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Da APA para os tribunais

O Globo, Rio, p.14-15
01 de Set de 2005

Da APA para os tribunais
Fernanda Pontes e Luiz Ernesto Magalhães
O prefeito Cesar Maia disse ontem que vai argüir a inconstitucionalidade da Lei Complementar 4/2005 que muda as regras urbanísticas na Área de Proteção Ambiental (APA) do Parque de Marapendi. Anteontem a Câmara dos Vereadores derrubou o veto do prefeito à lei, que será promulgada. A nova legislação permitirá a construção de cinco hotéis em dois eco-resorts entre a Barra e o Recreio, num dos últimos trechos não ocupados da orla da cidade, numa faixa contígua entre a lagoa e o mar.
Segundo o prefeito, a lei traz implicações ambientais e econômicas. Cesar lembra que a região tem um ecossistema complexo que corre o risco de ser comprometido. Ele acrescentou que a lei, ao dobrar de 15% para 30% a Área Total Edificada (ATE), permitirá que os proprietários construam em espaço maior, aumentando as margens de lucro — o chamado solo criado — sem contrapartida financeira à prefeitura.
— Isso cria um precedente gravíssimo. O solo criado é um patrimônio em potencial da prefeitura que não pode ser concedido sem contrapartida financeira. A menos que sejam projetos de interesse social, como em favelas — disse.
O empresário José Leão, um dos interessados na alteração da lei, porém, diz não ver nada de errado na medida. Ele alega que os vereadores têm autonomia para propor alterações urbanísticas na cidade:
— Vou aguardar que a Justiça analise a questão. Tenho certeza de que nenhuma ilegalidade foi cometida — disse o empresário.
Cesar citou mais um detalhe na lei que será também alvo de questionamento judicial. Em julho, ao analisar o projeto, o prefeito vetou o texto integralmente. Na sessão de anteontem, os vereadores decidiram analisar artigo por artigo. Eles mantiveram os vetos apenas nos artigos com regras que abriam caminho para apart--hotéis, cuja construção é proibida no Rio. Os artigos previam que os quartos tivessem numeração independente e o uso misto dos quartos (residencial e hoteleiro).
Cesar admitiu, porém, que vai estudar a proposta que criou regras para a construção de prédios residenciais e um hotel de até cinco andares num terreno vizinho da APA, próximo ao emissário submarino.
— Isso pode ser negociado. Mas, provavelmente, por projeto de lei distinto, separado do que mudou as regras de construção da APA de Marapendi — disse o prefeito.
Proposta continua gerando discussão
Ontem a proposta para a APA de Marapendi ainda dividia opiniões.
— Além de degradar a APA, os eco-resorts são um precedente perigoso para outras alterações na legislação da área — disse Luci Augusta de Carvalho, presidente da Associação de Moradores da Orla da Lagoa.
O empresário Jayme Drummond, que presta consultoria para a rede internacional Four Seasons, um dos grupos interessados em instalar resorts no local, sustenta que o risco de os empreendimentos aumentarem a degradação não existe:
— Esses resorts são de alto luxo. Os clientes são exigentes e estão dispostos a pagar uma diária de cerca de US$ 600 apenas se tiverem a certeza de que ficarão hospedados num lugar cujo meio ambiente no entorno esteja preservado.
Já o presidente do Sindicato dos Arquitetos, Marcos Azevedo, teme o impacto da construção de eco-resorts num ecossistema tão rico como o da APA de Marapendi. Ele lembra que é difícil encontrar trechos da orla, em áreas urbanizadas, em que ainda haja áreas cercadas pelo mar, lagoa e vegetação de restinga:
— Em nome do interesse público, aquela área tem que ser tratada com cuidado — disse Marcos.
Hoje a preservação da APA de Marapendi deixa a desejar. Em alguns lotes, foram criados estacionamentos particulares com diárias a R$ 5. Problemas como este são usados como argumentos pelo biólogo Mário Moscatelli para defender regras mais flexíveis para a construção na área:
— A fiscalização da prefeitura é ineficiente. E os recursos da Secretaria municipal de Meio Ambiente são insuficientes para evitar a degradação da área. É possível ter regras mais liberais para construir na área exigindo em troca medidas de compensação ambiental.
O coordenador técnico de Meio Ambiente da Federação das Associações de Moradores da Barra, Sérgio Andrade, também criticou a falta de preservação da APA:
— Não tivemos invasões nas áreas verdes por um milagre. As fiscalizações deveriam ser intensificadas.
O secretário municipal de Meio Ambiente, Ayrton Xerez, rebate as críticas de falta de fiscalização.
— Aquela área tem mais de um milhão de metros quadrados. A fiscalização é difícil, mas temos a Patrulha Ambiental que fiscaliza a área, combatendo a caça e a pesca predatórias — argumenta.
Outro questionamento de moradores e ambientalistas em relação ao projeto é a falta de participação da sociedade na elaboração do programa na APA de Marapendi. A promotora Rosani Cunha lembrou que um dos fatores que contribuíram para a derrubada da lei dos apart-hotéis no Rio foi justamente a falta de discussão do projeto com a população, como determina o Plano Diretor.
— Pelo Plano Diretor da cidade, é necessária a participação da população em todas as etapas do processo do planejamento de alterações urbanísticas. Por isto, vamos entrar com uma representação no Ministério Público contra o projeto — disse o diretor do Grupo Ação Ecológica (GAE), Gustavo de Paula.
O ambientalista Rogério Zouein lembrou que o Projeto de Estruturação Urbana (PEU) de Vargem Grande foi discutido com os moradores durante audiências públicas:
— Essa é a questão mais importante. No caso dos resorts, a população não foi ouvida.
Já o presidente do conselho da Associação de Moradores do Recreio, Cleomar Paredes, disse que o projeto ainda será discutido pela entidade:
— Aparentemente somos contra o projeto, mas precisamos discutir o assunto e verificar os pontos positivos e negativos. Acho que qualquer intervenção numa área como a APA deve ser muito bem planejada.

