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"Costura política do governo pode rifar direitos indígenas"

FSP, Entrevista da 2ª, p. A14
Autor: CUNHA, Manuela Carneiro da
10 de Mai de 2004

"Costura política do governo pode rifar direitos indígenas"
Para antropóloga, "falta postura" da União, que adia decisões e contribui para arrastar conflitos

Manuela Carneiro da Cunha

Flávia Marreiro
Da redação

"Sobra costura e falta postura" na política indigenista do governo Lula. O excesso de zelo na articulação política pode, diz Manuela Carneiro da Cunha, "rifar os direitos indígenas".

A antropóloga -que teve papel importante na formulação dos direitos indígenas na Constituição de 88- faz a análise no pós-massacre de 29 garimpeiros em Rondônia e no calor do imbróglio em torno da homologação da reserva Raposa/Serra do Sol (Roraima).

No primeiro caso, a professora aposentada da USP, hoje na Universidade de Chicago, aponta omissão. Menciona que o governo estava informado sobre a tensão na área. "O nó do debate é a ausência ou fraqueza do Estado."

Sobre a indefinição da reserva indígena em Roraima -o governo já adiou pelo menos duas vezes a decisão-, ela diz que a demora do governo em decidir "só arrasta e reacende conflitos".

Ela defende um modelo que compense financeiramente os povos indígenas por preservarem suas áreas e que a regulamentação dos garimpos seja discutida no âmbito da legislação indígena hoje no Congresso Nacional.

A seguir, trechos da entrevista concedida por e-mail.

Folha - Os cintas-largas devem passar por uma investigação comum? A legislação de hoje é suficiente para tratar o problema?

Manuela Carneiro da Cunha - É claro que todos, tanto índios como não-índios, devem passar por investigação normal, para apurar fatos e responsabilidades nas horríveis mortes dos garimpeiros em Rondônia. A Justiça é uma só para os pequenos e os grandes, para indivíduos e pessoas jurídicas, para quem fez, para quem impeliu e para quem se omitiu. Como diz o samba de Candeia, "cego é quem só vê até onde a vista alcança": apurar fatos e responsabilidades significa, entre outras coisas, colocar os acontecimentos no seu contexto histórico e estrutural.

O que está acontecendo nessa área de Rondônia? Entendo que há intenso contrabando de diamantes. Desde a descoberta deles, em 1999, os conflitos não cessaram. Por duas vezes (em junho e em novembro de 2003), são enviados relatórios oficiais alarmantes às autoridades. Quais foram as medidas tomadas? Como se está combatendo o contrabando?

Folha - Os garimpeiros dizem que os índios são "aculturados". Um cinta-larga falou que as mortes são parte do "modo" de resolver as diferenças. Quem pode avaliar as declarações? O que nelas, dos dois lados, pode haver de oportunismo?

Cunha - Quem tem condições de avaliar são antropólogos familiarizados com esse grupo indígena. Creio que o Estado tem todos os instrumentos para fazer uma avaliação responsável: o problema no Brasil, como sabemos, não é a lei, e sim sua implementação.

Folha - Os direitos indígenas sofrem risco? O que fazer para que o debate fique menos turvo?

Cunha - Ficará menos turvo quando se voltar a atenção para o que me parece ser o nó do problema. Essa matança não é uma questão somente de índios contra garimpeiros: isso é a ponta do iceberg. O nó do debate é a ausência ou fraqueza do Estado na Amazônia, diante dos enormes interesses. Nesse caso, ainda por cima, interesses ilegais do contrabando de diamantes. Por que o garimpo, que ficou fechado por seis meses em 2003, não continuou fechado?

Folha - A senhora relatou que a suposta índole violenta dos ianomâmis "justificou" ações contra eles nos anos 80. Com a chacina, isso pode ocorrer com os cintas-largas e outros grupos?

Cunha - Sim. Há alguns dias recebi um e-mail da Coordenação da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas denunciando seqüestro e tortura de um cinta-larga e incêndio criminoso da casa de outro cinta-larga em Espigão d'Oeste. Dizia que índios zorós, suruís e apurinãs, por serem índios, estavam sendo ameaçados de morte por garimpeiros. Pedia a intervenção do Exército na reserva Roosevelt, para garantir a proteção física dos indígenas e da terra, até que se regulamente no Estatuto dos Povos Indígenas o uso dos recursos naturais das terras indígenas em benefício dos povos indígenas.

Folha - O governo diz estudar regulamentação do garimpo em área indígena. Como a sra. avalia?

