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Coleção tira mitos indígenas do nicho infantojuvenil

FSP, Ilustrada, p. C4
27 de Dez de 2016

Coleção tira mitos indígenas do nicho infantojuvenil

ALBERTO MUSSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por mais contraditória que a afirmação possa parecer, a história da literatura é muito anterior à escrita. Tem pelo menos 200 mil anos, contemporânea que é da própria espécie humana, do animal que nós somos.
A ciência costuma narrar a grande aventura da humanidade como uma saga tecnológica, a passagem da pedra lascada para a polida, a descoberta da metalurgia, a domesticação de plantas, a conquista da "civilização".
Todavia a maior invenção do homem pré-histórico, sua mais importante realização, a que estabeleceu o próprio conceito de humanidade foi o corpus mitológico.
Todas as matérias que a literatura "stricto sensu" iria desenvolver de uns 6.000 anos para cá já estavam na mitologia primitiva. Todos os dramas, todas as tensões, todas as inquietações éticas e metafísicas sobre
problemas fundadores da humanidade já tinham sido exaustivamente examinadas pela narrativa mítica: o amor, a morte, a sexualidade, a vingança, a criação, o caos.
A mitologia é o gênero literário por excelência, porque conjuga o máximo de conteúdo com o mínimo de expressão. E é por essa densidade que o texto mítico constitui o mais profundo e complexo exercício de leitura.
Assim, recebe-se com entusiasmo a coleção Mundo Indígena, que reúne mitos ameríndios do Brasil, país que se notabiliza pelo desprezo a seu povo e a seu passado. São sete livros, com textos das etnias guarani-mbyá, hupda, kaxinawá e ianomâmi.
"A Terra Uma Só", escrito por Timóteo Verá Tupã Popygua, é uma versão pessoal da belíssima narrativa guarani sobre a criação do mundo (a mesma recolhida por León Cadogan no célebre "Ayvu Rapyta", de que também se serviu Kaká Werá Jecupé no seu "Tupã Tenondé").
Esse livro levanta questão interessante relativa ao conceito de autoria: para os organizadores, Timóteo é autor do texto de "A Terra Uma Só", porque (apesar de similar aos mencionados "Tupã Tenondé" e "Ayvu Rapyta") traz uma interpretação particular da matéria tradicional, fenômeno típico e recorrente em todo o gênero mitológico, pois cada performance, cada narração de um mito constitui na prática um mito novo.
"A Mulher que Virou Tatu" é um texto kaxinawá publicado por Capistrano de Abreu em 1914 e retraduzido por Eliane Camargo, enquanto "Os Cantos do Homem-Sombra" é um relato de Márcio Pires Yuyu-Deh e Ponciano Socot Tat-Deh, da etnia hupda.
São, todavia, textos curtos, que não dão ideia de conjunto da mitologia desses povos. É o oposto do que occorre com os mitos ianomâmis, distribuídos em quatro livros: "O Surgimento da Noite", "Os Comedores de Terra",
"O Surgimento dos Pássaros" e "A Árvore dos Cantos".
São mais de 30 textos narrados por vários pajés do subgrupo xamatari. Muito bem arranjados por Anne Ballester Soares, os relatos oferecem um excelente panorama da arte narrativa e do pensamento ianomâmi, leitura obrigatória para o exercício salutar da alteridade intelectual.
Exceto pelo mito guarani, todos os livros são bilíngues, constituindo assim importante instrumento pedagógico para os próprios índios.
Por fim, não custa lembrar que a referida coleção, como bem advertem os organizadores, é de histórias para adultos -o que muito contribui para ampliar o horizonte do autor indígena, hoje praticamente relegado ao nicho infantojuvenil.
ALBERTO MUSSA é autor de 'A Primeira História do Mundo' (Record)
*
COLEÇÃO MUNDO INDÍGENA
AUTORES Vários (trad. e org. Anne Ballester Soares, Patience Epps, Danilo Paiva Ramos, Kapitan Kirino e Alberto Roque Toribio)
EDITORA Hedra
QUANTO R$ 267,30 (7 volumes)

FSP, 27/12/2016, Ilustrada, p. C4

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/12/1844708-colecao-de-sete-…

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