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Dia Mundial da Água

OESP, Especial, p. H1-H12
Autor: CAPPIO, D. Luiz Flávio; LIMA, Geddel Vieira
22 de Mar de 2007

Dia Mundial da Água

O Estado publica hoje caderno especial em comemoração ao Dia Mundial da Água. A edição traz reportagens sobre a cobrança pelo uso da água, a polêmica em torno da transposição do rio São Francisco, as iniciativas das empresas para o uso sustentável do recurso, a distância a percorrer para que se alcancem os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, entre outros temas

Prevista desde 1934, cobrança pelo uso da água engatinha
Comitês de Bacia sofreriam com falta de verbas; gerente da ANA diz que implantação precisa ser negociada

Lígia Formenti

A tática é considerada como um ótimo instrumento para evitar o desperdício, uma fonte certa de verbas para garantir o fornecimento de água de qualidade e para reduzir a poluição. Mesmo assim, a cobrança pelo uso da água, mencionada pela primeira vez numa lei de 1934, ainda sofre resistências.

Prevista na Lei de Recursos Hídricos, que completa dez anos, a cobrança ainda parece um mero projeto piloto: além dos Estados do Ceará e do Rio, só duas bacias hidrográficas do Estado de São Paulo a colocaram em prática: a do Rio Piracicaba e a do Rio Paraíba do Sul.

O ambientalista Fábio Feldmann, ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, ex-deputado e primeiro relator da Lei de Recursos Hídricos, atribui a lentidão da cobrança à falta de empenho dos governos estaduais e federal.

Esse último é refletido sobretudo nos minguados recursos destinados à Agência Nacional de Águas (ANA), instituição criada em 2000 justamente para pôr em prática os preceitos da lei. "É só fazer as contas: R$ 50 milhões anuais para garantir todas as atividades não dá para nada", avalia. Sem uma agência com condições de operar plenamente, pouco pode ser feito. "A ANA tem papel propulsor. Não há nenhuma desculpa plausível para a lentidão. Dez anos é muito tempo."

Pela lei, a água pode ser cobrada das companhias de captação e tratamento, das indústrias e do setor agrícola. A forma de cobrança e os valores são determinados pelos Comitês de Bacia, órgãos integrados pelos próprios usuários - ou seja, representantes das prefeituras e das empresas.

FORA DA PAUTA

Mas, até hoje, embora 140 comitês tenham sido formados em todo o País, poucos chegaram sequer a discutir o pagamento.

O gerente de apoio e gestão de recursos hídricos da ANA, Wilde Cardoso Gongijo Júnior, arrisca uma explicação. "O assunto só passa a ser discutido quando a população começa a se incomodar com o mau cheiro do rio", afirma. Feldmann tem uma avaliação diferente. "É claro que, sem recursos, os integrantes dos comitês se sentem desmotivados e a organização acaba se esvaziando."

Embora parte do setor produtivo coloque resistências à cobrança, especialistas são unânimes em defender o mecanismo. Entre eles, José Goldemberg, ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). "Não há como forçar a economia de água sem cobrar por seu uso. Hoje o desperdício é enorme. Essa é a única maneira de racionalizar o consumo."

José Galizia Tundisi, especialista em recursos hídricos e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP de São Carlos, concorda. "É fundamental inibir a demanda por água. A cobrança é a forma mais eficaz de conseguir isso. Muitos de nós, como cidadãos, pagamos pelo consumo nas nossas cidades. Por que a agricultura ou as empresas não pagam?"

"A maioria dos municípios do Brasil não cobra pelo uso da água, só que isso na prática significa que esses prefeitos também não se comprometem a fornecer água de qualidade", diz Mario Mantovani, diretor da ONG SOS Mata Atlântica. "Obra de saneamento é enterrada, não traz voto. Se gasta mais dinheiro com dragagem de rio, que aparece."

'TEM DE SER COMO DÁ'

Para Gongijo, o ritmo de implementação da cobrança pelo uso da água é adequado. "Tem de ser como dá. É importante que o sistema seja acordado, que não haja polêmica."

Ele usa como exemplo positivo as duas únicas bacias paulistas que implantaram o pagamento - após extensa negociação - e hoje apresentam baixíssimos índices de inadimplência. Na Bacia do Piracicaba, 99,5% dos valores cobrados são pagos em dia. Na do Paraíba do Sul, esse porcentual é um pouco menor, mas também bastante expressivo: 90%.

Para o gerente da ANA, ainda serão necessários de cinco a dez anos para que o sistema de cobrança esteja implementado nos principais Estados do País.

Onde não há conflito pelo uso da água, esse tempo poderá ser ainda maior. Para o presidente da ANA, José Machado, no Amazonas - onde há grande oferta de água e pouca concentração populacional - a forma de cobrança e fiscalização prevista na lei dificilmente será implementada. "Para aquela região, é preciso pensar num modelo alternativo."

LEITE DERRAMADO

Feldmann lembra um caso paulista para mostrar como a água ainda está em lugar de pouco destaque na agenda política. Em 1997, uma lei foi criada focalizando a proteção de mananciais que abastecem a cidade de São Paulo e a Baixada Santista.

A expectativa era de que em seis meses regulamentações para fiscalização e prevenção de ocupações irregulares fossem preparadas. "Só agora as regulamentações começam a aparecer, mas o estrago já é enorme. É como colocar telhado depois de a tempestade ter passado."

Além de deixar um recurso valioso na gaveta, Feldmann afirma que o Poder Público está perdendo uma ótima oportunidade para levar a discussão adiante e neutralizar os argumentos contrários às cobranças. "Nos últimos anos, o tema água ganhou grande relevância, sobretudo com o debate sobre o aquecimento global, que está provocando comoção."

A aplicação da Lei de Recursos Hídricos seria importante não só para incentivar o uso responsável da água mas também para injetar recursos para a melhoria das próprias bacias. "O dinheiro arrecadado vai para a União, mas volta integralmente para as agências locais, que executam planos estabelecidos pelos comitês de bacia", explica Gongijo, da ANA.

Boas e más experiências na gestão
Comitês do Sudeste integram empresas da região, mas arrecadação é inferior ao investimento necessário
Niza Souza e Simone Menocchi, TAUBATÉ
A Bacia do Paraíba do Sul, que fornece água para 15 milhões de pessoas em 180 municípios de Minas Gerais, São Paulo e Rio, foi a primeira formada por rio federal a ter seu uso cobrado das empresas. Desde que foi instituída a cobrança, em março de 2003, até o final do ano passado foram arrecadados aproximadamente R$ 28 milhões, segundo o Comitê da Bacia do Rio Paraíba do Sul e a Agência Nacional de Águas (ANA).

O valor é ínfimo perto do necessário para recuperar o rio. Todos os dias ele recebe 1 bilhão de litros de esgoto doméstico. As 8 mil empresas de pequeno e grande portes que retiram a água do leito depositam, em troca, cerca de 30 milhões de toneladas de lixo. A bacia é vítima também da retirada indiscriminada de areia para a construção civil e de desmatamentos.

Das 8 mil empresas, só 220 se enquadram na cobrança porque utilizam mais que 3.600 litros por hora. Quem usa menos não paga. A tarifa depende do volume consumido e da qualidade da água devolvida ao rio. Um ano depois do início da cobrança da água, 28% das 220 empresas não pagavam a taxa, mas atualmente o índice de inadimplência está em 10%.

