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Cegueira misteriosa aflige o Araguaia

FSP, Cotidiano, p.C1, C3
08 de Jan de 2006

301 crianças apresentam lesões, sendo 12 delas com perda parcial da visão e 3 cegas de um dos olhos
Cegueira misteriosa aflige o Araguaia
Fabiane Leite
Brincar, pescar, lavar a canoa, banhar. As águas do rio Araguaia eram diversão e refresco no cotidiano de miséria de Hildebrando e Igor, meninos de Araguatins, uma cidade de 27 mil habitantes a 621 km de Palmas (TO).
A graça acabou quando os dois e outras centenas de crianças das margens começaram a ter problemas na "vista", como afirmam, vítimas de uma doença ainda misteriosa que causa lesões nos olhos, como manchas e caroços, e pode levar à cegueira. Hildebrando, 10, já perdeu a visão do olho direito. Igor, 7, pouco vê com o esquerdo.
As autoridades associam o problema ao contato com as águas do rio, e o banho foi proibido, mas ainda quebram a cabeça para descobrir a causa do problema.
A Secretaria da Saúde do Tocantins informou que, em uma busca entre crianças em idade escolar, foram identificadas 301 com a doença, sendo 12 delas com perda parcial da visão e três com cegueira em um dos olhos.
A cidade, de população muito jovem, tem 8.299 residentes de cinco a 19 anos. A pesquisa ainda não foi feita entre adultos, mas especula-se que as crianças sejam as mais atingidas porque não temem abrir os olhos sob as águas.
Prefeitura, Estado e o Ministério da Saúde começaram a tomar providências no fim do ano passado, em um processo em que houve desentendimentos.
Um caramujo de água doce, que abrigaria um parasita, chegou a ser anunciado como o propagador da doença, mas, depois de nada ser achado no molusco, o Estado voltou atrás. Um parasita transmitido por gatos e cachorros e um fungo também são suspeitos. Amanhã, uma equipe chega à cidade após três semanas de paralisação das buscas.
Enquanto isso, ribeirinhos e médicos relatam que o problema vem de até 15 anos atrás e chega ao Pará, por onde corre o rio.
Já o menino Hildebrando Silva Reis aguarda tratamento. Deixou de freqüentar a escola, conta a mãe. "Matriculei, mas a professora mandou ele embora", diz Irani Feitosa, 24. "Eu brinco de pega-pega", afirma Hildebrando. A doença já atinge o olho esquerdo.
Igor Vinícius Arcanjos dos Anjos é outro que aguarda tratamento. Sua avó, que vive à beira do Araguaia, aplicou resina de jatobá, um remédio dado pela prefeitura, e "muita reza". "Ele teve de desistir da escola. Fica mais em casa", afirma a mãe de Igor, Irenice Arcanjo dos Anjos, 28.
Outras duas crianças que já não enxergavam foram enviadas a Belo Horizonte (MG) para tratamento. Uma teve o olho retirado.
Araguatins, apesar do grande número de casos, ainda está sem oftalmologista -o serviço de referência fica a 40 km, em Augustinópolis. A doença desconhecida é a mais nova preocupação na cidade, área endêmica de malária, dengue, leishmaniose, tracoma e febre amarela. Além disso, não há rede de tratamento de esgoto em funcionamento -a tubulação existe, mas não opera. E o analfabetismo bate em 18% da população, que sobrevive principalmente dos rebanhos de gado.
A única medida preventiva contra a doença, a interdição do rio, é precária, pois a cidade vive das águas, para pescar e lavar roupa.
"Eu não tenho água, aí lavo no rio", diz Alzirene de Melo, cujas filhas, Rosilene, 8, e Luzia, 10, foram atingidas pela doença, mas com lesões pequenas que, segundo a mãe, não prejudicam a visão. Já o cachorrinho da família, Sheik, que vivia no rio com as meninas, está cego. Perto da casa, é fácil achar os caramujos suspeitos de levarem a doença.
O pescador Sandro Roberto de Souza, 28, levou o filho de cinco anos para lavar a canoa. O menino pôs a mão no olho, que amanheceu inflamado e vermelho. O sobrinho de Souza, Wellington Júnior Ribeiro dos Santos, 8, também está doente. "Ele diz que enxerga pouquinho", diz o tio.

