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Cemitério na Amazônia

O Globo, Sociedade, p. 32
06 de Set de 2018

Cemitério na Amazônia
Cientistas descobrem urnas de 500 anos

POR SÉRGIO MATSUURA
06/09/2018 4:30 / ATUALIZADO 06/09/2018 7:29

RIO - Na época em que os europeus estavam chegando ao Novo Mundo, um povo ainda desconhecido, nativo da região central da Amazônia, realizou uma cerimônia fúnebre coletiva. Por 500 anos, vasos de cerâmica contendo ossadas ficaram escondidos sob grossa camada de terra e sedimentos.
As primeiras foram encontradas em 2014, por acaso, durante obras realizadas pelos moradores da comunidade Tauary. Agora, uma equipe de pesquisadores liderada pelo Instituto Mamirauá descobriu uma cova com nove urnas funerárias, cuidadosamente agrupadas. É a primeira vez que tais vestígios são descobertos in loco por arqueólogos profissionais.
- As urnas funerárias não são exatamente raras na Amazônia, mas todas as que conhecemos foram encontradas por moradores das comunidades. Alguém que foi fazer uma roça ou construir uma casa e topou com elas. Muitas vezes, acham interessante e guardam ou limpam para usar a cerâmica. Nesse processo, informações preciosas do campo são perdidas - explica Eduardo Kazuo, coordenador do Laboratório de Arqueologia do Instituto Mamirauá.
Ao todo, foram encontradas 16 urnas funerárias no sítio arqueológico de Tauary - uma comunidade com 21 famílias nas margens do Rio Tefé -, sendo nove na última expedição, entre 10 e 25 de julho. Estas estavam cuidadosamente dispostas numa única cova.
Chamou a atenção dos pesquisadores o fato de os vasos terem rostos desenhados e nenhum estar virado de frente para outro. E os artefatos foram encontrados na mesma camada de terra, a cerca de 40 centímetros de profundidade. Para Kazuo, essas evidências indicam que as nove urnas foram colocadas juntas, de maneira intencional.
- É como se elas não quisessem "olhar" uma para a outra. As urnas seguiam uma ordem, claramente foram enterradas daquele jeito - conta Kazuo. - O que isso quer dizer, a gente não faz a menor ideia. O que é certo é que existe uma intenção, pode ser religiosa, uma crença que faça sentido no universo simbólico desse povo perdido.
TRADIÇÃO POLÍCROMA
Por testes de carbono 14 no material colhido em 2014, os pesquisadores dataram as urnas por volta do ano 1.500 d.C, na época da chegada dos europeus ao continente americano. Todas possuem pinturas vermelhas e pretas, com representações de figuras humanas formadas pelo rosto e o corpo estilizado com imagens de animais, como cobras e lagartos. Com essas características, elas são classificadas como pertencentes à Tradição Polícroma da Amazônia.
- Trata-se de uma classificação de cerâmicas encontradas na Amazônia, numa área que se estende entre a região de Manaus até o Peru, o Equador e a Colômbia. Essa tradição durou entre os anos 600 e 1500 - explica o arqueólogo. - Isso mostra que, por mais que a floresta fosse ocupada por povos diferentes, com línguas e culturas distintas, eles tinham algum traço em comum.
As escavações devem ser retomadas no início do ano que vem. Até lá, os pesquisadores irão se debruçar sobre o material coletado. As nove urnas são de tamanhos e têm desenhos diferentes. Uma delas foi aberta e uma ossada foi encontrada. Segundo Kazuo, aparentemente os vasos serviram para o sepultamento secundário - após a decomposição do resto do corpo - de crianças e adultos.
A expectativa é que a análise das ossadas permita a identificação do sexo e da idade das pessoas sepultadas. Dependendo do material que for encontrado, os cientistas tentarão recuperar DNA antigo para a realização de testes genéticos.
- Se encontrarmos partes do crânio ou dentes, mandaremos para exames - afirma a arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel, da Universidade Federal do Oeste do Pará, ressaltando que o ambiente amazônico é hostil para a preservação de ossos, por causa da acidez do solo e da ação das raízes das árvores, que consomem o cálcio. - As análises de DNA não são milagrosas, mas nos permitem um panorama geral sobre quem eram aquelas pessoas.
Numa camada mais profunda, os arqueólogos encontraram restos de cerâmica que parecem ser de um período anterior, tanto pelo maior desgaste como pelos sedimentos que os recobriam.
- Isso indica que Tauary teve pelo menos três períodos de ocupação - diz Anne. - A primeira, bem antiga, talvez há mais de mil anos. A segunda, por volta dos anos 1500. E a terceira, a atual. São três momentos diferentes, o que mostra que o local é bom para se viver.

O Globo, 06/09/2018, Sociedade, p. 32

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