Uma das empresas que relutaram para pagar e que atualmente deposita os valores em juízo é a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) do Rio de Janeiro. Ela consome cerca de 6 mil litros por segundo, índice semelhante ao de uma população de 1,4 milhão de pessoas. A CSN é a maior usuária industrial da Bacia do Paraíba do Sul e emprega a água transposta que chega ao Rio Guandu.

Com 55.500 quilômetros quadrados, o Paraíba do Sul corresponde a 6% da área do Sudeste. Só no Estado do Rio ele abastece 9 milhões de habitantes. Por meio da transposição, a Bacia do Guandu recebe dois terços da vazão do Paraíba.

LIMPEZA

O grande diferencial desse sistema de cobrança é o destino do dinheiro. Por lei, tudo que for arrecadado pelos fundos e comitês só pode ser investido em obras na própria bacia.

No caso do Paraíba, o primeiro projeto posto em prática foi a instalação de uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) em Jacareí (SP). A obra custou R$ 2,3 milhões e fez a cidade saltar de 2% para 20% no volume de esgoto tratado. Os recursos vieram da cobrança e de uma empresa de celulose e papel.

Duas grandes lagoas aceleram o tratamento. Em 25 dias, a água sai 80% mais limpa. A estação tem capacidade para tratar o esgoto de 10 mil pessoas. "Não será com a cobrança que vamos despoluir o rio. Ela serve para incentivar as empresas na gestão do recurso, gastando menos e tratando a água antes de poluir. A fórmula penaliza quem consome mais e quem suja mais", diz o vice-prefeito de Jacareí, Davi Monteiro Lino, e ex-presidente do Serviço Autônomo de Água e Esgoto.

É justamente esse um dos objetivos da cobrança, amplamente discutida pelo Conselho Nacional de Recurso Hídricos: conscientizar a sociedade de que a água é um bem finito.

Além dessa, outras 75 ações - como a construção de outras estações de tratamento de esgoto, ampliações de rede coletora de água, obras de proteção de nascentes e controle de erosão e práticas educativas - foram subsidiadas com o dinheiro da arrecadação mensal.

ARRECADAÇÃO

Bem mais recente, a cobrança pelo uso da água na Bacia Hidrográfica dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) começou a ser implementada no ano passado apenas pela captação nos rios de domínio federal. Neste ano, a cobrança passa a valer também para os rios estaduais.

A Bacia PCJ abrange 15 mil quilômetros quadrados e passa por municípios de São Paulo e Minas. Dos R$ 11 milhões previstos, foram arrecadados pouco mais de R$ 10 milhões. Os maiores pagadores são as empresas de saneamento, com R$ 8,2 milhões, e as indústrias, que gastaram no ano passado R$ 1,3 milhão. Com a cobrança pelo uso dos rios estaduais, a receita deve ultrapassar R$ 20 milhões em 2007.

A cobrança, nos dois casos, é progressiva: 60% do valor do metro cúbico no primeiro ano, 75% no segundo ano e 100% a partir do terceiro. A meta é atingir R$ 40 milhões por ano em 2009, quando todos os usuários estarão pagando o valor total. Ele, entretanto, é irrisório perto do que é preciso para melhorar as condições da bacia. Só para despoluir os rios são necessários, pelo menos, R$ 2 bilhões.

CONFLITO DE INTERESSES

O questão sobre a correta administração da água é um assunto antigo na região. Há 18 anos, o Consórcio PCJ, formado hoje pelas prefeituras dos 40 municípios paulistas e mineiros e empresas privadas, discute ações para minimizar os problemas e gerenciar o recurso.

Mesmo antes de a cobrança ser implantada, alguns setores buscavam alternativas de economia. A Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento de Campinas (Sanasa), segunda maior fonte arrecadadora, por exemplo, paga há quatro anos. "Antes da cobrança ser oficializada no ano passado, já colaborávamos com um fundo administrado pelo consórcio", diz o presidente, Luiz Aquino.

O incentivo para a colaboração, afirma, é o destino do dinheiro. Em um ano, a Agência de Água PCJ acumula 16 projetos para ampliação, implantação e adequação de estações de tratamento de água e esgoto.

O maior usuário do PCJ, porém, está bem longe da região e dos conflitos, mas colhe os benefícios. A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) é responsável por cerca de um terço da água captada na bacia, algo em torno de 31 metros cúbicos por segundo, e pagou no ano passado mais de R$ 6 milhões.

Essa água vai para o Sistema Cantareira - para abastecer os municípios da Grande São Paulo -, que faz parte de outra bacia, a do Tietê. É a chamada reversão. "O problema é que essa água não retorna para a bacia de onde é captada. E esse é um dos grandes problemas que enfrentamos", explica o presidente do Consórcio PCJ, José Roberto Fumach.

Problema similar é enfrentado pelo Comitê da Bacia da Paraíba do Sul. Em média 130 mil litros por segundo sobem a Serra das Araras para chegar ao Estado do Rio. "O grande problema é o calote. Existe uma lei no Rio que determina o pagamento de 15% do que é consumido no Rio Guandu para o Paraíba, e isso não ocorre. Essa água o Paraíba perde e não recebe quase nada", reclama o secretário-executivo do comitê, Edílson de Paula Andrade.

ECONOMIA

A aposta é o reúso. "Temos de pensar em dividir a água: para fins nobres, como alimentação, e não nobres, como limpeza em geral", defende Aquino.

No mês passado, a empresa inaugurou a ETE do Ribeirão Anhumas, em Campinas, com capacidade para tratar 1.200 litros de esgoto por segundo. A idéia é disponibilizar a água tratada para ser reutilizada principalmente por empresas, com valor mais baixo. Segundo Aquino, ela deve custar um terço do valor da água "nobre".

R$ 0,01 por m3
de água captada é o valor cobrado nos rios federais do País; é equivalente a mil litros

R$ 0,02 por m3
é o valor da água consumida, ou seja, aquela que não volta nem mesmo em forma de esgoto

R$ 0,10 por quilo
de DBO (demanda bioquímica de oxigênio), a carga poluidora lançada, é o preço mais alto

R$ 0,015 por m3
de água derivada de segunda bacia; é o caso do Sistema
Cantareira, cuja água é captada de outra região hidrográfica

R$ 0,0115 por m3
de água subterrânea captada é cobrado pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Piracicaba, Capivari e Jundiaí

220 empresas
se enquadram no perfil de pagantes pelo uso da Bacia
Hidrográfica do Paraíba do Sul

10% de inadimplência
foi a taxa registrada pelo comitê dessa bacia; há dois anos, o índice era bem maior, de 28%

R$ 28 milhões
foram arrecadados pela cobrança do uso da bacia do
Paraíba do Sul até o fim de 2006

R$ 10 milhões
foram arrecadados em um ano na Bacia dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ)

R$ 40 milhões
devem ser arrecadados em 2009, quando todos os usuários estiverem pagando as taxas integrais, no PCJ

Após 10 anos, lei tem pouco impacto
Para o presidente da ANA, lentidão é fruto de dificuldade orçamentária
Lígia Formenti, BRASÍLIA
À frente da Agência Nacional de Águas (ANA), o economista José Machado admite que a aplicação da Lei de Recursos Hídricos produziu até agora um impacto limitado no País. Passados dez anos de sua criação, a Lei das Águas, como é conhecida, provocou a criação de 140 comitês de bacias, dos quais 8 são de domínio da União. Mas o número engana. Do total, somente 2 dos comitês executam todas as atividades que lhes são atribuídas.

