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DNA de índio à venda

CB, Brasil, p. 16
21 de Abr de 2005

DNA de índio à venda
Instituto americano comercializa pela internet o código genético dos povos suruí e karitiana. PF investiga e CPI da Biopirataria anuncia que vai convocar médicos que retiraram o sangue nas aldeias indígenas

Leonel Rocha e Paloma Oliveto
Da equipe do Correio

O site de um instituto norte- americano voltou a oferecer, há duas semanas, uma mercadoria inusitada: DNA de índios brasileiros.
O Coriell Institute, organização de pesquisa independente e que afirma não ter fins lucrativos, vendia material genético das etnias Suruí e Karitiana, de Rondônia, mas deixou de oferecê-las há dois anos. Agora, por US$ 85, é possível obter novamente as amostras. O Ministério Público Federal e a Polícia Federal de Rondônia investigam como o sangue de índios foi parar nos Estados Unidos, assunto que também está na pauta da CPI da Biopirataria da Câmara.
O médico brasileiro Hilton Pereira da Silva e a pesquisadora norte-americana Denise Hallack são suspeitos de terem colhido ilegalmente o sangue dos suruí e karitiana e enviado amostras do tecido a laboratórios dos Estados Unidos, segundo o MPF e a PF. O delegado Carlos Eduardo Sobral pediu à Interpol informações sobre a entrada de estrangeiros no Brasil e a ida da médica norte-americana a aldeias de Rondônia. A CPI da Biopirataria da Câmara também investigou a denúncia e vai convocar o médico brasileiro a depor.
Segundo informações da CPI, a Procuradoria da República de Rondônia descobriu no ano passado que o médico brasileiro e a norte-americana convenceram os índios a doarem sangue para pesquisas sobre malária, verminose e anemia. De acordo com o relato dos índios à Procuradoria, as amostras foram depositadas no laboratório da Universidade Federal do Pará e a partir daí desconhecem como o material chegou aos Estados Unidos.
O delegado Jorge Pontes, criador da unidade de combate a crimes ambientais da PF, entende que a retirada do sangue dos índios e o envio do material a laboratórios dos Estados Unidos é mais que simples biopirataria. "A retirada do sangue e o envio ao exterior podem ser enquadrados no crime de tráfico de órgãos e tecidos, o que é muito mais grave que biopirataria", comenta. A CPI descobriu que índios peruanos e mexicanos também tiveram amostras do sangue retiradas pela mesma equipe médica.

Lembrança
O suruí Henrique Iabadai, "homem guerreiro", em tupi, lembra-se do dia em que um grupo de pesquisadores esteve na aldeia onde mora. Ele viu sete pessoas, sendo três brasileiros, saindo de dois jipes Toyota, rumo à terra dos índios Suruí. "A gente estava acostumado com a visita de cientistas, aí ninguém estranhou", conta o índio de 39 anos. Os pesquisadores disseram que iriam coletar o sangue dos moradores da aldeia - na época, com cerca de 200 pessoas - para verificar se eles tinham doenças típicas de brancos. "Tiraram bastante sangue da gente. Foi um pote daqueles de vidro de cada um de nós", conta Iabadai.
Segundo ele, os pesquisadores também mediram as mãos e os pés dos índios, além de tirar moldes da arcada dentária. Com pouco mais de 30 anos de contato com a civilização, eles não desconfiaram de nada. "Para fazer pesquisa, tem de ter autorização da Funai. A gente pensou que eles tinham", diz. Muito tempo se passou e os índios nunca tiveram acesso ao resultado dos exames. Descobriram, por meio de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que, nos Estados Unidos, o material genético da etnia estava à venda. "A gente se sente totalmente enganada.
Tiraram proveito da gente. É como se tivessem arrancado um pedaço nosso", lamenta. O presidente da CPI da Biopirataria, deputado Mendes Thame (PSDB-SP) diz que a direção da Funai deve ser convocada pela comissão para explicar por que os estrangeiros foram autorizados a entrar nas aldeias. "Provavelmente a Funai sabia que eles estavam lá", afirma Thame. A PF não sabe se a retirada do sangue foi ou não autorizada pela Funai ou por qualquer instituição de pesquisa no Brasil. O delegado pediu informações ao Conselho do Patrimônio Genético Brasileiro, que desconhece qualquer alteração dada para este tipo de retirada de tecidos dos índios. Por meio de sua assessoria de comunicação, a Funai informou que não autorizou pesquisadores estrangeiros a coletar sangue dos indígenas e que, se eles entraram nas aldeias, foi com o consentimento dos próprios índios.

