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Carne verde

FSP - http://arte.folha.uol.com.br/tudo-sobre
Autor: LEITE, Marcelo
16 de Set de 2015

Carne verde
Como reformar a atrasada pecuária amazônica
Criação de bois e vacas aguarda choque de produtividade para ganhar mercados com proteína animal que não dependa de desmatamento para alimentar o mundo

Marcelo Leite Enviado especial a Alta Floresta (MT) e Paragominas (PA)

Caprichosa, uma novilha de quase 200 kg, resiste por dez minutos a entrar no corredor que conduz ao "tronco" de pesagem. Não mais que dez metros a separam da barulhenta armadilha de madeira e metal acoplada à balança.
Sacos de aniagem na ponta de varas fazem as vezes das bandeirolas, recomendadas nas boas práticas da pecuária para conduzir o animal sem irritá-lo, pois o estresse prejudica a qualidade da carne. Caprichosa as ignora e pula de lá para cá, decidida a não entrar no corredor. Quando finalmente entra, empaca de novo.
Ronildo Martins Carvalho, gerente da Fazenda Nelore Beviláqua em Alta Floresta (MT), troca a bandeirola pela haste de metal na ponta de um cabo elétrico e aplica choques na novilha. Minutos depois o mesmo recurso será empregado pelo motorista de caminhão para embarcar dezenas de animais.
Cada descarga deixa um hematoma na carne, que só se tornará visível na carcaça, após o abate. A marca de sangue acaba removida pelo frigorífico e resulta em perda de remuneração para o produtor. Mas na Beviláqua os peões ao menos tentam usar as bandeirolas, enquanto noutras fazendas impera a eletricidade.
O dentista Celso Crespim Beviláqua, 59, dono da área de 1.700 hectares (17 km²) e presidente do sindicato rural de Alta Floresta, não parece se preocupar com Caprichosa -uma entre 29 milhões de cabeças de gado bovino de Mato Grosso e 212 milhões no Brasil. Há mais de 3.500 reses na sua propriedade, e mil são vendidas para abate a cada ano, além de 90 touros de raça.
"Eu sou apaixonado é pela pecuária", diz Beviláqua. Formado em Ponta Grossa (PR), o dentista fechou o consultório após três décadas tratando dentes em Alta Floresta. Quando chegou, nos anos 1980, levava o boticão e uma bacia de álcool para os garimpos Planeta e Satélite. Recebia em ouro para extrair a dor de homens como Chico Máquina e Marcha Lenta. "Em um dia pagava meu aluguel e a secretária e ainda mandava dinheiro para a mãe em Cascavel [PR]."
Naqueles tempos de fartura, acumulou capital e aplicou em terras. Hoje investe em tecnologia: "Precisamos melhorar a capacidade de aproveitar a terra".
Campeão de emissões
As bandeirolas são apenas a parte mais visível (não tanto para Caprichosa) da série de procedimentos que aguardam uma revolução cultural na pecuária de Mato Grosso, território do maior rebanho do Brasil. Por causa dele, o Estado é o quarto maior emissor de gases do efeito estufa no país em termos absolutos. Por habitante, é o líder isolado -produz 46,4 toneladas de CO2 anuais per capita, seis vezes mais que a média nacional e no mesmo nível do campeão mundial, o Qatar.
A digestão do capim no rúmen de bois e vacas produz metano (CH4), um potente gás do efeito estufa (GEE). Cada grama de CH4 retém na atmosfera tanta radiação solar quanto mais de 20 g de gás carbônico (CO2), o GEE mais conhecido. Além disso, a pecuária também contribui para emissões de CO2 com desmatamento e de outros gases associados com o uso de fertilizantes e com resíduos animais.
De toda a área já desmatada na Amazônia Legal (764.225 km², uma Espanha e meia), dois terços foram convertidos em pasto. Somando a emissão de CO2 da floresta derrubada para pecuária com o CH4 expelido pelo gado, a atividade responde por metade (49%) das emissões brasileiras. Poluição que é resultado direto de sua ineficiência -menos de cem reses por quilômetro quadrado.
Mato Grosso tem 192 mil km² de pastagens degradadas, uma área quase do tamanho do Paraná. Sua recuperação permitiria reduzir a contribuição desproporcional do Estado para a mudança climática. Além disso, com alimentação melhor, o gado cresce mais rápido e emite menos CH4 antes de ir para o matadouro.
Com esse objetivo, a ONG Instituto Centro de Vida (ICV), de Cuiabá, lançou em 2012 o programa Novo Campo. A Fazenda Beviláqua é uma das dez pioneiras nesse experimento com pecuária de baixo carbono (hoje são 33, com meta de chegar a 300 em 2017).
O dentista/pecuarista, seguindo orientação de consultores indicados pelo ICV -que paga metade do custo da assistência técnica-, separou 42 de seus 1.700 hectares para implantar a chamada unidade de referência tecnológica (URT), uma fazenda-modelo dentro da própria fazenda.
Morte súbita
Mesmo quem não tem o olho treinado percebe a diferença entre os pastos. De um lado da estrada de terra, a cerca de arame farpado tem muitos mourões. Proliferam os cupins e um arbusto invasor, o assa-peixe. O capim é mirrado e há grandes manchas em que ele foi dizimado.
Do outro lado, o capim brilha, mesmo no final de julho (estação seca), e os tufos alcançam entre 30 e 50 cm de altura. A cerca é eletrificada, com mourões espaçados por até 20 metros. Linhas de eucaliptos ou pinho cuiabano (paricá) fornecem sombra entre piquetes. Essas subdivisões do pasto são a ferramenta para que o gado só coma o capim até a altura certa (sem danificá-lo e sem arrancar as raízes), quando então a boiada passa para o piquete seguinte. No centro da URT, a "praça de alimentação" oferece cochos para suplementação alimentar com ração balanceada e bebedouro.
O foco da intervenção recai na reforma dos pastos doentes. É preciso gradear a terra (revolvê-la com auxílio de tratores), corrigir o solo com calcário e adubá-lo antes de semear o capim. Obtém-se então um pasto viçoso para confinar o gado durante a estiagem, a fim de que continue a crescer.
Celso Beviláqua consegue pôr até quatro vezes mais cabeças na URT do que no restante da fazenda. O ICV orça em R$ 2.800 por hectare o investimento para reformar a pastagem, mas o dentista gastou mais, R$ 3.500, porque decidiu também fazer curvas de nível para diminuir a perda de solo fértil nas chuvas, carregado pelas enxurradas. Gostou tanto do resultado que fez mais 130 hectares de recuperação, além dos 42 da URT, por conta própria.