Ampliar o debate
A OCUPAÇÃO e exploração racionais são sempre melhores do que o congelamento de espaços que depois terminam invadidos por favelas, madeireiros, grileiros etc.
A REGRA vale para a Amazônia e pode ser aplicada à Área de Proteção Ambiental (APA) de Marapendi. Mas isso deve ser feito depois de amplo e esclarecido debate.
NÃO É o que acontece com os projetos imobiliários previstos para a APA, assunto em torno do qual se enfrentam a prefeitura e vereadores.
EMPRESÁRIOS DEFENDEM os empreendimentos; associações de moradores, o oposto, o que é natural. Por isso, e pela importância da região, é preciso ampliar a discussão, torná-la de fato pública para que se tenha mais informações sobre os prós e contras da construção dos prédios.
DEPOIS DECIDE-SE sem emocionalismo.

Projetos que nada permitem, só `tornam viável'
Autor alega que legislação caducou e nada foi feito
O projeto que altera as regras urbanísticas na APA de Marapendi trouxe à tona uma outra questão: a iniciativa de se mudar a legislação apenas para viabilizar empreendimentos.
- As regras atuais são de 1991 e nada foi construído no local. 0 tempo está passando e a APA está sendo desmatada e tomada por lixo. Como a prefeitura não tomou qualquer atitude, é legítimo que os vereadores tomem a iniciativa para resolver um problema da cidade. Em momento algum sabia da existência de projetos para a construção de eco-resorts - argumenta o vereador Jorge Pereira (PTdoB), um dos autores do projeto.
O projeto foi de autoria também de Luiz Guaraná (PSDB), que, depois da reação negativa dos moradores da Barra - sua base eleitoral - recuou e apresentou a proposta de proibir totalmente construções na área, ainda sem previsão de ser votada. Já Pereira considera legítimo que os vereadores apresentem projetos de interesse do setor imobiliário.
O vereador Rubens Andrade (PSC), que votou contra a derrubada do veto, discorda do colega:
- Leis como essa são um estímulo para que a cidade cresça sem planejamento. Não se resolvem problemas legislando no varejo. Enquanto isso, a revisão do Plano Diretor, que deveria ter sido concluída em 2002, permanece parada.
Já a presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, Aspásia Camargo (PV), concorda:
- Precisamos discutir como criar instrumentos para reforçar a fiscalização e garantir a preservação.
Derrubado veto a lei que permite puxadinhos
Luiz Ernesto Magalhães
Menos de 24 horas após abrir caminho para a construção de eco-resorts na APA de Marapendi, a Câmara de Vereadores derrubou o veto a uma segunda lei que permite a construção de puxadinhos” de cobertura da região. Por 27 votos a 3, foi derrubado o veto do prefeito Cesar Maia à lei de Luiz Guaraná (PSDB) alterando dispositivos do Plano Lúcio Costa que regulamentam a ocupação de coberturas da Barra da Tijuca e do Recreio.
Segundo a legislação atual, a ocupação das coberturas é restrita a 50% da área total construída. A nova lei libera a ocupação total do terceiro pavimento e libera o uso da laje superior como área de lazer. O prefeito Cesar Maia adiantou ontem que também pretende ir à Justiça contra a nova lei.
O argumento do prefeito no caso dos puxadinhos” é semelhante ao caso dos eco-resorts. Qualquer lei que torne as regras de construção mais liberais é ilegal se não prever o pagamento de contrapartidas financeiras à prefeitura.
— A legislação atual que não permite a ocupação das coberturas tem mais de 20 anos e está defasada. O projeto apenas corrige um problema da região, provocado pela falta de fiscalização — defendeu Luiz Guaraná.
As lideranças comunitárias se dividiram em relação à nova legislação da área:
— Essa lei é um absurdo. Trata como um grande otário o morador que sempre respeitou a legislação vigente e não construiu puxadinhos” — criticou o presidente da Associação de Moradores do Jardim Oceânico, Eric Pereira.
Já o presidente da Associação de Moradores do Recreio (Amor), Cleomar Paredes, disse que a lei corrige uma injustiça com os proprietários.
— O IPTU cobrado nessa região é bastante elevado. E a área livre das coberturas é levada em conta nos cálculos. Nada mais justo que o morador possa construir sobre toda a área — disse Cleomar Paredes.
Dos 50 vereadores, 30 analisaram o veto. O resultado da votação foi idêntico ao registrado na aprovação da lei há dois meses: 27 votos favoráveis contra três contrários (os de Eliomar Coelho, do PT; Paulo Cerri, do PFL; e Teresa Bergher, do PFL).
— Há algo de esquisito nesta Casa. Num dia, liberam eco-resorts. Hoje (ontem), puxadinhos”. São projetos absurdos cuja aprovação mostra que muitos colegas da Casa não têm respeito pela cidade — criticou o vereador Eliomar Coelho.
Guaraná, por sua vez, sustenta que o projeto foi discutido em sucessivas audiências na Câmara de Vereadores com a presença de lideranças comunitárias e o Ministério Público. O vereador diz que, ao contrário do que pensam os críticos, o projeto poderá garantir a harmonia urbanística da Barra da Tijuca e do Recreio no futuro:
— A lei também proíbe de vez a aplicação do mecanismo da mais-valia na Barra e no Recreio. Quem construir acima do terceiro pavimento não poderá, no futuro, tentar legalizar os acréscimos com pagamentos de taxas à prefeitura. A solução será demolir esses acréscimos — disse.

O Globo, 01/09/2005, p. 14-15

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