A lentidão, afirma Machado, não é provocada pela lei, considerada por ele exemplar. "Isso é fruto das nossas dificuldades orçamentárias, de problemas político-institucionais", explica. Ex-deputado pelo PT paulista, Machado arremata: "A percepção da prioridade da lei ainda não é clara para todos".

Em entrevista ao Estado, Machado afirma que o ideal seria que a ANA recebesse o dobro dos recursos que hoje são destinados. Neste ano, a agência tem um orçamento previsto de R$ 160 milhões, dos quais 40% dele será consumido por despesas obrigatórias. Para outras atividades, hoje estão previstos R$ 50 milhões. O restante do recurso está bloqueado (contingenciado). "Precisaríamos de R$ 100 milhões", completa. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que é tão difícil fazer com que os comitês de bacia sejam criados e saiam do papel?

A nossa legislação é exemplar. Ela foi muito discutida, sua aprovação é fruto de amplo consenso. Mas o fato é que a legislação foi mais bem assimilada onde a situação dos recursos hídricos era mais preocupante. E também onde já havia maior capacidade técnica disponível, institutos de pesquisa. Nessa área, a política andou mais rápido. Nominando: nas regiões Sul e Sudeste. Nesses locais também houve maior pressão da sociedade, o que contribuiu muito para a maior rapidez no processo. No semi-árido, por causa da escassez da água, o sistema também avança. Não de maneira uniforme, mas avança.

Mas a lei também não vem para preservar? Mantida a filosofia atual, a lei terá efeito reparador.

Isso reflete o nível de consciência social, ambiental. Estamos intensificando o trabalho de conscientização por meio de políticas de educação ambiental. Mas a verdade é que não temos uma condição que dê grande valor para ações preventivas. Ainda trabalhamos fortemente no campo da correção. Onde as situações são mais agudas, as respostas são mais rápidas.

Não há mecanismos para fazer com que os Estados acelerem a aplicação da lei e, principalmente, a cobrança pelo uso da água?

A nossa lei é inspirada na legislação francesa, descentralizada, participativa. A legislação não tem caráter impositivo, ela é de implementação gradual. Não há como ser de outra forma. Um sistema de comando e controle não daria resultado. Dada a extensão do País, um sistema de fiscalização teria de ter estrutura gigantesca. Não temos recurso nem condição para fazer algo desse tipo. E o resultado também seria discutível. Quando os conflitos são instalados, não podemos tentar resolver no tacão. E sim, pela negociação.

Mas não há como induzir os Estados a adotarem tais medidas?

A Constituição Federal determina que as águas têm duplo domínio no País. Há rios de gestão estadual, os de gestão da União. O duplo domínio nos obriga a uma articulação, a uma pactuação sistemática para implementação da política. E essa pactuação é complicada. Veja a Bacia do São Francisco. Seus afluentes estão sob responsabilidade de sete Estados. Para avançar, é preciso uma articulação, uma afinação entre todos os atores. O que não é fácil, principalmente nos locais onde o comprometimento das águas não é tão severo.

Atualmente, dois Estados cobram pelo uso da água, além de duas bacias. Não é muito pouco para dez anos de Lei das Águas?

Vários Estados já prepararam suas leis das águas, mas muitos ainda não saíram do papel. Há locais onde a regulamentação está em curso, como Pernambuco. O sistema vem avançando. Comparado com países do nosso porte, o Brasil é vanguarda nesse tema.

No caso que envolve apenas a União, não é pouco ter apenas oito comitês?

Você tem de considerar que as bacias são formadas também por rios estaduais. Tem de haver diálogo, entrosamento. Isso tem nos dado muito trabalho porque é preciso também criar um sistema uniforme. Não é possível, por exemplo, que um Estado tenha regras para outorga de uso da água totalmente diferentes do Estado vizinho. É preciso coerência. Usuários de água não podem conviver com regras tão díspares, o que acaba criando uma série de problemas.

Qual a avaliação que o sr. faz da atuação da ANA nesse processo?

O sistema está andando, a ANA está cumprindo o seu papel. E um deles é o de impulsão. Temos papel proativo, integramos uma cadeia, temos um plano de mandato. A agência é nova, a estrutura é adequada ao ritmo de trabalho que estamos desempenhando, que é moderado. Mas na medida que a sociedade for percebendo o valor da água para a qualidade de vida e que ela desempenha um papel estratégico, certamente a velocidade para esse incremento será maior.

O Brasil desperdiça 50% da água captada dos rios?

Os estudos não são conclusivos. Há desperdício da rede pública, que capta água bruta, trata e distribui à população. Desde a captação há um elevado índice de desperdício, fruto de problemas técnicos. Em alguns locais, chega a 50%.

Isso ocorre no setor produtivo?

Há ainda muitas situações de desperdício na indústria. Mas percebemos que nos últimos anos houve um avanço significativo. Sobretudo nas grandes indústrias, há maior preocupação para o uso racional.

E o setor agrícola?

É o que mais consome. Cerca de 46% da água captada nos rios vai para a irrigação. E 70% da água usada para irrigação não volta ao leito do rio. É um setor que precisa se adequar e avançar nas técnicas para reduzir o desperdício.

Isso não deveria fazer com que houvesse empenho para agilizar a cobrança nos pólos agrícolas?

Eles são os maiores opositores do sistema, não escondem um temor visceral pela medida. Essa resistência em parte é compreensível porque o setor vive muito das inconstâncias climáticas, depende da conjuntura internacional, é pressionado pelos credores. Falar em cobrança é algo que aterroriza. Mas nós temos procurado mostrar que a medida não é imposta. Ela tem de ser discutida. Além disso, o setor precisa se modernizar. Hoje, o Brasil irriga 3,5 milhões de hectares, mas tem potencial para irrigar uma área dez vezes maior. O setor tem de adotar técnicas de uso racional da água.

Quem é:

José Machado

É diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA)
Professor de Economia da PUC de Campinas

Foi deputado federal pelo PT-SP entre 1995 e 1998
e de 1999 a 2000

Entre 1989 e 1990, foi o primeiro presidente do
consórcio intermunicipal das Bacias do Piracicaba e Capivari

ANA

Nome: Agência Nacional de Águas, ligada ao Ministério do Meio Ambiente

Criação: julho de 2000

Início das atividades: 2001

Finalidade: colocar em prática a Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela chamada Lei das Águas. Ela determina, por exemplo, o uso sustentável e a garantia da qualidade dos recursos hídricos no País. Para isso, a ANA dispõe de instrumentos como a outorga para o direito de uso e a cobrança pelo uso da água

Pesquisas: a agência também é responsável por estudos e projetos que busquem resolver problemas como secas e
combate à poluição de rios

Número de funcionários: são 144 concursados e
137 cargos comissionados

Recursos disponíveis para 2007: R$ 50 milhões

Pesquisa mais recente: Geo Brasil Recursos Hídricos

Pobres têm menos acesso à água
Relatório das Nações Unidas diz que cobertura no Brasil para os 20% mais carentes é menor do que no Vietnã
Luciana Constantino
A taxa brasileira de abastecimento de água - que deixa o País próximo de cumprir uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio - esconde uma distorção perversa. Enquanto os 20% mais ricos da população desfrutam níveis de acesso à água e ao saneamento comparáveis aos de países ricos, os 20% mais pobres no Brasil têm uma cobertura inferior à do Vietnã. A conclusão está no Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, publicado anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

De acordo com o documento, cerca de 90% da população brasileira tem acesso à água potável, proporção semelhante à de países com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como Coréia do Sul (com 92%) e Cuba (com 91%). Os dados são referentes a 2004. Para chegar à meta, o País precisa elevar o indicador para 91,5% nos próximos oito anos. Isso porque o Brasil é um dos 191 Estados-Membros das Nações Unidas que assumiram o compromisso de atingir oito objetivos socioeconômicos até 2015.