R$ 500 mil a descoberto
Às 7h40, o também paranaense Wagner Ferraresi, 38, abandona a picape Strada da empresa Frigobom, onde trabalha como comprador de gado, e monta num cavalo da fazenda Cinco Irmãos. A gleba de 890 hectares foi comprada pelo pai, Valdomiro, no final dos anos 1970, quando chegou de Maringá (PR). Wagner apeia dez minutos depois e escala os degraus da colheitadeira para dar conta de mais um hectare de milho da propriedade.
Os Ferraresi deram um passo além de Celso Beviláqua no programa Novo Campo e partiram para a integração da pecuária com a lavoura. No primeiro ano, plantaram 100 ha de soja, 100 ha de milho e 100 ha de arroz. No segundo, fizeram 200 ha de soja, 100 ha de arroz e 82 ha de milho -só o que precisariam para fabricar ração, pois o preço do último grão não estava compensando.
Sai a lavoura, entra o gado, que pasta o capim semeado entre as linhas dos pés de soja ou milho. Antes da integração, Wagner tinha de reduzir o rebanho de 1.100 para 600 cabeças na seca, porque os 240 hectares de pasto não aguentavam, e o gado passava fome.
Agora, consegue manter quase a mesma lotação. Está satisfeito porque no último lote de 60 novilhas vendidas o frigorífico qualificou 56 como precoces: menos de 24 meses, cobertura uniforme de gordura de 3 mm na carcaça limpa de 180 kg. "Doze arrobas no gancho", relata, feliz com os R$ 0,33 recebidos a mais por quilo.
Quatro anos atrás, a família pensava até em vender a fazenda, que começara a dar prejuízo com a morte súbita do capim. Após a reforma do pasto, o tempo de abate caiu de 36 para 24 meses, ou menos, e o peso subiu de 12 para mais de 13 arrobas por animal. "Agora estamos conseguindo respirar", suspira Wagner. Mas ele ainda perde o sono com as dívidas.
A colheitadeira lhe custa R$ 86 mil por ano de financiamento, que só obteve a juros de 7,5% anuais, com um ano de carência e sete para pagar. Precisa colher 400 ha só para quitar as parcelas e não consegue R$ 100 mil de empréstimo para construir um barracão maior para abrigar os equipamentos.
"Uma colheitadeira de R$ 500 mil [fica] na chuva e no sol", lamenta Wagner. "Nego fica falando de plano ABC [Agricultura de Baixo Carbono, uma linha de crédito especial], mas faz três anos que a gente tenta e não consegue."
Louco por mogno
Ao sair da sede avarandada da fazenda Marupiara, em Paragominas (PA), a quase 2.000 km de Alta Floresta (MT), e embarcar na camionete Hilux cinza-chumbo, a primeira providência de Mauro Lúcio de Castro Costa, 50, é puxar do bolso da camisa xadrez uma caderneta com espiral e anotar a quilometragem.
Além de tocar a propriedade de 4.356 hectares (43,6 km²) e 2.000 cabeças de gado, o mineiro de Governador Valadares presta consultoria para outros fazendeiros e cobra cada quilômetro rodado a serviço.
Esporas, botas pontudas e fivela gigante no cinto completam o visual texano. No som do carro, o americano Garth Brooks tem presença garantida, tanto quanto o cigarro de palha na mão. Outra paixão é o mogno: plantou 17 mil pés na Marupiara, que tem 880 ha desmatados (20%, dentro do limite legal).
"Até 2007, 2008, eu era considerado louco dentro da família", conta Mauro Lúcio, que começou a reformar seus pastos uma década atrás. "Era mais barato desmatar do que reformar. Eu não aceitava isso. O que ia deixar para os meus filhos, terra degradada?"
O mineiro se tornou presidente do Sindicato Rural de Paragominas em 2008 (seu segundo mandato se encerrou em 2014), na época em que a cidade entrou para a lista de municípios que mais desmatavam na Amazônia e as carteiras de crédito se fecharem para seus produtores. Em 2009, o Ministério Público Federal lançou a ação Carne Legal, que embargou a produção paraense por causa da devastação e pegou no contrapé pecuaristas que já sofriam com a acelerada degradação de pastagens.

