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Cheia do Rio Madeira já deixa prejuízo de mais de R$ 13 milhões

OESP, Vida, p. A28
09 de Abr de 2006

Cheia do Rio Madeira já deixa prejuízo de mais de R$ 13 milhões
Muitos ribeirinhos da região de Manicoré já perderam suas casas e as plantações estão submersas

A região de Manicoré, a 333 quilômetros de Manaus, volta a ser castigada. Após enfrentar a pior seca desde os anos 40, no ano passado, agora é a cheia do Rio Madeira que atormenta a população. Já ultrapassa os R$ 13 milhões o prejuízo dos ribeirinhos agricultores com a perda de suas plantações. É o local mais atingido pela enchente no Amazonas de acordo com a Defesa Civil Estadual.

Bananais submersos já fazem parte da paisagem de quem percorre o rio. Em suas margens vivem mais de 15 mil pessoas, em 102 comunidades. Totalmente debaixo d'água e perdidas também estão as plantações de milho, maracujá, mandioca, jerimum, mamão e melancia.

A Festa da Melancia, que costuma trazer turistas e compradores ao município em agosto, corre o risco de não acontecer este ano. A produção perdida é apenas uma parte do problema. No pavilhão do Parque de Exposição onde ocorre a festa, os 25 boxes estão ocupados por 92 pessoas de 14 famílias desabrigadas pela cheia, todos da comunidade de Sururu, que fica na área rural, distante 20 km do centro de Manicoré. Eles não sabem quando poderão voltar para suas casas. Ninguém arrisca uma previsão.

O Rio Madeira vem subindo até dois centímetros por dia. Na quarta-feira, por exemplo, segundo dados do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), a marca chegou a 25,64 metros. A cota já estava cinco centímetros acima da medida considerada de emergência (média máxima do rio), que é de 25,59 metros, atingidos em 1997.

O agricultor José Corrêia Campos, de 48 anos, sua mulher, Emília, e os 12 filhos e uma neta estão há duas semanas abrigados no pavilhão da Festa da Melancia. "Perdemos nossos 200 pés de banana, de jerimum e mandioca. E tenho medo de não ter tempo de plantar e ver crescer melancia para vender em agosto", diz o agricultor. E Emília emenda: "Queira Deus que a gente já tenha pelo menos voltado para casa até agosto, mesmo que não tenha melancia para vender".

Campos e sua família foram dos poucos que ouviram o apelo da Defesa Civil e saíram de suas casas. "A maioria não quer sair das casas alagadas. Vão aumentando a altura do assoalho, vão arriscando e ficando por lá", conta o secretário-executivo da Defesa Civil Estadual, coronel Roberto Rocha.

Desde o dia 20 de março, Lábrea e Pauini, banhados pelo Rio Purus, e Humaitá e Manicoré, banhados pelo Madeira, decretaram estado de calamidade pública. Borba, a 150 km de Manaus, também às margens do Madeira, decretou estado de emergência.

CÃES ABANDONADOS

Na tarde de quarta-feira, Campos pegou uma carona de barco e foi em casa ver como estavam as coisas. Foram quase três horas de ida e volta. "A gente não tem como pagar R$ 100 para ver de vez em quando como está a casa. Voltar lá agora só quando a prefeitura levar a gente de volta de vez, no fim da cheia", resigna-se.

Ao avistar a casa com água pela metade, Campos disse sentir "um aperto no peito". "Eu tinha levantado o assoalho, mas não deu, tive de sair", diz. "Vim com minha família para Sururu há três anos, estava tudo dando certo com a plantação de banana, mas aí o rio começou a subir e expulsou a gente."

Campos entrou em casa, com os pés dentro d'água. Olhou para as paredes, empurrou tábuas e viu que elas estão apodrecendo. Calado, pegou um saco de roupa e um pacote de sabão em barra. Deixou o pouco que restou - um fogão e alguns sacos - para trás.

Bobina, o cachorro da família, também foi para o abrigo - teve sorte. Cães famintos dentro das casas, abandonados à própria sorte pelos ribeirinhos, podem ser vistos ao longo do Rio Madeira.

Naquele mesmo dia, havia quatro cães magros, sozinhos, em uma casa abandonada. No dia seguinte, eles continuavam no mesmo lugar, sem força para latir, balançando o rabo ao devorar pedaços de jaraqui (peixe regional) trazidos do mercado de Manicoré. No chão da casa, milho debulhado, que provavelmente também servira de alimento.

"O dono disse que voltaria para alimentá-los, mas já faz quase duas semanas que eles estão aí", conta o fiscal da Defesa Civil Matheus Evangelista. "Não temos como levá-los. Se não morrerem de fome, uma cobra ou jacaré logo os encontrará. A gente já viu porco e cachorro em cima de telhados."

INSISTÊNCIA

Mesmo com a água beirando o chão de suas residências, há famílias que insistem em não sair do lugar. "Meus pais saíram para tentar trazer alguma coisa para comer, mas a gente não vai sair daqui. Senão roubam tudo", desabafa Kleiciane Neves Guimarães, de 12 anos. Ela passou o dia inteiro apenas na companhia da irmã, Klebiane, de 10, numa casa de um cômodo e três paredes. As duas estão fora da escola, passam o dia brincando de boneca de palha de milho. A escola, contam elas, não abriu até hoje por causa da cheia.

A prefeitura afirma que todas as 68 escolas da área rural que não começaram o ano letivo estariam alagadas. Mas o Sindicato dos Trabalhadores em Educação diz que são apenas sete. "A nossa escola não está alagada, fica na comunidade Boa Vista. Mas não começaram as aulas e a gente fica triste sem ter com quem brincar e estudar", conta Kleiciane.

Com a casa alagada, a alternativa da família da dona de casa Marizete Santos Campos, de 24 anos, foi morar em um barco "estacionado" ao lado do telhado quase submerso. "É mais seguro a gente ficar por perto, guardando a TV e o fogão no barco", diz.

Uma malha de carne branca pendurada na cozinha de Marizete chama a atenção. "A gente não tem medo de pegar e comer jacaré, que é o que mais tem por aí", conta. O rabo e patas ficam para os três cachorros da tia da moça, outros de olhar faminto, que ela cuida na ausência da dona.

A comunidade de Sururu, onde mora Marizete, tem cerca de 100 famílias, boa parte abrigada no Parque de Exposição de Manicoré ou em casa de parentes.

2005 trouxe uma das piores secas

Por conta da estiagem de 2005, no final do ano passado 62 municípios do Amazonas haviam decretado situação de calamidade ou estado de emergência reconhecido pela Secretaria Nacional de Defesa Civil, incluindo os da região de Manicoré. Cerca de 59 mil famílias de ribeirinhos sofreram com a seca nos rios do Estado. A estiagem anual na região ocorre entre os meses de agosto e novembro. Segundo o Serviço Geológico Nacional, a seca de 2005 foi a 7.ª pior desde 1902. A maior seca foi a de 1963.

OESP, 09/04/2006, Vida, p. A28

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