O problema é quando os índices brasileiros são desmembrados, mostrando que as regiões mais carentes chegam a ter redução no atendimento. É o que aponta, por exemplo, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE. De acordo com o levantamento, a proporção de residências ligadas à rede de abastecimento de água regrediu em quatro Estados - Amazonas, Goiás, Amapá e Pará - e no Distrito Federal entre 2004 e 2005. A situação é pior no Pará, onde o índice de cobertura caiu de 48,2% para 47,3% de um ano para o outro.

Ao tratar do quesito saneamento, a situação brasileira não é boa. Para atingir a meta do Milênio de atender a 85,5% dos domicílios com o serviço, o Brasil precisará intensificar o ritmo atual de expansão e ampliar sua cobertura em 14% até 2015.

DESIGUALDADES

Divulgado no final do ano passado, o Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU trouxe como tema: "A água para lá da escassez: poder, pobreza e a crise mundial". O documento aponta que a população mais carente é a mais afetada pelos problemas ligados à água.

Destaca ainda o que chama de "injustiça", ou seja, quanto mais pobre a população mais ela paga pelo abastecimento. "As desigualdades no acesso à água e ao saneamento encontram-se intimamente relacionadas com as ainda maiores disparidades de oportunidades, a começar pela oportunidade de sobrevivência", afirma o texto.

O relatório mostra que as principais fontes de financiamento dos sistemas de abastecimento de água e esgoto são as famílias (pelo pagamento de tarifas, custos de ligação e mão-de-obra) e os governos, por meio de impostos ou subsídios. "Durante a década de 1990, defendeu-se muito a privatização como solução para os fracassos do setor público. Conforme defendiam, o sistema particular iria criar ganhos de eficiência, gerar novos fluxos financeiros e ser mais responsabilizável. Embora a experiência tenha sido mista, o setor privado não se apresentou como uma solução mágica", conclui o texto.

Para os especialistas, a forma de administrar os sistemas de abastecimento irá depender de um conjunto de fatores da região, entre eles o rendimento médio, a pobreza e o perfil econômico das famílias sem acesso à rede de água potável. Um ponto, no entanto, é unânime: o sistema deve atender todos, independentemente da região e situação financeira das famílias.

CASOS

É exatamente nesse mix de experiências, com possibilidade de inclusão de famílias carentes, que o Brasil aparece com modelos desenvolvidos por aqui. O documento da ONU aponta, por exemplo, os casos de Porto Alegre (RS) e Ceará. A capital gaúcha é citada por seu sistema municipalizado, que conseguiu levar à população água potável a um bom preço e com redução das perdas. "A transparência e autonomia política e financeira contribuíram de forma crítica para o sucesso", afirma o relatório. Já o Ceará aparece como um Estado que conseguiu implantar, depois de um processo amplo de democratização e descentralização, um sistema para atender consumidores residenciais e industriais (veja texto acima).

O Brasil é destacado ainda no texto do relatório como um dos países que têm mais água do que pode consumir. Porém, a disponibilidade não é suficiente para superar o desabastecimento em regiões secas e entre a população de baixa renda. "As estatísticas nacionais do Brasil colocam o país no topo do ranking dos que têm as maiores reservas de água do mundo. No entanto, milhões de pessoas que vivem no 'polígono da seca', uma região semi-árida de 940 mil quilômetros quadrados que abrange nove Estados no Nordeste, enfrentam um problema crônico de falta de água."

PARCERIA

Ao tratar de casos bem-sucedidos de países que partilham rios, Brasil e Paraguai são citados como exemplo de intercâmbio e cooperação. Isso devido ao Acordo de Itaipu, firmado em 1973, que pôs fim a uma disputa fronteiriça e possibilitou a construção conjunta do complexo hidrelétrico de Guairá-Itaipu.

Cobrança no Ceará vence resistências
Projeto no Rio Jaguaribe conquista produtores; em Porto Alegre, desafio é consumo racional
Quando a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) começou a cobrar pelo uso da água do Rio Jaguaribe, no Ceará, a pergunta que circulava entre pescadores, industriais, fruticultores e população em geral era como alguém podia cobrar pelo que caía de graça do céu? "Ninguém queria pagar", reconhece o coordenador do Núcleo Técnico da Cogerh, Hermilson Barros.

Isso foi há seis anos. Hoje, de Limoeiro do Norte, a 205 km de Fortaleza, ele gerencia a água de 22 cidades cearenses para mais de meio milhão de pessoas. Com esforço e tempo, Barros conseguiu convencer a população da necessidade de pagar R$ 0,03 por m3 consumido de água. Para os irrigantes, o valor é de R$ 0,04. Indústria e engarrafadoras de água mineral pagam mais: R$ 1,36 por m3.

Jaime Oliveira Lima, de 63 anos, era o exemplo de bom pagador em Limoeiro. Quando tinha uma grande plantação de arroz, pagava religiosamente a conta da água - atualmente, com o pequeno cultivo de banana e limão, aproveita sua isenção. "Água é bem escasso, não se pode desperdiçar."

Pelo programa, os maiores beneficiados são os irrigantes que plantam para exportação. A fruticultura do melão, abacaxi e banana também já paga sem reclamar. A conscientização é feita pelos comitês gestores, formados pelos usuários de água (30%), sociedade civil (30%), instituições públicas estaduais e federais (20%) e municipais (20%). Eles decidem como será o gerenciamento e a Cogerh executa o que ficou determinado.

"Temos de nos preocupar com a oferta para amanhã ter. Então, ali no comitê, é o povo decidindo junto, opinando na gestão", destaca Barros. Cabe a Cogerh administrar mais de 90% das águas no Estado. São 126 açudes públicos, além de reservatórios, canais e adutoras em 11 bacias.

Com o gerenciamento, o Ceará tem alcançado sucesso porque, encravado numa região seca, tem mais de 70% das famílias rurais abaixo da linha de pobreza e todos são atendidos. Mas ainda há conflitos por causa da crescente procura por parte dos consumidores industriais da Região Metropolitana de Fortaleza, que competem com a agricultura de regadio, que consome mais de 80% das reservas.

A reforma da água no Estado é resultado de um processo de discussão. A Bacia Hidrográfica do Baixo Jaguaribe (de Tabuleiro do Norte a Fortim) ilustra bem essa trajetória. Criado em 1993, o Cogerh convocou uma assembléia com grupos de consumidores, como representantes da indústria, agricultores comerciais, sindicatos e cooperativas de trabalhadores rurais. Foi desenvolvido um plano para a gestão do consumo, com apoio técnico dos hidrologistas da companhia. Em 2000, após um ano de baixa precipitação, os consumidores se reuniram novamente para esboçar estratégias aprovadas na reunião.