Da crise nasceu o projeto Pecuária Verde. O então vice-presidente do sindicato, Pércio Barros de Lima, 59, outro mineiro, tinha contato com pesquisadores da Embrapa e do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), que faziam há anos estudos de campo em sua fazenda, Vitória. Com o apoio técnico deles, iniciou-se uma das experiências pioneiras para disseminar a reforma de pastagens na região.
O objetivo era levar a pecuária para a legalidade, aumentar sua eficiência e não depender mais da derrubada de florestas. O sindicato conseguiu apoio da Unesp, da Esalq-USP, da Dow AgroSciences e do Fundo Vale. Cinco fazendas aderiram em 2012.
Com o bom manejo do pasto, Mauro Lúcio viu a produtividade de seu rebanho aumentar de 11 arrobas (165 kg) por hectare por ano para 48 (720 kg). Mais: na área intensificada, uma fração da fazenda, chega a produzir 974 kg/ha. "Não posso abrir mais área enquanto não realizar todo o meu potencial."
Não é fácil, porém, levar a transformação para outras propriedades. Enquanto Mauro Lúcio anota tudo e não larga dos dois smartphones nem do notebook, a maioria dos pecuaristas na Amazônia não sabe quantos bois tem no pasto e enxerga qualquer investimento como custo a ser evitado.
Das cinco fazendas que começaram no projeto Pecuária Verde, duas saíram (inclusive a do companheiro sindical Pércio). Outras seis entraram, e hoje somam nove.
Rotação de pastos já se faz muito na região de Paragominas, conta o fazendeiro/consultor, mas há resistência a adubar o solo, por exemplo. "Isto aqui [a fazenda] nada mais é que uma indústria de produzir carne. Se quiser produzir mais, o custo fixo aumenta e precisa aumentar muito a produtividade." Seu lema: "O maior pilar da sustentabilidade é o lucro".

Contas malfeitas
Tino empresarial não é o forte dos pecuaristas amazônicos. Segundo Paulo Barreto, pesquisador do Imazon que realizou seus primeiros estudos na fazenda Vitória, em Paragominas, boa parte deles não faz as contas da propriedade e a emprega como reserva de valor de outra atividade, quando não para sonegar impostos ou lavar dinheiro. "Por que tanto político tem fazenda de gado?" -questiona.
De um lado, o Imposto de Renda rural é utilizado para descontar todo tipo de despesa pessoal como custo da propriedade, que raramente dá lucro. De outro, paga-se por ela uma ninharia de Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR).
Levantamento do Imazon em 56% da área tributável do Pará revelou que poderiam ser arrecadados R$ 484 milhões por ano, mas só 0,75% disso (R$ 0,09 em lugar de R$ 12 por hectare) chegavam aos cofres da União, que repassa de 50% a 100% aos municípios.
Para piorar, mesmo quem decide adotar boas práticas enfrenta barreiras. A começar pela carência de mão de obra treinada para dar assistência técnica aos fazendeiros e trabalhar nas propriedades. O Imazon estimou em 2013 que, para atender a demanda até 2022, só na Amazônia seria necessário qualificar mais de 4.000 pessoas por ano.
Outro obstáculo é a dificuldade de obter crédito. O governo federal destinou R$ 216,6 bilhões para financiar o agronegócio e a agricultura familiar na safra 2015/16, mas só R$ 2,5 bilhões -pouco mais de 1%- rubricados para o Plano ABC (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono), o que dá uma boa medida da prioridade do tema em Brasília.
Apesar das dificuldades, até na família de Mauro Lúcio Costa os processos de produção estão aos poucos mudando. "Começaram a ver que dá resultado", diz o pioneiro, "mas também que não se faz [a revolução] deitado."
O mesmo, ao que parece, vale para o governo federal.

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