VOLTAR

Comprador da Cesp vai herdar custo ambiental de valor incerto

OESP, Economia, p. B10
04 de Mar de 2008

Comprador da Cesp vai herdar custo ambiental de valor incerto
Companhia responde a mais de mil processos judiciais que podem comprometer parte da receita futura

Agnaldo Brito

A Companhia Energética de São Paulo (Cesp) entregará ao consórcio que vencer o leilão de privatização uma herança de problemas ambientais e sociais que ainda não foram totalmente calculados. A companhia responde a mais de mil processos nos municípios paulistas e sul-mato-grossenses. Em São Paulo, são 349 ações judiciais. Em Mato Grosso do Sul são 746 ações.

Boa parte dos problemas levados ao Poder Judiciário não foi incluída no edital de privatização, publicado segunda-feira. As cidades cobram compensações financeiras e a execução de obras que podem sugar milhões de reais do balanço da Cesp nos próximos anos.

A venda da companhia, prevista para 26 de março, provocou uma corrida na região do Alto Paraná. Os municípios sul-mato-grossense, os mais atingidos pela formação do lago da Usina Hidrelétrica de Porto Primavera, participam amanhã de audiência pública na Assembléia Legislativa, em Campo Grande, capital do Estado.

As cidades exigem do governo paulista a inclusão de pendências no edital, como a que atinge as olarias fabricantes de blocos cerâmicos (ameaçadas de deixar a atividade por falta de jazidas de argila) e os proprietários de áreas na margem esquerda do Rio Paraná, ameaçados pelo avanço ainda sem controle das águas do lago.

A reportagem do Estado percorreu trechos das encostas no lado paulista e sul-mato-grossense e pôde observar o avanço do lago da Usina Porto Primavera, hidrelétrica idealizada ainda no governo militar, cujo tempo de construção superou 20 anos e custou mais de US$ 14 bilhões.

'A questão principal não é a privatização, mas as garantias de que o desbarrancamento das encostas será resolvido pelo novo controlador. A Cesp não nos dá a solução e no edital não há nenhuma menção a esse problema ambiental', diz Antonio Eduardo Lima Ricardo, prefeito de Anaurilândia, um dos municípios mais afetados.

Anaurilândia perdeu 23% do território (65 mil hectares de área) quando o lago alcançou a cota de 257 metros do nível do mar, hoje limite para a operação de Porto Primavera. A questão é que boa parte dos 90 quilômetros de margem continua a ser levada pela força da água que se choca com a encosta. A Cesp já esperava o problema e alega que o processo se estabilizará em algum momento. Quando? A Cesp não diz.

MURO DE CONTENÇÃO

O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) foi contratado para monitorar a situação e um relatório definitivo sobre o problema será apresentado até o início do segundo semestre, mas qualquer intervenção terá de ser aprovada pelo Ibama.

O lago, de 2 mil quilômetros quadrados, tem 500 quilômetros de encosta entre as margens de São Paulo e Mato Grosso do Sul. 'Não acredito que essa obra de contenção seja inferior a 200 quilômetros', disse um técnico da Cesp que não quis se identificar. Não há cálculos sobre o custo dessa construção, mas a companhia já foi obrigada a erguer um muro de contenção numa das propriedades da região. Com 130 metros, a obra custou R$ 450 mil.

Há áreas de reflorestamento de margens, trabalho executado pela própria Cesp, que estão sendo engolidas pelo avanço da água. É o que se pode ver no Condomínio Associação Recanto do Lazer, área residencial com 99 lotes às margens do lago, em Anaurilândia. Ali, o avanço da água já destruiu boa parte da faixa de 100 metros de propriedade da Cesp e se aproxima das áreas particulares. Uma precária proteção de pneus foi construída em frente a alguns lotes, mas não resolveu o problema.

Nelsi João Perlim, proprietário de um dos lotes, já fez os cálculos. 'Estava aqui no dia em que o lago encheu, chegou ao limite. Desde então, a perda de área de encosta supera os 40 metros e continua a avançar.' Ele começou a mobilizar os moradores para que o Ministério Público exija uma solução.

NOVAS MÁQUINAS

A situação poderá se tornar ainda mais grave se a Cesp decidir expandir a Usina Porto Primavera. Além das 14 turbinas em operação, a barragem foi projetada para abrigar mais quatro máquinas. A estrutura de concreto para receber os equipamentos está pronta, mas essa não é uma decisão simples. Para a operação com 18 turbinas, o lago terá de subir mais dois metros e alcançar 259 metros do nível do mar.