DO NORDESTE AO SUL

Distante da realidade cearense, mas também orgulhosa do projeto de distribuição universalizada de água para a população, Porto Alegre tem como meta agora informar sobre o uso consciente, evitar o desperdício e combater a poluição, destaca o diretor-geral do Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE), Flávio Presser.

Autarquia municipal, o DMAE entrega água tratada e encanada em 95,5% das quase 600 mil residências de Porto Alegre. O 0,5% restante está em áreas de risco ou zonas de preservação ambiental, condições em que há impedimentos legais para a instalação das tubulações. Há, ainda, casos de pessoas que moram em locais isolados, distantes da rede pública de 3,6 mil km.

Mesmo assim, há evoluções e regularização nos serviços. Nesta semana, a prefeitura transferiu 163 famílias de casebres para um conjunto habitacional, mais uma etapa de um projeto de urbanização de área de favelas. Além de criar uma situação legal nos novos conjuntos habitacionais, a prefeitura busca regularizar as captações clandestinas espalhadas por cerca de 500 vilas da cidade.

O Programa Água Certa, criado em 2005, envia equipes para vistoriar instalações, colocar hidrômetros nas residências e parcelar débitos de consumidores inadimplentes. A meta é evitar danos à saúde que ligações clandestinas, misturadas a esgotos, podem provocar, reduzir o desperdício e a evasão de receitas.

Presser descarta a possibilidade de populismo nas isenções. Ele lembra que a tarifa social, de R$ 6,64 para consumo de até 10 m3 por mês, é equivalente ao custo de dois maços de cigarro e que pagá-la não só dá direito ao cidadão de ter água certificada em casa e de pedir reparos na rede, mas também atribui a ele a responsabilidade de evitar desperdícios.

No verão deste ano, o DMAE chegou a verificar consumo de 386 litros de água por dia por pessoa em vilas irregulares da zona leste da cidade quando o consumo médio da cidade é de 200 litros por dia por pessoa. Quando o consumo estiver medido por hidrômetro e as famílias estiverem pagando a tarifa, a tendência é que todos se conscientizem e passem a se preocupar mais com o uso racional da água.

"O Água Certa não é só para cobrar a água, mas também para gerenciar demanda e distribuição", afirma Presser. O programa também é orientado por informações dos órgãos de saúde. Vilas que apresentam muitos casos de doenças transmitidas pela água contaminada, como diarréia e hepatite A, são vistoriadas pelos técnicos imediatamente.

O relatório e o País

São Paulo: O Rio Tietê está cronicamente poluído por esgoto não tratado, alta concentração de chumbo e metais pesados. A poluição afeta o ambiente, ameaça a saúde e reduz a disponibilidade de uso

Mudança climática: As projeções apontam para declínio de 30% do fluxo de água em países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, principalmente nas regiões semi-áridas do Nordeste

Zona rural: Simulações do impacto das alterações climáticas na produção agrícola no Brasil apontam para redução entre 12% e 55% nas colheitas de regiões áridas do Ceará e do Piauí

Água: Apesar de estar perto de cumprir a meta de acesso à água nos Objetivos do Milênio, o Brasil ficou em 74.o no ranking de cobertura entre 159 países analisados. Os dados eram de 2004

Saneamento: Ao comparar a taxa de atendimento, o Brasil está em 67.o entre 149 países, excluindo nações com Índice de Desenvolvimento Humano alto

Em meio à secura, 37 mil poços parados
Levantamento identificou fontes sem uso no subsolo do semi-árido
Eduardo Nunomura
Lata d'água na cabeça, lá vai Maria caminhar até seis quilômetros em busca de sua sobrevivência. Essa é a distância se Maria for mineira, do Vale do Jequitinhonha, porque se fosse do sertão paraibano seriam dois quilômetros. Os dados foram medidos pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), companhia vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Num mapeamento do semi-árido, a empresa descobriu que há água parada e sem uso no subsolo da região. Hoje, são pelo menos 37 mil poços fora de operação.

A CPRM levantou a existência de quase 88 mil poços em 1.103 municípios de oito Estados nordestinos (excetuando o Maranhão) e do norte de Minas. Desses, 50.440 estão em operação. O restante não foi instalado ou está paralisado. Para 530 deles, a companhia não obteve informações. Desde 2003, quando o cadastramento de poços perfurados ainda estava pela metade, a CPRM decidiu iniciar um projeto de revitalização dessas fontes. Na prática, seria botar para funcionar o que não estava funcionando.

A idéia original do cadastro era mapear fontes de água subterrânea. Na época, no fim dos anos 1990, perfurar poços sem critérios era prática política comum. Abria-se um buraco, retirava-se água por um tempo e bastava uma bomba quebrar para voltar à estaca zero. "Na região, abandona-se poço por nada", afirma José Emilio Carvalho de Oliveira, coordenador do Departamento de Hidrologia da companhia. "O abastecimento, onde a água do subsolo é a única que tem, fica muito dependente de questões políticas."

Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), que em dezembro divulgou o Atlas-Nordeste, recuperar poços ainda é uma das ações possíveis. O estudo mostrou que serão necessários R$ 3,6 bilhões para investimentos em várias frentes para minimizar o impacto das secas nos próximos anos. Tirar água do subterrâneo é uma delas. A estimativa da agência é que, se nada for feito, mais da metade dos municípios do semi-árido enfrentará graves problemas de abastecimento em 2025.

Nem todo o semi-árido tem água de subsolo. A bem da verdade, 70% é de solo ruim, não retém água. É composto de rochas calcárias ou o cristalino. Dificultam a captação. Um poço perfurado ali não consegue produzir mais que 2 mil litros de água por hora. Só 30% da região é formada por rochas porosas, as que têm aqüíferos de boa qualidade. É por essa razão que há um predomínio de exploração de águas de superfície, captando em rios e açudes.

Idealmente a ocupação das terras deveria seguir essa lógica. Na prática, as pessoas ocupam as áreas que podem e formam comunidades onde não há água (leia texto abaixo). Os poços, bem ou mal, podem servir para reduzir as dificuldades. "Há água suficiente para matar a sede, mas não para fixar o homem no campo", diz Oliveira, da CPRM, que lembra que com um pouco de água é possível cultivar pequenas hortas de subsistência e criar poucos animais.

A CPRM já revitalizou 473 poços, beneficiando 29.385 famílias em 385 municípios. Só nos últimos dois anos foram 434 poços. Nem todos os poços parados podem ou precisam ser reativados. Há casos em que a própria comunidade desliga a bomba porque açudes próximos estão cheios. Ou porque a prefeitura e o Estado trouxeram uma adutora na região. A Petrobrás furava e, quando não encontrava petróleo, mas água, tampava o buraco. Com o cadastro, até o sistema de carros-pipa ficou mais eficiente. Agora busca-se água no terreno mais próximo.

No início do século passado, furar poços era a alternativa mais viável. O Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, o Dnocs, atuou durante anos na perfuração de poços artesianos e construção de açudes. Politicamente, era obra certeira. Juntava a geração de empregos com a expectativa de ofertar água. Só nas últimas décadas outras ações foram incorporadas, como uso de cisternas, transposição de bacias e dessalinização de águas.

