VOLTAR

As cartas de Mesa

Isto E, Internacional, p. 88-90
14 de Jul de 2004

As cartas de mesa
Referendo convocado pelo presidente boliviano deverá decidir destino das reservas energéticas do país e de seu governo

kátia Mello

Algumas decisões políticas nos países vizinhos têm direta influência no Brasil. Esse é o caso da aprovação pelo Congresso Nacional da Bolívia, na madrugada da terça-feira 6, do Referendo do Gás - previsto para 18 de julho e que deverá decidir não apenas o destino da maior riqueza boliviana, como também o do próprio presidente Carlos Mesa. A consulta, convocada por ele, é a primeira a ser feita no país e uma demanda da população depois da queda, em outubro passado, do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, que incentivou um projeto de exportação de gás natural para os Estados Unidos e o México via Chile. Os chilenos são arqui-rivais dos bolivianos desde a Guerra do Pacífico (1879-1883), quando a Bolívia perdeu para o Chile 120 mil quilômetros quadrados de seu litoral. Para o presidente Mesa, este referendo é uma "decisão histórica". E para o Brasil, que acaba de assinar com a Bolívia um acordo para a implementação de um pólo químico e um siderúrgico na fronteira entre os dois países, o resultado positivo da consulta é fundamental (ver quadro à pág. 90).
Em cinco perguntas, os cinco milhões de eleitores irão julgar as estratégias do presidente Mesa, entre elas a de usar o gás natural como recurso para negociar com o Chile uma saída para o oceano Pacífico. De acordo com a rede de pesquisa Erbol, 75% dos bolivianos são favoráveis ao referendo, mas discordam de alguns pontos da negociação das fontes energéticas do país. Uma das questões mais polêmicas é a recuperação da propriedade do gás e do petróleo na boca do poço, hoje controlado por 20 multinacionais. Essas companhias chegaram à Bolívia depois do início da privatização. Até 1995, a exploração das reservas bolivianas ficava por conta da estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), que repassava 65% dos ingressos brutos ao Tesouro. Apenas no ano de 1994, esse montante foi de US$ 445 milhões. Mas, desde então, a YPFB tem um papel menor realizando apenas o gerenciamento dos contratos de exportação.
Nacionalismo - Os opositores ao referendo levam em frente o lema: "O gás boliviano é para os bolivianos" e são contra qualquer tipo de exportação e contratos com empresas estrangeiras para a exploração das reservas. Gostariam que o plebiscito tivesse apenas uma pergunta: "O gás boliviano deveria ou não ser da Bolívia e controlado pela Bolívia?" Para se ter uma idéia da dimensão da crise política, em apenas nove meses de governo, já foram quatro ministros de Minas e Energia a passar pelo cargo. O último, Xavier Nogales, saiu porque queria aumentar antes do plebiscito os impostos sobre as empresas que exploram gás e petróleo. O presidente tenta manter um clima favorável, mas a situação é delicada. Apesar de ter conseguido apagar as chamas dos protestos que se alastraram pelo país em abril passado, o cenário poderá ser novamente inflamado, caso os sindicatos consigam articular uma greve geral e fechar as estradas vicinais da Bolívia. Os sindicalistas, liderados por Jaime Solares, da Central Obrera Boliviana (COB) e Felipe Quispe, da Confederação Sindical Única dos Trabalhadores (CSUTCB), exigem a renacionalização da indústria dos hidrocarburetos. Quispe já anunciou uma estratégia de guerra. "Haverá manifestações, bloqueios, um boicote organizado. Em muitos lugares, os eleitores receberão as cédulas e vão queimá-las; em outros, simplesmente não haverá votação", vociferou o líder. O próprio presidente argumenta em entrevista a ISTOÉ que os 54,9 trilhões de pés cúbicos de gás são mais do que suficientes para os bolivianos e portanto sobra para a exportação. Mas Mesa admite que, enquanto a população - uma das mais pobres do continente - não receber o fruto de suas próprias fontes energéticas em suas casas, o clima será de fácil combustão. Por isso, a necessidade de programas que atendam urgentemente a um país que amarga um PIB de apenas US$ 8 bilhões, com um déficit público de 8% desta quantia. Petróleo e gás hoje são as únicas fontes de renda do país. Nos anos 90, a Bolívia conseguiu erradicar o plantio da coca, mas essa operação custou muitos empregos. Até o líder cocaleiro Evo Morales, antes um forte oposicionista, hoje apóia o presidente. Resta saber se Mesa conseguirá manter-se em equilíbrio.

