regiões, além das plantas e paisagens. E tentou, através de seu trabalho, compreender aquele país que estava se formando.
A mostra tem como ponto de partida um mapa criado em 1840 por Von Martius, no qual propõe uma divisão regional para o Brasil a partir de cinco grandes biomas - Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Selva Amazônica e Pampa - que se mantém até hoje como referência na botânica. Através do mapa, o público também poderá dimensionar a aventura de se lançar, há 200 anos, pelo inóspito interior do país até a região da atual fronteira com a Colômbia, saga detalhada nos três volumes do livro "Reise in Brasilien" ("Viagem pelo Brasil"), publicado entre 1823 e 1831. A expedição retrata este país em transformação, que recebera a corte portuguesa e se transformara na capital do Império nove anos antes, finalmente aberto aos olhos do mundo através de suas missões artísticas e científicas.
- Os mapas e gravuras de Martius foram elaborados num momento político decisivo, em que o território brasileiro tornou-se mais acessível aos naturalistas europeus - destaca a curadora Iris Kantor. - A presença da corte portuguesa transformou o Rio numa capital cosmopolita de um império que precisava se afirmar perante as demais potências. Von Martius foi importante porque, através do seu levantamento de campo, produziu-se uma imagem do Brasil que até hoje está incorporada no imaginário das elites brasileiras. Analisar criticamente a imagem que ele construiu de nós mesmos é uma das nossas tarefas.

OBRAS QUE VOLTAM A DESPERTAR INTERESSE
A obra dos chamados artistas viajantes, como Von Martius, Debret, Rugendas e Taunay, tornou-se a grande referência para a iconografia do Brasil Colonial e Imperial, não apenas do ponto de vista histórico, mas também pela qualidade técnica dos desenhos e pinturas. Essenciais para a compreensão da história da arte no Brasil, a obra dos naturalistas ganhou destaque em acervos e coleções.
-Esses trabalhos contam um pouco da nossa história, são formadores, para pensar o país é preciso se voltar a eles. A partir da segunda metade do século XX houve uma redescoberta da arte naturalista, colecionadores se dedicaram a esses itens, começaram a trazer para o Brasil parte da nossa memória que estava na Europa - contextualiza Julia. - É um processo contínuo, são obras que seguem presentes em coleções particulares e em museus. E que voltam a despertar interesse a cada efeméride, como agora nos 200 anos da Missão Austríaca.

O Globo, 03/02/2017, Segundo Caderno, p. 1

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