Cunha - Não existe maior maldição para índios do que ouro e, agora, diamantes. Davi Yanomami dizia que a fumaça do ouro (escondido na terra por uma divindade) matava os índios. E sabia do que estava falando. Os cintas-largas, contatados há apenas uns 35 anos, já passaram por quase todos os tipos de ganância e seus desastres: ganância pela borracha natural, pela madeira nobre e, de cinco anos para cá, diamantes. O garimpo e a mineração exploram recursos não-renováveis. Em parte por isso, na Constituinte de 1988, a Coordenação Nacional dos Geólogos se opunha à mineração em área indígena e propunha tratar as terras como reserva mineral. Mas há outras considerações: em áreas indígenas, essas atividades deixam, em geral, um rastro de mortes, prostituição, doenças, alcoolismo, corrupção. Deixam um mar de lama, no sentido literal e no figurado. Existem exemplos de garimpo em pequena escala, feito por índios. Uma regulamentação cuidadosa que atente preventivamente às dimensões de saúde, de ambiente e de ordem social pode ser considerada. Mas por que não discutir no âmbito da legislação sobre sociedades indígenas, empacada no Congresso?

Folha - A maioria dos conflitos tem como pano de fundo a sobrevivência dos índios. Foco no selo "Amazônia sustentável" é a chave?

Cunha - Sim, mas é necessário também que se ampliem as fontes de recursos para as populações tradicionais em geral. É preciso, para usar a linguagem dos economistas, internalizar os custos e benefícios ambientais. Ou seja, remunerar os benefícios e levar os malefícios em consideração quando se computarem os custos. Na prática, é o seguinte: se a insistência é gerar recursos para essas populações dentro do mercado que existe agora, o incentivo é para praticar atividades com custos ambientais (por exemplo, criação de gado) que não são computados. Se se remunerarem não só os produtos, mas os benefícios ambientais que trazem e os malefícios que deixam de trazer, ou seja, os custos de oportunidade, a equação fica bem diferente. De certa forma, é isso que o selo verde faz: usa o mercado disposto a pagar mais por atividades sustentáveis. O país poderia fazer mais que o mercado: negociar internacionalmente serviços ambientais e remunerá-los internamente.

Folha - Outro ponto de tensão é a homologação da Raposa/Serra do Sol. Parte dos índios, fazendeiros e políticos defendem a homologação não-contínua (sem fazendas, estradas e cidades). O que a senhora acha deste modelo?

Cunha - Esse é um problema antigo que se esperava que estivesse já resolvido por agora. No final de 2003, o presidente e o ministro da Justiça anunciaram para janeiro de 2004 a homologação em área contínua. Há anos os rizicultores vêm criando obstáculos: lembremos que o município de Uiramutã, um dos grandes empecilhos invocados, foi criado depois que a Funai havia concluído estudos de demarcação da área.

Folha - Como a sra. avalia a política indigenista do governo Lula?

Cunha - Há muita tergiversação. Costura política demais pode acabar rifando os direitos dos índios. Multiplicam-se comitês de governo, mas não se decide e realiza, o que só arrasta e reacende conflitos. Diria que na política indigenista sobra costura e falta postura.

Folha - As ONGs tomaram o lugar do Funai e do Estado no trabalho com grupos indígenas.
Há ações reconhecidas, mas também acusações. Há problema no modelo?

Cunha - Devem investigar as ONGs sobre as quais pesam acusações e não lançar uma suspeição sobre as ONGs em geral. Quanto à Funai, não foram as ONGs que a esvaziaram: os serviços de saúde e de educação indígena saíram do âmbito da Funai e foram para a Funasa e para o MEC. No governo FHC, a experiência acumulada pelas ONGs sérias foi ampla e positivamente usada por meio de convênios. Agora, pelo menos na Funasa, a diretriz é de execução direta. Em um caso que conheço, o resultado foi desastroso: a Urihi, uma ONG que há anos prestava assistência de saúde aos ianomâmis, foi deixada de lado. São médicos, antropólogos que há décadas trabalham na área. Tudo é jogado fora.

Cunha estudou índio krahó nos anos 70

Da redação

Autora de "Os Mortos e os Outros" (1978), sobre os índios krahó, "Negros, Estrangeiros" (1985) e "Antropologia no Brasil" (1986), a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha nasceu em Portugal, mas veio morar no Brasil com 11 anos.

Matemática de formação, enveredou pela antropologia após participar de seminários do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Foi professora da Unicamp e se aposentou pela USP.

Nos anos 80, participou da Comissão Pró-Índio e presidiu a ABA (Associação Brasileira de Antropologia). Em 1992, organizou "A Legislação Indígena no Século 19" e também "História dos Índios no Brasil".

FSP, 10/05/2004, Entrevista da 2ª., p. A14

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