Depois da reforma, andança suspensa
No Povoado de Vidéu (PE), a fonte estava sob os pés
O Povoado do Vidéu fica a 50 quilômetros da sede de Ouricuri, no sertão pernambucano. A adutora mais próxima está a quase 20 quilômetros. Mas ali pertinho do sítio do Vidéu, onde moram as cerca de 400 famílias da comunidade, tem um poço com água subterrânea. Água boa, de beber. E não é que ele ficou paralisado quase dez anos, enquanto a população passava sede? A ironia é que foi uma chuva forte que fez queimar a única bomba que fazia a captação. Só foi consertada há dois anos.

O Serviço Geológico do Brasil (antiga Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais) descobriu que o poço era ruim, mas não imprestável. Tinha uma vazão de 1.800 litros por hora. Bem melhor que viajar até 10 quilômetros em cima de uma carroça ou um jegue. Ou esperar o carro-pipa. A CPRM cercou o poço para evitar a depredação, instalou um registro para controlar o desperdício, montou um novo encanamento e ensinou os moradores a usarem racionalmente a água.

"Depois que recuperaram o poço, aprendemos também que precisaríamos cobrar o poder municipal", explica João Batista Viana de Macedo, presidente da Associação de Moradores e Agricultores do Povoado de Vidéu. Deu resultado. Em novembro, quando as famílias se acostumaram a viver com água, a prefeitura entregou um segundo poço de maior vazão. Por hora, são mais 4 mil litros de água. Some-se a isso outras 30 cisternas construídas em algumas casas.

ESPERANÇA

"Muitos moradores não foram embora porque tinham medo de perder suas terrinhas", afirma o presidente da associação de moradores. Agora que há obras permanentes e água num nível mínimo, as famílias imaginam que chegou a vez do Povoado do Vidéu. Fazem dívidas para comprar e cultivar feijão de corda, milho, sorgo e capim de búfalo.

Esperam que não fiquem refém do clima. No ano passado, quando não choveu e a seca veio forte, a solução ainda foi racionar a água.

Água para quem tem sede. Mas sede de quê?
Governo alega que precisa levar recursos ao semi-árido; para ambientalistas, obra servirá ao agronegócio
Eduardo Nunomura
Como pode alguém negar um copo de água a quem tem sede? O ex-ministro Ciro Gomes e outros representantes do governo usavam esse argumento sempre que eram pressionados a debater o projeto de transposição do Rio São Francisco. Visto dessa forma, como dizer não? A argumentação, contudo, nunca bastou para remover a série de obstáculos contrários às obras de levar água para o semi-árido nordestino. A começar do Ibama, órgão federal, que até hoje não concedeu a licença ambiental total - o processo foi aberto em maio de 1994 e a solicitação de licenciamento ocorreu em janeiro de 2000.

O relatório de impacto ambiental, de julho de 2004, enumerou 44 impactos provocados pela construção de dois canais. Só 12 eram positivos, como levar água para quem tem sede, gerar empregos e reduzir o êxodo rural. A maioria indicava que havia riscos como reduzir a geração de energia elétrica, ameaçar a fauna e a flora e perder terras férteis numa região já carente desses recursos. Ambientalistas se apressaram então a cobrar a revitalização do Velho Chico antes das obras sonhadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Numa tentativa de reduzir a resistência, o governo rebatizou as obras com o nome de "Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional". Transpor tem um sentido de transferir, levar de um lugar para outro. No caso a água que já faz falta até mesmo nas cidades lindeiras ao rio. Não é raro encontrar nordestinos e mineiros que vivem às margens do Velho Chico sem abastecimento mínimo de água. Choca porque estão ao lado de ricos projetos de irrigação presentes na bacia, como em Juazeiro (BA) e Petrolina (PE).

Transpor águas é obra velha. Nos Estados Unidos, foi feito no Rio Colorado. Lá a água já deixou de chegar à foz alguns meses do ano. Ambientalistas e governos do chamado Baixo São Francisco, como Sergipe e Alagoas, têm medo de que aconteça o mesmo com a obra brasileira. Nesses Estados, o rio vem perdendo força para o avanço do mar, a língua salgada que sobrepuja o Velho Chico. Causa ou efeito do aquecimento global?

Hoje, para produzir energia, usinas hidrelétricas tornaram a vazão do rio artificial, com hora e volume definidos por máquinas. Quando a lagoa de Sobradinho começa a reter água, os ribeirinhos percebem de imediato. A Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a Chesf, afirma que sem o seu controle o rio estaria ainda mais seco. E aí resta a explicação de que são vários os maus usos da água.

Carvoarias que dizimaram florestas em Minas secaram afluentes do São Francisco. Outros sofrem com o lançamento direto e indiscriminado de esgotos, como faz a Grande Belo Horizonte no Rio das Velhas, o maior afluente do Velho Chico. A sorte é que a natureza minimiza a ação do homem. O rio perde e recupera vida ao longo de seus 2.700 quilômetros. É poluído no Alto São Francisco. É translúcido nos cânions de Canindé de São Francisco (SE), Baixo São Francisco.

Revitalizar um rio é obra rara. Significa recuperar a vegetação das margens, a mata ciliar, desassorear a calha do rio, tratar esgoto, evitar desperdício de quem já se aproveita das águas. De 2004 a 2006, enquanto se discutiam as obras, o governo gastou R$ 229,4 milhões no programa revitalização de bacias hidrográficas, boa parte centrada no São Francisco. Mas deixou nos cofres R$ 57,9 milhões do orçamento. Na semana passada, Lula carimbou a cifra de R$ 3,3 bilhões para começar a construir 700 quilômetros de canais.

Ambientalistas criticam a obra por tentar retirar água de um rio combalido. Acusam o governo de ocultar que a transposição do São Francisco será utilizada para abastecer o agronegócio irrigado, culturas de camarão no Rio Grande do Norte e outros projetos de grande porte, além de favorecer megaempreiteiros que tocarão os canais. O governo se defende e admite que o projeto quer matar a sede e levar desenvolvimento a uma região até hoje sem alternativa.

Os Estados beneficiários, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, querem o projeto. Os demais, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas, temem ser prejudicados econômica e ambientalmente.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, um gerentão do Velho Chico, admite que a vazão mínima, que determinará a retirada máxima de água pelos vários projetos sugadores ao longo da bacia, seja reduzido em até 1.500 metros cúbicos (mil litros) por segundo. Hoje é de 1.850. O governo alega que o projeto vai aumentar a retirada de água na proporção de 1 litro em cada 100. Na somatória, significa remover entre 26 e 127 metros cúbicos por segundo.

Polêmica reflete um conflito federativo
Ribamar Oliveira
A polêmica em torno da transposição das águas do Rio São Francisco reflete um conflito federativo. Os governadores dos Estados banhados pelo rio criticam a iniciativa com o argumento de que as águas não vão garantir o consumo humano e animal, mas beneficiar projetos de irrigação, fazendas voltadas para a exportação e indústrias do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.

Para eles, essa água poderia irrigar, a custos menores, terras férteis localizadas às margens do rio. Temem que reste pouca água para empreendimentos na bacia do rio, ou seja, em Minas, Bahia, Sergipe e Alagoas. Pernambuco é o único Estado banhado pelo São Francisco que se beneficiará do projeto. As águas do rio, como se vê, representam a perspectiva de desenvolvimento econômico. Por isso, é provável que os conflitos só terminem quando a União se comprometer a compensar, de alguma maneira, os Estados doadores de água.

