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Do dilúvio ao deserto

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
25 de Jun de 2004

Do dilúvio ao deserto

Washington Novaes

Em apenas 24 horas, caíram sobre a cidade de Olinda, em Pernambuco, 149,6 milímetros de chuva, que invadiram casas e atingiram 10% dos moradores da cidade (Estado, 19/6). Se uma chuva como essa (cada milímetro corresponde a um litro de água por metro quadrado) caísse sobre todos os 1.500 quilômetros quadrados do Município de São Paulo, seriam 220 milhões de toneladas de água que desabariam sobre a maior cidade brasileira - sabe Deus com que conseqüências, num território impermeabilizado, em que a água não tem onde se infiltrar e corre toda para os fundos de vales, o leito dos rios.
Ninguém diz exatamente por que está chovendo tanto no Nordeste (em Olinda, 312,3 mm em uma semana), onde mais de cem pessoas já morreram este ano em conseqüência de inundações e deslizamentos de morros. Em Maceió, em 15 dias choveu mais (517 mm) que a média histórica de todo o mês de junho (298 mm).
"Mudanças no clima foram a marca do outono", dizem os técnicos (Folha de S.Paulo, 19/6).
No mesmo dia em que Olinda enfrentava o dilúvio, surpreendentemente o jornal britânico The Guardian publicava entrevista em que nada mais, nada menos que o chairman da Shell Oil - uma das "sete irmãs" do petróleo -, o geólogo Lord Ron Oxburgh, reitor do Imperial College, se dizia "muito preocupado com o destino do planeta, por causa das emissões de dióxido de carbono" (a maior parte das quais se deve a emissões de gases derivadas da queima de petróleo). Segundo ele, a probabilidade é de "conseqüências que não podemos prever, mas que provavelmente não são boas". E a única esperança estaria em conseguirmos avançar rapidamente em tecnologias capazes de "seqüestrar" carbono (injetando-o no fundo do mar ou em campos de petróleo desativados - tecnologias até aqui em experimentação, mas altamente polêmicas e de resultado ainda incerto).
Também no dia 17 de junho, a Conferência das Nações Unidas para Combate à Desertificação apontava mudanças climáticas como uma das causas desse grave problema, que já atinge diretamente 1,2 bilhão de pessoas, na Ásia, na África, nas Américas e no Mediterrâneo. Nada menos que um terço da superfície terrestre está em processo de desertificação, cerca de 4 bilhões de hectares (ou 40 milhões de quilômetros quadrados, quase cinco vezes a superfície do Brasil). E a cada ano 60 mil km2 se incorporam ao processo.
Mas outras ações humanas contribuem poderosamente para o processo - desmatamento, erosão do solo (por más práticas na agricultura e na pecuária), irrigação inadequada. E as perdas anuais são calculadas em US$ 42 bilhões. Sem falar em que dois terços dos 840 milhões de pessoas que passam fome vivem nas áreas rurais sujeitas à desertificação. O Brasil mesmo tem boa parte de seu território - no semi-árido nordestino, principalmente - envolvida no processo.
Na mesma semana em que todas essas notícias preocupantes vinham à tona, nos Estados Unidos dez dos mais renomados cientistas do país, liderados pelo editor-chefe da renomada revista Science, subscreviam documento em que enfatizaram a necessidade de "ações urgentes" para enfrentar as mudanças climáticas - entre elas, tecnologias "limpas" no campo da energia. "Estamos no meio de um processo descontrolado no único planeta que temos", escreveram . Segundo eles, as mudanças já estão acontecendo e, no caminho em que vamos, elas se intensificarão, com graves conseqüências. Por isso, advertiram, não devemos confiar nas incertezas ou na escassez de conhecimento como desculpa para sermos negligentes. Se as emissões de fato triplicarem em 150 anos o nível de concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera (em relação aos níveis pré-revolução industrial), como se prevê, "teremos um mundo muito diferente". E ainda lembraram que as projeções estão "subestimando" as emissões.
Na Grã-Bretanha, o Centre for Global Development e o Institute for International Economics calcularam que, se a concentração de CO2 dobrar, os custos econômicos ficarão entre 1% e 2,5% do produto bruto mundial, isto é, entre pouco menos de US$ 400 bilhões e US $1 trilhão.Um quarto desse custo ficará com as perdas na agricultura; um sexto, com a elevação de custos na refrigeração doméstica e comercial; aos acréscimos de custos no abastecimento de água, no enfrentamento de ondas de calor e nas medidas necessárias para enfrentar a elevação do nível do mar caberão mais 30% (10% em cada área); 10% se deverão às conseqüências do desflorestamento; e outros 10%, aos problemas com a camada de ozônio.
David Labat e outros cientistas do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas da França publicaram trabalho em que, analisando o fluxo de rios desde 1875, mostram que ele já diminuiu na África e aumentou na Ásia, na América do Norte e na América do Sul. A cada grau centígrado que aumentar a temperatura, dizem eles, o fluxo na média crescerá 4% - com mais água onde o fluxo já é maior, menos onde é menor. As altas temperaturas, afirmam, afetarão "dramaticamente" os grandes rios. E aqueles que já estão perdendo vazão poderão secar.
Nessa hora e nesse panorama, os Estados Unidos continuam se recusando a aderir ao Protocolo de Kyoto, assim como a Austrália (a maior exportadora de carvão). A Rússia diz que vai assinar, mas ainda não assinou. O mercado mundial de venda de cotas de carbono seqüestrado dobrará este ano, diz o Banco Mundial. De janeiro a maio, foram negociados 64 milhões de toneladas, no valor de US$ 260 milhões. Japão, Holanda e o próprio banco "compraram" 90% do total.
No Brasil, o secretário-executivo (desde agosto de 2000) do Fórum de Mudanças Climáticas, Fábio Feldman, anuncia que pediu demissão porque desde o início do atual governo - embora nos devêssemos preocupar com fenômenos como o ciclone "Catarina" e outros - não houve reunião com o presidente da República, "nem decisão sobre o futuro do Fórum".
Preocupante. Quando nada, porque muitos especialistas têm dito que a nova "guerra fria" se travará em torno do domínio de tecnologias capazes de reduzir emissões de gases e mudanças climáticas. É questão estratégica.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 25/06/2004, Espaço Aberto, p. A2

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