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Déficit de justiça agrava a crise ambiental

O Globo, Amanhã, p. 21
Autor: ROQUE, Atila
18 de Jun de 2013

Déficit de justiça agrava a crise ambiental
Impunidade de crimes cometidos em disputas por terra é um dos obstáculos ao desenvolvimento sustentável da Amazônia

Há um déficit de justiça no Brasil que se manifesta de maneira intensa na impunidade dos crimes cometidos em conflitos por terra. A violência contra pequenos proprietários rurais, povos indígenas, quilombolas e outras populações vulneráveis tem sido constante, com graves consequências sociais e ambientais. Essas violações de direitos humanos aumentam na esteira do acirramento das disputas por recursos naturais que alimentam um novo ciclo econômico e dos impactos negativos das grandes obras de infraestrutura.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra, em 2012 houve 36 assassinatos em conflitos agrários no Brasil - um aumento de 24% em relação ao ano anterior. Além dessas mortes, ocorreram 77 tentativas de homicídio e 295 pessoas foram ameaçadas em disputas fundiárias. A maioria dos assassinatos foi de líderes de pequenos produtores, incluindo indígenas e quilombolas. Quase 60% dos crimes ocorreram na região amazônica, sobretudo nos estados de Rondônia e do Pará. Os casos acompanhados pela Anistia Internacional no Brasil ilustram esses dados, como o assassinato dos extrativistas paraenses José Claudio e Maria do Espírito Santo, mortos a tiros em 2011, próximo à cidade de Nova Ipixuna. Eles denunciavam a extração ilegal de madeira por fazendeiros da região. A irmã de Maria, Laísa Santos Sampaio, tem sofrido diversas ameaças e está inserida no Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. Em abril, um júri popular absolveu o fazendeiro acusado de ser o mandante dos dois homicídios. No mesmo julgamento, dois homens (um deles, seu irmão) foram condenados pela execução do crime.
A situação dos Guarani-Kaiowá também é expressiva da persistência do abuso e da impunidade. Desde a década de 1950, eles têm sido expulsos de suas terras no Mato Grosso do Sul por fazendeiros que exploram uma sucessão de booms agropecuários - os mais recentes, de cana-de-açúcar e soja. Os esforços dos índios para retomá-las têm sido respondidos com violência. Na década de 2000, cerca de 300 Guarani- Kaiowá (etnia composta por aproximadamente 30 mil pessoas) foram assassinados. A maior parte desses crimes permanece impune, como a morte por espancamento de Marcos Verón, um cacique de 72 anos que liderava uma reocupação pacífica de terras indígenas. A essa triste contabilidade acrescentamos a morte do índio terena Oziel Gabriel numa ação de reintegração de posse, em Sidrolândia (MS).
É fundamental que a realização de grandes obras de infraestrutura respeite o direito de consulta prévia, livre e informada das populações que sofrem seus impactos negativos, como assegurado pela Constituição. Conflitos envolvendo povos indígenas e ribeirinhos nos rios Xingu e Tapajós devem ser resolvidos por meio do diálogo. Tropas militares e a Força Nacional de Segurança não podem ser utilizadas para cercear os direitos dessas populações a se organizar e questionar de forma pacífica as decisões governamentais.
O déficit de justiça precisa ser enfrentado com o aperfeiçoamento das instituições responsáveis pela defesa dos direitos humanos e pelas investigações de suas violações. Também é fundamental que as polícias e o Ministério Público tenham os recursos e treinamento necessário para que possam cumprir com suas funções e que o sistema judicial consiga julgar com rapidez esses casos. A sua lentidão tem fortalecido a impunidade, como se observa na demora de quase dez anos para julgar os responsáveis pelo episódio que resultou na morte de cinco trabalhadores rurais e mais 12 pessoas feridas à bala, ocorrido no município de Felisburgo (MG), em 2004.
A busca de justiça nos conflitos agrários é um dos pilares para construir um desenvolvimento com direitos humanos, que rompa com a tradição excludente e violenta que caracterizou muito da história brasileira. Regras e princípios da democracia devem regular os conflitos por recursos naturais, garantindo a proteção das populações que tiram da terra o seu sustento e que dependem de seus territórios tradicionais para a preservação de suas culturas.

ATILA ROQUE/COLUNISTA CONVIDADO(Diretor-executivo da Anistia Internacional Brasil)

O Globo, 18/06/2013, Amanhã, p. 21

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