A Agência Nacional de Águas (ANA) garante que há disponibilidade de água para a transposição e a polêmica tem pouco a ver com questões técnicas. O projeto já obteve a licença ambiental prévia do Ibama, o certificado de avaliação de sustentabilidade e a outorga de direto de uso de água dados pela ANA. Resta só a licença de instalação, a ser concedida pelo Ibama.

Projetos ecológicos combatem impacto de atividades econômicas
Programas de uso sustentável dos recursos hídricos ganham importância em empresas instaladas no Brasil
Nos últimos anos, a obsessão pela temática ecológica provocou grandes transformações na rotina das empresas. Hoje, quase tão importante quanto obter lucros é desenvolver políticas ambientais capazes de minimizar o impacto na natureza das atividades econômicas realizadas.

Nesse novo cenário corporativo, o uso sustentável da água tornou-se uma espécie de requisito de qualidade que distingue heróis (as chamadas corporações verdes) de vilões (as companhias que não se converteram à onda preservacionista).

Poucas empresas no Brasil mantêm projetos tão abrangentes de proteção dos recursos hídricos quanto a Hidrelétrica Itaipu Binacional, no Paraná. Criado em 2003, o programa "Cultivando Água Boa" está presente em 29 municípios paranaenses, num total de 108 ações executadas em parceria com mais de 1.200 instituições.

As iniciativas compreendem desde a eliminação de pontos de poluição dos afluentes do Rio Paraná até o incentivo ao cultivo sem agrotóxicos, para evitar a contaminação do solo.

Embora seja pródiga em recursos naturais, a região de Itaipu é problemática. A intensa atividade agropecuária e a falta de saneamento básico em muitos municípios locais interferem diretamente na qualidade da água que forma a Bacia do Paraná, onde vivem aproximadamente 1 milhão de pessoas. "Há pouco mais de uma década, a degradação ambiental era um dilema que parecia incontornável", diz Nelton Friedrich, coordenador dos programas ambientais da Itaipu Binacional. "Hoje, pode-se dizer que esse não é um caminho sem volta."

Para proteger a mata ciliar e conseqüentemente preservar a água dos 13 rios que deságuam no Paraná, a empresa instalou 300 quilômetros de cerca que impedem o acesso de animais como porcos e gado às margens dos rios (a região responde por quase a metade da produção paranaense de suínos, o que por si só representa um grave problema ambiental). Uma das medidas adotadas no combate à agropecuária predatória é o estímulo à piscicultura. Desde o ano passado a Itaipu Binacional vem investindo na instalação de tanques destinados à criação de peixes, atividade muitas vezes mais lucrativa - e menos nociva ao meio ambiente.

Nenhuma dessas atividades foi tão marcante quanto a construção do Canal da Piracema, um rio artificial de 7,5 quilômetros que liga o Rio Paraná ao reservatório da usina. Com o surgimento da barragem de Itaipu, a força das águas impedia que muitas espécies de peixes conseguissem migrar na época crucial para a sua reprodução, a chamada piracema. O canal passou a ajudar os peixes a vencerem o desnível de 120 metros entre a superfície do lago de Itaipu e o Rio Paraná. "A observação da piracema tem um impacto educacional muito grande", diz Friedrich. "As pessoas aprendem a respeitar e valorizar a natureza." Segundo ele, a Itaipu investe por ano US$ 4 milhões nos programas de preservação dos recursos hídricos.

ÁGUA REAPROVEITADA

Para algumas empresas, o uso sustentável da água pode ser lucrativo. Maior fabricante mundial de refrigerantes, a Coca-Cola tem, desde os anos 1990, um programa global de uso responsável de recursos hídricos. No Brasil, os projetos ambientais foram implantados mais recentemente, mas os resultados já são consistentes. Medidas simples como o controle do desperdício, o reaproveitamento da água utilizada no processo industrial e a busca por fontes alternativas (água da chuva, por exemplo) geraram muitos benefícios para a empresa, especialmente financeiros.

No ano passado, a Coca-Cola consumiu 2,21 litros de água para cada litro de refrigerante produzido. Em 2005, esse índice foi de 2,24 litros. Parece uma redução insignificante. Não é. A queda no consumo representou no ano passado uma economia de 270 milhões de litros de água - ou R$ 700 mil. Para efeito de comparação, há dez anos o consumo de água na Coca-Cola Brasil era de 5,4 litros para cada litro de refrigerante. Portanto, em uma década a gigante americana deixou de gastar dezenas de milhões de reais no Brasil apenas com o uso racional da água. "No nosso caso, essa questão é ainda mais emblemática", afirma José Mauro de Moraes, diretor de Meio Ambiente da companhia. "A água é a a principal matéria-prima utilizada na produção do refrigerante."

Companhias cujas atividades econômicas causam danos à natureza também passaram nos últimos anos a investir na gestão responsável de seus recursos hídricos. Instalada no município de Vargem Bonita, em Santa Catarina, a Celulose Irani, uma das maiores do Brasil no ramo de produção de papel, papelão e embalagens, conseguiu no ano passado reaproveitar 70% da água utilizada nos processos industriais, o maior índice já obtido na história da empresa. Isso só foi possível graças à modernização do maquinário. Nos últimos dois anos, a empresa gastou R$ 12 milhões na aquisição de caldeiras e outros equipamentos que têm como característica inovadora a capacidade de reutilizar a água.

A Irani também desembolsou no ano passado R$ 5 milhões na ampliação de seu sistema de tratamento de efluentes. Com a iniciativa, reduzirá em até 50% o envio de poluentes à microbacia do Rio Chapecó, causando enorme impacto na preservação ambiental da região. "A medida favorece inclusive moradores locais, pois eles poderão usufruir de águas mais limpas", diz Leandro Farina, responsável pela gestão ambiental da Irani. A companhia tem vocação ecológica. Recentemente, tornou-se uma das primeiras empresas brasileiras de papel e celulose a ter créditos de carbono reconhecidos pelo Protocolo de Kyoto.

A preocupação das empresas com a gestão sustentável da água não se justifica apenas pelo caráter ecológico. Trata-se, acima de tudo, de uma questão econômica. Segundo um estudo realizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o custo da água já representa 4% do faturamento de uma empresa. Com a escassez de recursos prevista para os próximos anos, esse índice tende a aumentar.

Um projeto grandioso e divisor de opiniões

Contra
Geddel Vieira Lima

Será que a sina de milhões de famílias de sertanejos tem de ser sempre a mesma de Sinhá Vitória e Fabiano? O presidente Lula - ele próprio nascido no sertão e também obrigado a migrar fugindo da seca e do coronelismo - responde com um convicto "não", que coloca o governo a trabalhar para mudar a geografia da seca.

Poderia aqui, neste artigo de estréia, enunciar longa lista de estatísticas para ilustrar a gravidade e urgência de um tema tão crucial e tão na agenda, como a interligação das bacias do Rio São Francisco.

O Velho Chico detém cerca de 75% de toda a água do Nordeste, e sabe-se que a vida humana só é sustentável quando há a disponibilidade mínima de 1.500 m3 de água por habitante por ano. Como na região a ser beneficiada pelo projeto, essa disponibilidade é, de maneira geral, inferior a 500 m3/hab/ano, a triste realidade é que há menos de um terço do mínimo necessário.