Segundo cálculos da Cesp, essa elevação ampliaria o tamanho do lago em mais 250 quilômetros quadrados (km2), alcançando 2.250 km2. A maior parte desse avanço ocorreria sobre o território sul-mato-grossense. 'Isso não vai acontecer, essa será uma briga tão grande que nenhum controlador topará enfrentar', diz Hélvio Rech, pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP).

Para os novos controladores, caso a Cesp seja vendida, a expansão da capacidade de geração seria um bom negócio. O aumento da geração em Porto Primavera e na Usina Hidrelétrica de Três Irmãos - outra hidrelétrica incluída na privatização - permitiria à Cesp vender 10% mais energia. A capacidade instalada atual é de 7,4 megawatts, 9,69% do potencial da geração nacional e 53,2% do potencial hidrelétrico paulista.

Olarias correm o risco de fechar por falta de argila
Atividade emprega mais de 300 pessoas e foi afetada pelo alagamento

A Cesp enfrenta um novo problema social em Mato Grosso do Sul. Uma atividade econômica que emprega mais de 300 pessoas e produz mais de 4 milhões de tijolos cerâmicos para construção corre o risco de parar por falta de argila em Brasilândia (MS). O alagamento da região do Rio Paraná obrigou o assentamento dos oleiros nas proximidades da foz do Rio Verde. Todos foram levados para uma vila batizada de Porto João André, a cerca de 10 quilômetros de Brasilândia. Além da realocação das famílias, a Cesp instalou 33 olarias perto do novo bairro.

A Cesp se comprometeu a entregar uma cota de 11 mil metros cúbicos de argila a cada oleiro. Pelos cálculos da companhia, o volume seria suficiente para a produção durante oito anos. Uma solução provisória, até o licenciamento de uma jazida definitiva de onde os oleiros poderiam extrair a própria argila. As estimativas foram erradas. O maquinário cedido pela Cesp consumiu mais do que o previsto do barro armazenado, e em dois anos a principal matéria-prima acabou.

Desde então, as famílias são obrigadas a comprar a matéria-prima, enquanto aguardam a regularização de uma jazida para a extração do barro. O problema é que uma das reservas disponíveis está localizada numa área de proteção ambiental e o restante foi alagado pela Usina Porto Primavera, exatamente onde as famílias estavam.

A escassez da matéria-prima provocou a alta do preço do barro. 'Comprava argila a R$ 3,50 o metros cúbico. O preço agora não é inferior a R$ 10. Ter uma jazida própria agora se tornou uma questão de sobrevivência', diz Marco Antonio Porto, membro da segunda geração de oleiros e proprietário da Cerâmica 4 Irmãos Porto. Só a olaria de Marcos emprega oito pessoas, entre os quais Edvaldo de Souza Marques, um dos empregados contratados para levar os tijolos para dentro do forno e tirá-los depois de 36 horas.

'É um trabalho duro, corrido, mas não tem muita alternativa na região que me dê uma renda de R$ 1.000 por mês', pondera. Morador do assentamento Porto João André, Marques sustenta um casal de filhos.

As incertezas em relação ao futuro sem a principal matéria-prima levaram o setor oleiro de Brasilândia a organizar uma caravana para reforçar a mobilização de amanhã na Assembléia Legislativa sul-mato-grossense. Os oleiros querem o compromisso de que os controladores assumirão a responsabilidade de encontrar e licenciar uma jazida para a manutenção da atividade econômica local.

A mobilização não é a única medida. Algumas cerâmicas ingressaram na Justiça para assegurar o acesso a uma jazida de argila. Maria Conceição da Silva Gomes, líder dos oleiros de Brasilândia, entrou com um novo processo contra a Cesp há 15 dias. 'Estou pedindo a jazida de argila que foi prometida e até agora não licenciada.'

Barrageiro faz diques para tentar 'segurar' lago

Rildo Gomes de Souza ajudou a construir a barragem da Usina de Porto Primavera. Hoje, trabalha como caseiro num condomínio em Anaurilândia (MS). Mas, nos últimos tempos, ganha a vida mesmo construindo diques às margens do lado sul-mato-grossense. Foi a única maneira que muitos proprietários encontraram para tentar frear o avanço do lago sobre o território.

Não é uma obra de engenharia refinada. Pelo contrário. Feita de mourão de eucalipto e pneu velho, o dique tem apenas remediado o problema. Não é uma solução aprovada pela Cesp, tampouco pelo Ibama.

Rildo ganha R$ 150 por dique, num trabalho que requer só força bruta. O mourão de 2,5 metros é cravado a marretadas. Os pneus são amarrados com arame para não serem levados pela água. A construção tosca serve de quebra ondas, impedindo que a água continue a erodir a encosta. Dependendo da força das ondas, o dique pode não funcionar.

OESP, 02/03/2008, Economia, p. B10

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.