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Do coco, o sustento e a cidadania

OESP, Vida, p.A10
02 de Jan de 2005

Do coco, o sustento e a cidadania
Organizadas em associações, quebradeiras de coco de babaçu construíram identidade e lutam por melhores condições de trabalho
Flávia Moura, Especial para o Estado
Mais de 400 quebradeiras de coco de babaçu do Maranhão, Tocantins, Pará e Piauí estão organizadas em sindicatos e associações em busca de melhor qualidade de vida e trabalho - de simples trabalhadoras rurais, sem estudo e sem conhecimento dos seus direitos, elas apresentam hoje uma identidade própria e lutam pela cidadania e por espaço na sociedade.
"Desde que entrei na associação, comecei a perceber que sou mulher e posso lutar pelos meus direitos de mãe, dona de casa e trabalhadora rural. Comecei a entender que da roça é que tiro o meu sustento e que errados são os fazendeiros que devastam hectares de palmeiras de babaçu pra fazer pasto e acabar com a nossa riqueza", afirma Maria Brito de Araújo, de 63 anos, moradora de Esperantinópolis (MA), que hoje sustenta três netos com seu trabalho. "O babaçu é igual a um boi. Dele a gente aproveita tudo", diz, com a experiência de quem começou no ofício aos 9 anos de idade, ajudando a mãe.
Apesar de o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco de Babaçu (MIQCB), criado em 1995, ser responsável por articular apenas uma pequena parcela das trabalhadoras rurais dos quatro Estados, a iniciativa já resulta em melhoria de qualidade de vida de muitas famílias que hoje vivem desta atividade.
Segundo a coordenadora-geral do MIQCB, Maria Adelina de Sousa Chagas, a articulação entre as trabalhadoras é fundamental para a inclusão dos produtos extraídos do babaçu nas políticas voltadas à chamada economia solidária, que privilegia o consumo consciente.
"Trabalhamos com o meio ambiente no campo, mas sabemos da importância de discutirmos globalização e mercado de trabalho para a melhoria da nossa qualidade de vida", diz. Dona Dada, como é conhecida, afirma que atualmente para ser quebradeira de coco não basta saber fazer o ofício. "Hoje, já conseguimos formar uma identidade da quebradeira de coco, que tem sua auto-estima mais elevada e tem orgulho de ser mãe, dona de casa e ainda trabalhar na roça. É essa história que queremos vender, agregada à nossa produção."
A história das quebradeiras de coco de babaçu está intimamente ligada aos conflitos de terras nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil, a partir da década de 1970, quando começaram os projetos desenvolvimentistas do governo federal, como a abertura da Transamazônica e a conseqüente devastação das palmeiras, num País que possui atualmente mais de 18 milhões de hectares de babaçuais.
Hoje, dentro da organização das mulheres, encontram-se famílias que moram em assentamentos, além das posseiras, sem-terra ou ainda residentes em reservas extrativistas, indígenas ou de remanescentes de quilombos.
100% APROVEITADO
Somente na região do Médio Mearim, no Maranhão, mais de 800 famílias trabalham diretamente no beneficiamento do óleo e do sabonete de babaçu, exportados para a Europa e os Estados Unidos. Segundo levantamento da Associação de Trabalhadores das Áreas de Assentamento do Estado do Maranhão (Assema), a venda dos derivados do coco aumentou 100% no mercado interno e 20% no mercado externo nos últimos cinco anos.
Em 2003, as cooperativas ligadas à Assema produziram 180 toneladas de óleo. Destas, 58 toneladas abasteceram o mercado internacional. No mesmo ano, foram exportados cerca de 10 mil sabonetes para a Europa e os Estados Unidos.
O babaçu é 100% aproveitado. Da amêndoa é extraído o azeite (de forma artesanal, para consumo alimentício) e o óleo (vendido para indústrias de cosméticos). Do coco ainda pode ser tirado o mesocarpo para o preparo da farinha rica em nutrientes, chamada na região de fubá. Da casca prepara-se o carvão; e da palha das fibras ainda é feito o artesanato e a cobertura das casas.
Uma trabalhadora quebra, em média, 10 quilos de coco numa jornada de aproximadamente seis horas diárias neste ofício. No restante do dia, as quebradeiras de coco, muitas vezes, ainda cuidam da roça, da casa e dos filhos. O quilo da amêndoa é vendido, em média, a R$ 0,80. O da farinha de mesocarpo custa R$ 4; e o do sabão em pó, R$ 6.
AUTONOMIA
Segundo Alfredo Wagner Berno de Almeida, antropólogo e consultor do MIQCB, essas trabalhadoras possuem autonomia no tempo e no processo produtivo. "Elas fazem seus próprios horários de trabalho, aliado a outras atividades rotineiras e ainda conseguem tirar do babaçu produtos básicos para a sua sobrevivência", comenta.
Exemplo disso é a aposentada Maria Romana do Nascimento, de 71 anos, moradora do município de Palestina (PA). "Comecei a quebrar coco depois de casada, só com 38 anos. Precisava ajudar meu marido a sustentar a casa e, mais tarde, quando ele me largou, precisei criar dois filhos sozinha. E criei só de quebrar o coco pra fazer azeite, sabão em pó e carvão. Hoje, já estou mais cansada e não quebro mais o coco todos os dias. Mas também o que eu quebro, umas três vezes na semana, dá pra eu tirar o azeite pra cozinhar e o sabão pra lavar roupa, não precisando gastar com isso."
O antropólogo também conta que existem projetos interessantes de tecnologia limpa para utilizar o óleo de babaçu em veículos automotivos e, desta forma, aumentar a renda das trabalhadoras rurais. "Mas infelizmente o governo Lula está voltado para uma política desenvolvimentista e não extrativista. Prova disso são as estatísticas: mais de 80% das reservas extrativistas da Amazônia não estão efetivadas", lamenta.