Em rápida passagem por São Paulo, o líder boliviano falou com exclusividade a ISTOÉ.
ISTOÉ - Os chilenos não são bons vizinhos?
Carlos Mesa - A história entre Bolívia e Chile é mais de desencontros do que de encontros. Já é tempo de começarmos a trabalhar para haver encontros. Em pleno século XXI, não podemos deixar de resolver o problema que não somente afeta Chile e Bolívia, mas também todo o processo de integração regional. Avançamos na Assembléia-Geral da OEA, em junho, em Quito. Se o Chile estiver disposto a escutar, então chegaremos ao degelo que já dura 125 anos. Não podemos, portanto, esperar soluções mágicas. Temos a questão do porto Arica (a Bolívia conseguiu que fosse adiada privatização do porto chileno, a principal saída ultramar dos bolivianos) e o problema de acesso ao mar para a Bolívia. Temos que ter uma agenda bilateral.
ISTOÉ - Como vê a possibilidade de boicote ao plebiscito?
Mesa - A opinião pública, majoritariamente, é favorável ao referendo. Há grupos pequenos, radicais, que fazem greves e que estão distantes dos anseios da população. Por isso estou otimista. Vão haver muitos gritos, manifestações e greves desses pequenos grupos que tentam romper a lógica. Mas, objetivamente, eles não têm sustentação popular e irão se diluir sozinhos. Entendo que a comunidade internacional espera um resultado desse referendo para poder começar a investir no futuro da Bolívia.
ISTOÉ - Como responder à questão de que o gás boliviano é para os bolivianos?
Mesa - De uma maneira bastante simples. A Bolívia tem 55 trilhões de pés cúbicos de reservas e nos próximos 20 anos, com um alto consumo interno, o máximo que o país consumiria seriam 2,5 trilhões de pés cúbicos. Portanto, é perfeitamente possível dizer aos bolivianos que vamos cobrir as necessidades do país e exportar o gás. Os bolivianos são mal informados. Temos que dizer a eles que temos gás mais do que suficiente para o consumo e que, sendo assim, podemos exportar. Precisamos fazer com urgência um processo de gás domiciliar para que realmente a população se beneficie com o produto que tem. Se os bolivianos continuarem cozinhando a lenha, sentados em cima de um bujão de gás, é lógico que não irão aceitar.
ISTOÉ - A descoberta brasileira de uma reserva de gás afeta as relações bilaterais?
Mesa - Não. Creio que a Bolívia tem uma relação sólida com o Brasil. Fizemos um contrato que deverá ser cumprido. A Bolívia também tem que diversificar suas exportações e o ideal é não ter um só comprador.
ISTOÉ - Além do gasoduto, quais outros projetos que a Bolívia tem com o Brasil?
Mesa - Negociamos a finalização da estrada de Santa Cruz-Porto Suárez. Faltam duas partes para terminarmos os 650 quilômetros dessa estrada e queremos contar com um financiamento do BNDES. Conversei com o presidente Lula sobre a construção das termoelétricas em Porto Suárez e Corumbá com capacidade de 80 mega cada uma. Se o referendo for positivo, será fundamental para a industrialização de gás na Bolívia e para os países vizinhos. Estamos em um momento crucial. O caldeirão está no seu momento máximo de pressão, de debate. O que os bolivianos precisam entender é que não vivemos em um país isolado no mundo. Estou estabelecendo um programa econômico com maior intervenção estatal, que não é a recuperação do capitalismo de Estado. O que eu proponho, a Lei de Hidrocaburetos, que recupera a propriedade, não é nacionalização, nem expropriação, nem confisco. Proponho também maiores impostos para o país, mas sem que isso implique dizer não ao investimento de estrangeiros. Hoje a Bolívia precisa de US$ 4 milhões ou US$ 5 milhões de investimentos internacionais para projetos gigantescos. Em outras palavras, precisamos trabalhar entendendo o fracasso do capitalismo de Estado e negando totalmente a ortodoxia neoliberal, porque o mercado não é um bom professor.
ISTOÉ - E se o referendo não for positivo?
Mesa - Essa questão não se refere ao destino do presidente Carlos Mesa, mas ao país. E, portanto, ela é fundamental.

Dando um gás na relação bilateral
O acordo bilateral assinado, na quinta-feira 8, pelo presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e o seu colega boliviano, Carlos Mesa, na cidade de Santa Cruz de la Sierra, prevê a construção de um pólo gás-químico e um pólo siderúrgico na fronteira entre os dois países. A construção dos dois projetos totalizam investimentos de US$ 2,35 bilhões e usarão como matéria-prima o gás boliviano transportado pelo gasoduto Brasil-Bolívia (ver mapa). O projeto do pólo gás-químico está em fase mais adiantada e contará com investimento de US$ 1,35 bilhão. Durante a construção, deverá gerar até seis mil empregos diretos e em 2010, quando estiver em pleno funcionamento, deverá empregar 400 pessoas diretamente e criar dois mil empregos indiretos. A Petrobras - maior empresa na Bolívia - lidera o projeto do pólo, que produzirá polietileno - matéria-prima para a produção de plásticos e seus derivados. Uma comissão binacional já foi instalada para solucionar os últimos entraves do projeto, como a sua localização exata e o preço do gás importado. Já o pólo siderúrgico tem previsão para ser implementado no ano de 2006 em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Durante a visita, foi também cancelada a dívida de US$ 48,73 milhões que a Bolívia tinha com o Brasil.

Isto É, 14/07/2004, Internacional, p. 88-90

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.