Como acabo de assumir o Ministério da Integração Nacional, assumo a missão de dar continuidade a essa grande iniciativa, fruto da aguda sensibilidade do presidente Lula, inspirado por um sentimento de otimismo. Não otimismo panglossiano ou parvo, mas tendo claro que a chamada transposição do São Francisco é uma iniciativa histórica, tanto no aspecto simbólico, como técnico.

O Brasil tem uma curiosa tradição: alguns projeto flutuam pela burocracia como fantasmas, passando em silêncio, sem deixar rastros, até se consumarem por vezes em grandes desastres administrativos. Já algumas das mais importantes conquistas de nossa nação, por mais acertadas que pudessem ser, só vieram à luz após um potente choque de opiniões.

Que debate pode ter dividido mais o País que a construção de Brasília por JK? Mas quem se lembra hoje ou respalda as argumentos contrários à capital, especialmente ao enxergar os enormes benefícios provocados pela interiorização do País? Como apreciar toda a prosperidade da fronteira agrícola que surgiu no Centro-Oeste e não prestar um tributo ao presidente Bossa Nova?

Como não lembrar, então, de todo o debate cívico do "petróleo é nosso"? A Petrobrás é mais que uma empresa: é uma conquista que nos identifica no orgulho de sermos brasileiros. E seus críticos? Quem se lembra deles? Cito exemplos grandiosos.

Mas é a partir dessa perspectiva - a de que a transposição é antes de tudo um símbolo de um futuro que queremos construir - que encaro essa obra. São três os vetores que irão me guiar na empreitada.

1) Sou baiano e, em minha posse, fiz questão de ressaltar que vestirei sempre, como sempre vesti, o manto sagrado dos interesses da Bahia. Agirei sempre com equilíbrio e eqüidistância.

2) Entendo que é preciso discutir mais - e não menos - a transposição. Tenho claro que os principais beneficiados ainda não tiveram a chance de conhecê-la em profundidade, para entender o seu ambicioso significado. É preciso informar mais e melhor, para tornar mais fecundo o debate.

3) Tenho certeza de que o povo, sempre generoso, saberá partilhar de maneira humanitária um bem tão precioso à vida, como a água de beber, com seus irmãos que não têm sequer o mínimo indispensável. Esse é um ditame ético e, conhecendo o Brasil profundo, sei o quanto o nosso povo é nobre.

Nos últimos 15 anos, aprendi como parlamentar a ver os choques de idéias como um depurador do interesse público. Minha experiência me ensina que é preciso não esmorecer, estar aberto, buscar o consenso, pois há um momento em que a paixão cede espaço ao pragmatismo, avançando-se na direção do interesse coletivo.

Minha mais importante missão é ajudar a construir uma transposição ainda mais importante do que a de qualquer obra física: é hora de fazermos uma transposição dos preconceitos que envolvem a interligação da Bacia do São Francisco. A história mostra que, toda vez que isso aconteceu, deixamos como legado um Brasil melhor para as futuras gerações.

Sei que a carga emocional associada ao projeto é fora do comum, mas estamos abertos e com disposição férrea para contribuir na superação da miséria física e existencial dos fabianos e severinos.

É ministro da Integração Nacional

A favor
D. Luiz Flávio Cappio

q O projeto de transposição do Rio São Francisco desrespeita a realidade ao considerarmos que o rio está em franco processo de morte. Trata-se de um projeto altamente agressor, ecologicamente e socialmente injusto. Ao invés de levar as águas do rio para o povo e garantir a vida da fauna e da flora, o projeto prioriza grandes projetos agroindustriais, privilegiando pequeno grupo em detrimento da grande massa que continuará sem acesso à água. É socialmente injusto e ecologicamente agressivo.

Numa caminhada que fiz da nascente à foz do rio, de outubro de 1992 a outubro de 1993, detectei todo tipo de agressão, como a destruição das fontes, a morte das lagoas e dos brejos e o desmatamento das matas ciliares que protegem os barrancos. O assoreamento é cada vez maior, com queda dos barrancos e poluição das águas pelos dejetos sanitários das cidades, pelos dejetos químicos das indústrias e pelos agrotóxicos de grandes projetos de irrigação.

Isso tudo vai para a calha do rio. Os projetos de irrigação, por exemplo, não gerenciam o uso da água. Quem tem dinheiro para pagar a energia elétrica pode colocar quantos pivôs quiser para receber a água do rio.

O rio está numa UTI. Um anêmico, como é o caso do São Francisco, não pode doar sangue. Antes de exigir que o rio seja utilizado para o multiuso é preciso revitalizá-lo. O governo precisa dar condições de vida ao anêmico para depois tirar seu sangue.

Um grande problema do projeto é o endereçamento das águas do rio. A propaganda oficial do projeto é mentirosa. Diz que se trata de uma cuia para levar um pouquinho de água para quem tem sede. Isso comove e compra a opinião pública. Está comprovado que o rio não levará água ao povo, mas aumentará o volume dos rios já perenizados e barragens para beneficiar grandes projetos agroindustriais de produção de frutas nobres para exportação.

Os canais passarão a centenas de quilômetros do povo. Mais uma vez se concentrará a água para beneficiar um pequeno grupo. Se fosse um projeto que beneficiasse os pobres, o governo teria tanto interesse nele? A revitalização proposta pelo governo é uma proposta duvidosa, pois está atrelada à transposição. É preciso um projeto de revitalização que leve em conta as nascentes, as matas e florestas da calha principal e dos tributários do rio. O São Francisco depende de florestas, de suas nascentes. Um projeto de revitalização precisa garantir a vida das nascentes e da vegetação das margens.

Dos 5.400 km de margens do rio, apenas 5% das matas ciliares estão preservadas. O projeto tem de garantir a reconstituição da vegetação. Um projeto de transposição só poderia ser pensado com o rio sadio e forte. O São Francisco não está nas mesmas condições dos Rios Tocantins, Araguaia e Paraná, que têm sua perenidade garantida. Este projeto é diferente. Um projeto de revitalização sério precisa atacar toda a carga de poluição que cai nas águas do rio. Não adianta distribuir recursos para as prefeituras plantarem uma meia dúzia de árvores.

O governo não nos ouve. Precisei fazer greve de fome para ser ouvido. O Lula me perguntou: "Mas, frei, porque o senhor não veio conversar comigo?". Eu respondi: "Presidente, vim sim. Várias vezes. Pode olhar na sua mesa. Todos os documentos contrários à transposição têm a minha assinatura". Ninguém foi ouvido. É um projeto autoritário, que enfia goela a baixo do brasileiro algo contestado e que divide. Foi preciso ficar 11 dias em jejum para ter uma anistia por uns dias. Ganhamos a luta, mas não a guerra.

No processo eleitoral do segundo turno não se falou em transposição. Agora, a proposta vem com toda força. A gente percebe malícia e maldade por parte de um grupo que quer fazer uma coisa e não quer ouvir ninguém. O povo acredita, coitado, quando se diz que somos egoístas e não queremos dar água. É mentira. Essa água não é para o povo, não.

É bispo diocesano de Barra (BA), co-autor do livro 'Rio São Francisco: Uma Caminhada entre Vida e Morte' (Ed. Vozes)

OESP, 22/03/2007, Especial, p. H1-H12

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