Apesar de relatos de até 15 anos atrás, investigações do mal só começaram no fim de 2005 no TO
Suspeita recai sobre cão, caramujo e fungo
"Cauí", "mariba". Enquanto as autoridades tentam desvendar a doença misteriosa que já cegou pessoas principalmente no norte do Estado do Tocantins, são esses os nomes que a população e até os médicos dão para o mal.
O diretor do Departamento de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, Expedito Luna, que visita a região pela primeira vez amanhã, disse na última sexta-feira que a pasta trabalha principalmente com três hipóteses como causa das lesões: um parasita transmitido por cães e gatos, da família dos nematódios, causador de uma doença chamada toxocaríase ocular; um parasita transmitido por caramujos, da família dos trematódios; e uma micose sistêmica, doença causada por fungo.
Apesar de haver relatos sobre casos de até 15 anos atrás, o alerta oficial sobre a doença só ocorreu no ano passado, a partir do Tocantins, depois da instalação de um serviço de oftalmologia em Augustinópolis, a cerca de 600 km de Palmas, em abril, e da realização, cerca de um mês depois, de um mutirão de consultas.
"Como é uma área endêmica de tracoma [doença ocular causada por uma bactéria], muitos casos caíram na conta desse problema. Mas, aparentemente entre 2004 e 2005, houve um aumento da freqüência [da doença misteriosa]", afirma Luna. Ele diz que a secretaria estadual só pediu ajuda em novembro, daí a demora para a pasta entrar no caso. "É uma coisa muito rara no mundo, há poucos episódios relatados de lesões oculares de caráter epidêmico", disse.
Segundo Luna, especialistas de outros países têm se comunicado com o ministério. Ele reconhece a precariedade da interdição do rio Araguaia como medida preventiva. "O rio é a vida das pessoas."
"O ministério vem sendo zeloso em demasia por uma questão de vaidade mesmo", diz Victor Py-Daniel, pesquisador-chefe do laboratório de Etnoepidemiologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, chamado pelo Estado para eliminar a hipótese de oncocercose, doença ocular transmitida por borrachudos.
Ele culpou os caramujos. Disse acreditar que foram atraídos pelo esgoto despejado no rio e, contaminados por parasitas, causaram a doença. Mas, nas amostras de moluscos examinadas, não foram achados parasitas.

Problema cruza o rio e chega ao Pará
Do outro lado do rio, o povoado de São Raimundo, que pertence a Brejo Grande do Araguaia, a 585 km de Belém (PA), também sofre com os casos misteriosos de lesão nos olhos. À beira da Transamazônica, é um dos primeiros municípios que se vê quando se deixa o Tocantins de balsa pelo Araguaia.
Ezequiel Oliveira Marinho, 17, diz que a mancha branca em seu olho apareceu após os banhos no Araguaia. Já seu tio, Luiz Alves de Oliveira, 38, teve caroços. Um outro parente deixou o povoado cego, afirmam tio e sobrinho.
"O olho coçava e doía, mas passei fava [semente] de jucá e melhorou", acredita Marinho.
Emival Mel da Conceição, 13, foi proibido de nadar no rio depois que teve de retirar um caroço dos olhos em Augustinópolis (TO), contou o pai, Antonio Lopes Braga, 81, dono da venda de São Raimundo. "Eu nunca gostei de rio", disse Braga.
Ouvidos pela reportagem, os governos do MT, de GO, do PA e do MA, por onde passam os rios Araguaia e Tocantins, negaram ter registros da enfermidade.
Turismo
Cidades da região, principalmente Araguatins (TO), onde foi achado o maior número de casos, estão preocupadas com o possível afastamento dos turistas que vão às praias dos rios a partir de julho.
"O Araguaia é muito bonito para ter feito isso", disse o novo secretário da Saúde de Araguatins, Romão de Souza

Parasita cega capivaras no Paraná
Os funcionários do Parque Nacional de Iguaçu, em Foz do Iguaçu, estranharam quando viram, entre dezembro de 2004 e janeiro de 2005, três capivaras selvagens andando desorientadas pela mata. Os animais foram recolhidos para exames. Estavam cegos.
Com a ajuda dos pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz e de universidades do Paraná e do Rio de Janeiro, a superintendência de Meio Ambiente da hidrelétrica Itaipu Binacional descobriu que os olhos das capivaras tinham sido atacados por um parasita da família dos trematódios, a mesma que agora é suspeita de causar cegueira em crianças no Tocantins. Não se sabe se há relação entre os casos -não foram encontradas pessoas infectadas no Paraná. Também não se sabe qual animal (por exemplo, um molusco) que levou os parasitas ao ambiente das capivaras, roedores que passam muito tempo na água.
A infecção nas capivaras pelo Philophtalmus lachrymosus -nome do verme-, encontrado principalmente em olhos de aves, foi o primeiro caso registrado em mamíferos não humanos no mundo. Havia dois relatos em humanos. O caso foi descrito na conceituada revista "Memórias do Instituto Oswaldo Cruz", no fim do ano passado.
"Fiquei preocupada, porque, na verdade, tudo é uma cadeia, e o homem eventualmente entra nela", diz Leonilda Correia dos Santos, responsável técnica do laboratório ambiental de Itaipu. (FL)

FSP, 08/01/2005, p. C1

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