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Carta contra o genocídio dos povos da Amazônia

Público https://www.publico.pt/
06 de Nov de 2018

Valdenise, da etnia Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, denuncia: "Ontem, dia 12 de outubro de 2018 [...], Jair Bolsonaro usou minha foto na propaganda eleitoral. Eu não admito, não permito; está usando minha foto sem a minha permissão. É mais um massacre, é mais um genocídio: esse tipo de gente quer a nossa morte, nunca vou apoiar, eu repudio essa forma de campanha eleitoral. É isso que eu tenho de falar, eu e meu povo Guarani Kaiowá, o povo indígena no Brasil: nós não o apoiamos, ele não!"

Agnaldo, cacique indígena xavante, declara apoio a Haddad e Manuela, que "vão defender os direitos dos povos indígenas".

Nos últimos anos, no Brasil, grupos vulneráveis (indígenas, quilombolas, mulheres, LGBTrans e outros) conquistaram direitos via organização, saíram da condição de atomizados. Negar os direitos de tantos grupos marginalizados não é simplesmente uma forma de criminalização de indivíduos, mas perseguição contra agentes sociais organizados politicamente

Em relação aos indígenas e à terra que eles ocupam, é importante repetir e sublinhar que a região amazônica é o lar de centenas de povos tradicionais. Como já reconheceram cientistas - entre eles a cientista Elinor Ostrom, Prêmio Nobel -, por sua forma tradicional de vida, esses povos mantêm a floresta em pé e os rios limpos, apontando para o futuro da sustentabilidade no planeta. Suas formas de gestão dos recursos naturais têm muito a ensinar à nossa civilização urbana. Os conhecimentos ancestrais que preservam providenciam o equilíbrio, inclusive climático, do nosso planeta beneficiando não somente o Brasil, mas a todos os habitantes da Terra.

A Amazônia brasileira ocupa mais de 60% do território nacional. Nessa região vivem aproximadamente 25 milhões de pessoas: muitos povos indígenas com mais de 180 línguas e, portanto, mais de 180 sistemas de conhecimento do mundo, com o potencial de nos apontar o caminho para uma vida ecologicamente equilibrada. Somente em um trecho do Rio Negro, no Alto Rio Negro, há um "arquipélago de saberes", formado por povos que falam 23 línguas e preservam conhecimentos sobre a floresta que não se encontram em nenhuma outra parte. Além dos povos indígenas, outros povos tradicionais também atuam como guardiões da floresta: os quilombolas, as quebradeiras de coco babaçu (cerca de um milhão e duzentas mil mulheres), os peconheiros (coletores de açaí), os pescadores e ribeirinhos, os castanheiros e seringueiros, extrativistas da terra e das águas e até mesmo os indígenas que não querem contato sistemático com a nossa civilização. As várias formas tradicionais organizadas em harmonia com a floresta geram uma economia lucrativa, demonstrada em estudos minuciosos sobre as unidades de conservação, permitindo a compreensão de que a floresta em pé vale mais que derrubada. Esses grupos produzem uma economia que não causa danos à floresta e perpetuam, assim, condições de vida que mantêm as áreas verdes que, uma vez preservadas, são essenciais para a biodiversidade e para a sociodiversidade.

Ao atentar apenas à questão do clima global, já teríamos muitas razões para defender esses povos. E queremos acreditar que a humanidade ainda persegue a preservação da vida e dos direitos humanos.

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Por isso, repudiamos a candidatura da extrema-direita no Brasil. O candidato Jair Bolsonaro, mesmo antes de sua eleição, propaga uma onda de ódio contra os povos que vivem na floresta. Promete não deixar nenhum centímetro para terras indígenas e, ao falar em quilombolas, equipara-os a animais. Enfim, ameaça de extermínio os segmentos sociais que conquistaram direitos desde a Constituição de 1988, ameaçando com limpeza étnica um país que, sabemos todos, é rico justamente porque composto de centenas de culturas e etnias.

Bolsonaro atinge as formas de mobilização: seu objetivo precípuo, antes de estar ligado a qualquer moralidade, é uma estratégia de desmobilização de movimentos sociais para que uma estrutura militar e autoritária assuma o controle político para reproduzir grupos sociais dominantes, vinculados à lógica neoliberal, de privatização e mercado, o que é assustador e genocida como lógica para a Amazônia.

De um lado, a possibilidade de reconhecimento das diferenças; de outro, o pensamento monolítico. De um lado, os sistemas de uso comum; de outro, a colocação das terras da Amazônia no mercado.

