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Dorothy e o Grao-Para

FSP, Mais, p.9
Autor: LEITE, Marcelo
20 de Fev de 2005

Dorothy e o Grão-Pará
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

O escritor Martin Walser se referiu à Alemanha como "uma pátria difícil". Só que, mal ou bem, os alemães estão conseguindo reconstruir a própria história de maneira digna -e isso com todos os neonazistas da vida, uma minoria ridícula. Difícil, mesmo, é o Brasil.
Aqui, estamos todos muito ocupados em repetir a história de mais de 500 anos. A receita de país continua a mesma: madeira, terra arrasada, sangue e suor de pobres. Não seria de esperar outra coisa da nação cujo nome ao mesmo tempo lembra e faz esquecer o de uma árvore dizimada em poucos séculos, o pau-brasil.
Madeira de sangue vermelho, cobiçada para as tinturas de pano na Europa. Assim ensinavam nas escolas primárias há 40 anos, e ainda devem ensinar. Cairia bem como vergonha nacional, mas virou orgulho besta -guardadas as devidas proporções, quase tão boçal quanto reverenciar um passado nazista. Talvez por isso a melhor obra sobre nossa história devoradora de homens e de mato ("A Ferro e Fogo") tenha sido escrita por estrangeiro, o americano Warren Dean.
Também americana e amante do Brasil era a freira Dorothy Mae Stang, assassinada por pistoleiros há oito dias. Foi num ramal enlameado perto de Anapu, na beira da Transamazônica. Ela militava na organização de base de agricultores pobres, como os que conseguiram criar o Projeto de Desenvolvimento Sustentado Esperança.

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Talvez fosse melhor, mesmo, ter a Amazônia invadida pelos americanos. Até eles poderiam nos dar lições de civilização
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A imagem de seu corpo caído de lado sobre a terra molhada, calça e blusa claras, é desesperadora e exasperante. Uma mulher, freira, com 74 anos, apontada como "terrorista" pelos senhores da terra que não lhes pertence. Estava sendo processada sob a suspeita de cumplicidade na morte de um colono de fazenda. Assim funciona a Justiça dos senhores por lá.
A comparação mais óbvia é com o assassinato de Chico Mendes, em Xapuri (Acre), pouco mais de 16 anos atrás. Ele também se plantou entre as terras públicas ou ocupadas por posseiros e seringueiros, de um lado, e fazendeiros que se julgam com direito adquirido à força sobre elas. As diferenças, poucas, foram circunstanciais: ele caiu sob disparos dos próprios fazendeiros, não de sicários, e na porta do quintal da própria casa.
Não era preciso recuar tanto no tempo nem ir até o Acre para encontrar um precedente. Ali mesmo, no Pará, morre a maioria dos líderes rurais assassinados. Em Castelo dos Sonhos, outra localidade conflagrada à beira de outra rodovia indutora de desmatamento (a BR-163), foi morto em julho de 2002 Bartolomeu Morais da Silva, o "Brasília", delegado do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Altamira. Na época, decerto, os governos prometeram punição exemplar etc.
Na capital paraense, há poucas semanas, outro ato de violência ganhou repercussão, embora de conseqüências menores. O jornalista Lúcio Flávio Pinto, autor de reportagens contra os poderosos do Pará em seu "Jornal Pessoal", foi agredido em local público por um empresário de comunicação. Era Ronaldo Maiorana, das Organizações Rômulo Maiorana, empresa proprietária do jornal "O Liberal" e da TV Liberal, veja só.
O Brasil, no fundo, não passa de um Grão-Pará. Talvez fosse melhor, mesmo, ter a Amazônia invadida pelos americanos. Até eles poderiam nos dar lições de civilização.

FSP, 20/02/2005, Mais, p.9

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