Mulheres partem para a política
Quebradeiras de coco elegeram três vereadoras em dois Estados
F.M.
Diante da necessidade de se articularem mais efetivamente na busca da conquista pelos seus direitos, as lideranças dos movimentos das quebradeiras de coco de babaçu partiram para a política. E hoje já conseguem dialogar com os governos de uma forma bem mais representativa.
Nos Estados do Maranhão e do Tocantins, três quebradeiras de coco foram eleitas vereadoras: Maria Nice Machado Aires (PT), eleita este ano em Penalva (MA); Maria Alaídes (PT), que já vai entrar em sua segunda gestão no município de Lago do Junco (MA); e Maria da Consolação Oliveira Souza (PMDB), de São Miguel (TO).
Maria Nice, de 49 anos, afirma que o movimento das quebradeiras é responsável por aumentar a auto-estima das trabalhadoras rurais. "O que mais aprendi foi ser forte e acreditar em mim mesma. A gente era mulher e não tinha 'aquela diferença, aquela sabedoria' que a gente tem hoje. Aos poucos, comecei a perceber que a quebradeira de coco de babaçu pode ser vereadora, prefeita, governadora, porque os diretos são iguais."
Maria, que também é coordenadora regional do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco de Babaçu (MIQCB), conta que mais de 90% das quebradeiras de coco obtiveram registro somente depois de se associarem em alguma entidade. "Antes, a maioria não tinha documento nem sabia o que era cidadania. Hoje, muitas têm documento de identidade, CPF e a consciência de ser mulher, de ser cidadã."
Segundo as vereadoras, os principais problemas enfrentados pelas quebradeiras de coco atualmente são a questão do búfalo nos campos, unida à devastação das palmeiras pelos grandes fazendeiros, e a grande incidência do chamado "coco preso", isto é, o coco dos palmeirais localizados em propriedades particulares, onde não há livre acesso para a coleta.
Neste sentido, a grande articulação política dessas trabalhadoras é aprovar a Lei do Babaçu Livre, que garante o livre acesso das quebradeiras aos babaçuais, mesmo que sejam em propriedades particulares, que hoje estão fechadas para o extrativismo.
Além disso, a atuação das trabalhadoras ainda é fundamental para a conservação das palmeiras, contribuindo para a preservação ambiental das regiões onde elas atuam.
Em seis municípios do Maranhão e dois do Tocantins já vigoram esta lei municipal. Os projetos de lei para a liberação dos babaçuais às quebradeiras de coco em âmbitos estadual e federal já foram encaminhados às Assembléias Legislativas dos quatro Estados e ao Congresso Nacional, em Brasília.
"Nosso sonho é que as quebradeiras de coco tenham acesso a todos os babaçuais do País para que não haja mais conflitos de terras", explica Maria Nice.

OESP, 02/01/2005, p. A10

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