Está em curso na candidatura de Bolsonaro uma articulação genocida de quebra do projeto nacional, especialmente do nacional composto pela diversidade, mas não tão-somente. O projeto nacional está em questionamento inclusive com a ausência da preocupação com a memória dos nossos povos, e tivemos uma tragédia recente irreparável com o incêndio do Museu Nacional, sobre a qual o candidato se limitou a dizer que não havia nada a fazer, sem nem mesmo ter lamentado o ocorrido.

E se a memória é o lastro com o qual se pode contar na luta contra o fascismo, o Brasil precisa de apoio. O que dizer, então, da memória de tantos povos da Amazônia - invisíveis nas cidades brasileiras e ignorados na mídia -, com absoluto desconhecimento da riqueza que podem oferecer à sociedade, algo que não pode mais ser tolerado. E, absolutamente, não pode ser ignorado e tolerado o seu extermínio.

Os grupos sob o ataque do candidato de extrema-direita, indígenas e quilombolas, sobretudo, são justamente os grupos responsáveis pela preservação da Amazônia, os que se insurgem, com seus corpos e suas formas de vida, contra o desmatamento irresponsável e a favor do equilíbrio do clima no planeta. A convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), exige a "consulta" aos povos tradicionais para qualquer empreendimento a ser desenvolvido em suas terras. No entanto, como a "consulta" não está especificada em sua forma, empreendimentos são levados adiante mascarando a falta de comunicação e, portanto, a falta de uma efetiva consulta aos povos. O rompimento com os acordos internacionais não será problema para Jair Bolsonaro, que já manifestou a intenção de acabar com o Ministério do Meio Ambiente e com o Ministério da Cultura, que abriga o órgão de memória e patrimônio histórico e artístico do País.

Os conceitos de civilização que temos estão em jogo nessa eleição, havendo a barbárie como antagonista. E tudo isso pode terminar antes que saibamos quem são os nossos guardiães da floresta: tantos nomes de tantas belas línguas como os Kokama, os Munduruku, os Jaminawa, os Manchinéri e tantos outros. Eles estão lá, resistindo há séculos, e ainda não foram reconhecidos como os donos de suas terras. Por isso lutam uma batalha, quase sempre sangrenta, para seus direitos à terra ancestral - a mãe que lhes dá a vida - e à sua cultura.

Unimo-nos, portanto, à luta desses povos da floresta, que guardam, por nós, as sementes da vida em forma de floresta em pé e de um mundo em que a vida humana é irmã da vida dos seres que nela vivem. Declaramos que, independente do resultado das eleições, nós, comunidade internacional, estaremos atentos à vida digna desses povos e que sejam cumpridos todos os acordos internacionais que os protegem.

Assinam:
Anabela Mota Ribeiro, jornalista

Ana Luísa Amaral, escritora e professora universitária

Ana Paula Coutinho, professora Universidade do Porto

Ana Vidigal, artista

Anne Marie Métailié, editora EditionsMétailié

Boaventura de Sousa Santos, professor Universidade de Coimbra

Catherine Dumas, professora emérita Universidade Sorbonne

Carlos Magno, jornalista

Carlos Mendes de Sousa, professor universitário

Céline Geffroy, Université Côte d'Azur. Laboratoire d'Anthropologie et de Psychologie.

Eduardo Lourenço, Ensaísta

Erik Pozo-Buleje, Laboratório de Antropologia Social, EHESS

Fernando Cabral Martins, professor Universidade Nova de Lisboa

Golgona Anghel, investigadora da Universidade Nova de Lisboa

Gonçalo Vilas-Boas, professor jubilado

Heloïse Toffaloni da Cunha, antropóloga e filmmaker (EHESS)

Hugo Monteiro, professor

Isabel Allegro de Magalhães, Professora e ensaísta

Jérémie Voirol, antropólogo, Graduate Institute, Geneva, Switzerland

Joana Matos Frias, professora Universidade do Porto

João Teixeira Lopes, professor universitário

José Eduardo Agualusa, escritor

José Mário Brandão, galerista

José Soeiro, sociólogo e deputado

José Sousa Machado, escritor

Julien Blanc, professor no Museu do Homem

Lídia Jorge, escritora

Luís Quintais, escritor e professor

Maria Irene Ramalho, decana Universidade de Coimbra

Miguel dos Santos S. Ramalhete, professor Univ. de Lisboa

Paula Morão, decana da Universidade de Lisboa

Paula Rego, artista

Paulo de Medeiros, professor Universidade de Warwick

Pedro Eiras, escritor e professor Universidade do Porto

Pedro Serra, professor Universidade de Salamanca

Rosa Maria Martelo, professora Universidade do Porto

Susana Anágua, artista

Tiago Cação, fotógrafo

https://www.publico.pt/2018/11/06/mundo/opiniao/carta-genocidio-povos-a…

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