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A dialética socioambiental

Valor Econômico
Autor: VEIGA, José Eli da
24 de Jan de 2006

A dialética socioambiental

José Eli da Veiga

Não poderia ser mais profundo o abismo que separa os usos do adjetivo "sustentável" depois dos substantivos "crescimento" e "desenvolvimento". No primeiro caso, a resultante transmite a idéia de manutenção de razoáveis taxas anuais de aumento do PIB, em vez de revezamento com períodos de estagnação ou recessão. Um contexto em que a palavra "sustentável" se torna sinônimo de estável, permanente, duradouro, ou consolidado, sentidos bem diversos da mensagem essencial que o termo trazia ao entrar em moda nos anos 1980.
Desde 1979, quando debutou no vocabulário das Nações Unidas para qualificar o processo de desenvolvimento, esse adjetivo sempre exprimiu o desejo de que seu principal motor - o crescimento econômico - pudesse ser compatível com a conservação dos ecossistemas. Um objetivo forçosamente considerado impossível pela estrita razão analítica, principal e mais ampla corrente da atual cultura filosófica. Como o crescimento sempre se deu em detrimento da conservação da natureza, qualquer expressão que denote a vontade de contrariar esse fato só pode ser entendida como antinomia ou oximóron. Pretender crescer sem destruir é o mesmo que buscar a quadratura do círculo.
No entanto, sem pôr em dúvida o profundo realismo contido nessa reflexão, é preciso perceber que a força social já conquistada pelo lema do "desenvolvimento sustentável" demonstra a necessidade de que esses dois contrários analíticos se interpenetrem para que possam vir a ser superados. E isso não ocorrerá graças à invenção de engenhosos estratagemas que permitam conciliar o ímpeto destrutivo do crescimento com a boa vontade de não degradar a ecossistêmica. A interação singular dos contrários que poderá engendrar tal superação exige a crítica do próprio desenvolvimento. Existem, portanto, pelo menos dois sérios obstáculos para que o senso comum efetivamente assimile a idéia: os reais significados do substantivo desenvolvimento e do adjetivo sustentável.
Não é fatalidade eterna que o desenvolvimento dependa de expansão ininterrupta desse fluxo convencionalmente expresso pelo PIB. Ainda por muito tempo com certeza assim será. Todavia, algo começará a mudar quando as circunstâncias permitirem que seja feita clara distinção entre meios e fins.
Quando se tornar possível um entendimento coletivo de que a finalidade do desenvolvimento é a liberdade, e que o crescimento econômico não será para sempre o principal meio de atingi-lo, mesmo que já o tenha sido por mais de dez milênios. Nada impedirá que esse meio passe a ser cada vez mais insuficiente, depois desnecessário, e bem mais tarde contraproducente. Deixará então de ser mero sonho a conservação dos ecossistemas que tiverem resistido.
São idéias muito novas, tanto a distinção entre crescimento e desenvolvimento, quanto a identificação deste com a liberdade. Só começaram a ser balbuciadas por alguns dos melhores economistas em meados dos anos 1970. E só receberam uma primeira exposição sistemática no ocaso do século passado. Para detectar seu nascimento, é insubstituível a leitura de duas contribuições de Celso Furtado: "O mito do desenvolvimento econômico" (Paz e Terra, 1974) e "Criatividade e dependência na civilização industrial" (Paz e Terra, 1978). Elas preparam o melhor desfrute desse já clássico do prêmio
Nobel Amartya Sen que é "Desenvolvimento como liberdade" (Companhia das Letras, 2000).
Há tentativas de evitar o aprofundamento do debate sobre o desenvolvimento mediante banalizações do adjetivo sustentável.
Até final dos anos 1970, o uso do adjetivo sustentável esteve restrito a um punhado de pesquisadores especializados em biologia populacional.
Particularmente os que procuravam estimar os níveis em que uma atividade extrativa - como a pesqueira, por exemplo - ultrapassava os limites de reprodução. Ou, ainda mais difícil, identificar o ponto a partir do qual poderia ser rompida a resiliência do ecossistema. Por mais complicados que possam ser esses cálculos, e por mais grosseiros que sejam os resultados, não há qualquer dificuldade em se perceber nessa procura o real significado da noção de sustentabilidade. É uma idéia quase espontânea ou intuitiva quando se pensa na extração de recursos naturais renováveis: não matar a galinha dos ovos de ouro.
Nada de parecido ocorreu desde que foi exportada para os debates sobre o desenvolvimento. E principalmente desde 1987, quando o "desenvolvimento sustentável" foi apresentado à Assembléia Geral da ONU como o melhor "conceito político" para caracterizar o desafio do século XXI.
Desde então, o que mais se vê são tentativas de evitar o aprofundamento do debate sobre a utopia do desenvolvimento mediante banalizações do adjetivo sustentável, como ocorre toda vez em que é arbitrariamente utilizado. Não somente para se referir à manutenção do crescimento econômico.
Também ao grau de responsabilidade corporativa das empresas, ou até à probabilidade de um casamento ser duradouro.
Felizmente, também há quem leve realmente a sério o desafio de combater a inércia da atávica e simplista identificação do desenvolvimento com o crescimento econômico. Talvez por ter se assustado ao tomar conhecimento de todos os conflitos que decorrem dessa resistência. Ou por ter se apavorado com tanta propensão predatória e socialmente excludente, que dilapida o patrimônio, corrói a identidade e trava a expansão da liberdade.
Basta que tenha acompanhado por algum tempo as "manchetes socioambientais" diariamente enviadas pelo ISA ( www.socioambiental.org ).
Por isso mesmo, é motivo de imensa alegria e renovação da confiança no futuro identificar iniciativas que remam contra essa imensa maré. Como é o caso do II Seminário sobre a Pesca Responsável no Brasil, a realizar-se na sede da Federação de Indústria e Comércio do Ceará entre 25 e 27 de Janeiro. A pesca é uma atividade cuja importância costuma ser erroneamente subestimada por quem ignora as conseqüências de seus impactos.
Particularmente sobre os ambientes marinhos e costeiros do Brasil, nos quais têm sido gerados cerca de 70% do PIB, onde estão situadas cinco das principais aglomerações metropolitanas, e onde vive metade da população.

José Eli da Veiga , professor titular do departamento de economia da FEA/USP e autor do livro "Desenvolvimento Sustentável - O desafio do século XXI", escreve mensalmente às terças. Página web:

Valor Econômico, 24/01/2006

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