Ajuda
Coordenador do Grupo de Trabalho Amazônico em Roraima e coordenador-geral da Coordenação da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, Norte de Mato Grosso e Sul do Amazonas (Cunpir), o cacique Almir Suruí, 30 anos, afirma, assim como Henrique Iabadai, que os suruís deixaram os pesquisadores coletarem sangue na aldeia porque pensavam que eles tinham autorização da Funai. "Nas nossas aldeias tem muita doença de tuberculose, gripe, tosse. Eles (os pesquisadores) falaram que iam ajudar. Depois nunca mais apareceram", diz. A índia karitiana Valdeísa, 26 anos, conta que os cientistas também estiveram na aldeia onde ela mora. "Tinha americano com eles. Tiraram sangue da minha mãe e do pajé. Até agora ninguém sabe o que aconteceu. Mas a gente quer pedir indenização", diz.
A palavra 'pesquisa' amedronta os índios. Segundo Gecinaldo Saterê-Mauwé, coordenador da Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira (Coiab), entidade que agrega 71 associações indígenas do Norte e do Nordeste, é comum pesquisadores de várias partes do mundo aparecerem em aldeias com o discurso de que desejam ajudar os índios a combater doenças de branco. "Não se pode chegar a uma aldeia dizendo que é para beneficiar os povos quando, na verdade, fazem biopirataria", criticou.
O líder indígena afirma que a coleta ilegal de material genético é um dos reflexos da ausência do poder público na região. Ele também criticou a Funai por omissão.
"O papel de acompanhar equipes de pesquisadores é da Funai. Ela não só é omissa, como culpada por não ter uma estrutura capazde detectar o problema da biopirataria", acusou.

Sem consultar ninguém
O Correio entrou em contato várias vezes com a assessoria de imprensa do Coriell Institute, que tem sede em Nova Jérsei, mas não obteve retorno.
No site do instituto, consta a informação de que o Coriell, fundado na década de 40, tem como objetivo desenvolver pesquisas genéticas de doenças como o câncer e o mal de Alzheimer.
Quanto à coleta de material genético de etnias, há uma página no site do instituto que reproduz a política seguida pelo National Institute of General Medical Sciences, centro de pesquisas clínicas do governo federal dos Estados Unidos.
O instituto não cita a necessidade de se consultar os governos dos países onde vivem as etnias.
No catálogo de "variações humanas" do instituto, há amostras de DNA provenientes de vários povos. O material genético dos suruís e karitianas aparece na parte dedicada à América do Sul. Dos suruís, há cinco amostras, metade do material genético disponível dos karitianas. Clicando sobre o número da amostra, aparecem informações completas sobre o "doador". O GM10965, por exemplo, pertence a uma mulher de 32 anos, karitiana, falante da língua tupi, moradora de Rondônia.

Veracidade
As amostras são vendidas a US$ 85 pelo instituto, que, no site, diz só distribuí-las a pesquisadores.
No formulário de requisição de DNA, é preciso ter a assinatura do responsável pelo estudo, além de especificação do tipo de pesquisa que será realizada.
Porém, o Coriell não cobra nenhum tipo de documento que garanta a veracidade das informações apresentadas.
O pesquisador da Fiocruz Ricardo Ventura dos Santos, especialista em saúde indígena, explica que pesquisas biomédicas enfocando povos indígenas, além de estudarem a variabilidade biológica humana, são importantes para a o controle de doenças endêmicas como a malária.
"Esclarecer as situações passadas é uma etapa fundamental no estabelecimento de uma relação de confiança entre comunidades indígenas e pesquisadores. O desafio, e o que precisa ser sempre reforçado, é o respeito às regulamentações da ética em pesquisa", explica o médico Ricardo Ventura dos Santos.

CB, 21/04/2005, Brasil, p. 16

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