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Caçada a fazendeiro

CB, Brasil, p.13-16
15 de Fev de 2005

Caçada a fazendeiro
Agora são quatro os suspeitos do assassinato da freira americana Dorothy Stang, no Pará. Policiais militares, civis e federais fazem varredura na região à procura dos criminosos

A Justiça de Pacajá, no Pará, decretou ontem a prisão de mais um suspeito de envolvimento na morte da freira americana naturalizada brasileira Dorothy Stang, de 74 anos, assassinada no sábado, 12, no assentamento Esperança, em Anapu, a 600 quilômetros de Belém. Agora são quatro os acusados de matar a missionária. Equipes das polícias Federal, Civil e Militar passaram o dia de ontem realizando buscas no local do assassinato. Mas ninguém foi preso. Existe a suspeita de que os assassinos e mandantes possam ter fugido, o que traz uma preocupação maior para o governo brasileiro. Outra suspeita é de que eles estejam escondidos em fazendas da região.

Os investigadores do caso chegaram ontem ao nome do fazendeiro Vitalmiro de Moura. Segundo a Polícia Federal (PF), ele teria pedido a um intermediário, no caso Amauri Segove Cunha, mais conhecido como Tota - outro fazendeiro da região -, para contratar dois pistoleiros. Os assassinos da irmã Dorothy foram identificados como sendo Uquelano Pinto e José Maria Pereira, o Pogoió. Os policiais se baseiam principalmente nos depoimentos de três testemunhas para elucidar o caso. A principal é o agricultor que estava com a freira no momento do crime e que fugiu após os tiros.

Além dos depoimentos, os investigadores utilizam o laudo da necropsia do corpo da irmã Dorothy Stang para ajudar nas apurações. O documento do Instituto Médico Legal (IML) de Belém indica que a missionária foi morta com seis tiros, um deles na cabeça. O perito presume que os disparos teriam saído de duas armas diferentes - possivelmente um revólver calibre 38 e uma pistola 765. Ou seja, dos pistoleiros Eduardo e Pogoió.

O prenúncio de uma morte anunciada. Assim pode ser tratada a morte da missionária, que chegou a ler três trechos da Bíblia para os assassinos antes de ser executada. O Ministério Público Federal (MPF) no Pará já havia avisado a autoridades do estado sobre as ameaças de morte sofridas pela missionária Dorothy Stang. Segundo o MPF, um procedimento administrativo foi aberto na Procuradoria registrando todos os conflitos que ocorreram na região.

Megaoperação
Policiais federais, civis e militares se dividiram em seis equipes para vasculhar o município de Anapu. Investigadores coletaram informações com moradores da região a fim de encontrar os suspeitos. Mas, em vez de encontrar os criminosos, os investigadores descobriram pistas de pouso e decolagem nas fazendas da região, um rio considerado navegável e várias estradas de terra que ligam a cidade a outros lugarejos.

Segundo o superintendente da PF no Pará, José Ferreira Sales, que ontem acompanhou as buscas, não está descartada a hipótese de fuga dos criminosos. "Com uma simples embarcação pode-se navegar no rio. Além do mais, em apenas um dia de investigação encontramos duas pistas de pouso", afirmou. O delegado informou também que a Polícia Federal deverá mandar apenas hoje investigadores treinados para esse tipo de investigação.

O superintendente explicou que as investigações foram iniciadas com os agentes que acompanharam a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na sexta-feira, 11, quando ela foi até o assentamento Xingu. Caso não encontre os suspeitos, a PF estuda a possibilidade de requisitar agentes e delegados de outros estados para ajudar na operação de captura dos envolvidos na morte da missionária.

O delegado Waldir Freire, da Divisão de Operações Especiais da Polícia Civil do Pará, espera que os suspeitos estejam em Anapu. Mas ressalvou que, por conhecerem bem a cidade, os envolvidos teriam mais chances de fuga. "Anapu é uma região inóspita. Aqui tem muita mata fechada e, por isso, é um local de difícil acesso", explicou.

O ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, passou o dia de ontem em Anapu e ficou espantado com a quantidade de aviões que passam na região. "Realmente, deve haver muitas pistas de pouso", comentou. "A cidade possui uma imensidão de mata. Isso dificulta muito as buscas da polícia." Nilmário afirmou que a Polícia Rodoviária Federal está fazendo várias blitze nas rodovias que dão acesso ao município.

Segundo o delegado Waldir Freire, as polícias realizarão hoje uma grande busca na região. Ao todo, 54 policiais - oito federais, 17 civis e 20 militares - estarão mobilizados na operação. Dez equipes serão formadas para tentar descobrir o local do esconderijo dos suspeitos, caso eles ainda estejam em Anapu. "As buscas estão sendo feitas sem intervalo. Ou seja, podemos prender os envolvidos até na madrugada", disse.

''Preocupadíssimo"
A notícia de uma possível fuga dos suspeitos chegou aos ouvidos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se encontra na Venezuela. Assessores ligados ao presidente informaram que Lula está "preocupadíssimo" com o caso. O crime está sendo tratado no governo como prioridade.

Dois analistas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foram os primeiros a chegar ao local do homicídio no sábado. Eles estão lotados na agência regional da Abin no estado do Pará e também participavam da segurança da ministra Marina Silva. De acordo com um diretor da agência, foram eles que avisaram a Polícia Federal sobre o assassinato da irmã. Desde 2002 que a Abin monitora os conflitos agrários na região.

O juiz Lauro Alexandrino Santos, que concedeu os mandados, afirmou ter decretado a prisão preventiva dos suspeitos com base nas provas apresentadas pela polícia. "Lógico que todo mundo é inocente até que se prove o contrário, mas as evidências eram fortes o suficiente para justificar a decisão", disse. Na decisão, ele ressaltou haver duas testemunhas que presenciaram o crime e que as ameaças feitas pelos suspeitos eram de conhecimento público. "A liberdade do representado compromete a instrução criminal e a aplicação da lei penal e configura potencial ofensa à ordem pública, reclamando, assim, o decreto prisional", relatou o magistrado na decisão.

O corpo da freira Dorothy Stang foi velado ontem em Altamira. O enterro está previsto para hoje em Anapu, onde ela vivia e foi assassinada.

Irmã visitou assassinos na véspera

Num gesto de ousadia e de extrema condescendência com o ser humano, a irmã Dorothy Stang, visitou seus algozes na véspera de ser assassinada. Informada de que sua morte estava encomendada, ela foi à cabana onde estavam escondidos os dois pistoleiros, na última sexta-feira. Com sorrisos e palavras amenas, ela tentou demovê-los da empreitada. Pediu para rezar um salmo, abençoou-os e passou a mão na cabeça dos dois assassinos.

Atônitos com a visita, os pistoleiros não tiveram nenhum gesto agressivo, agradeceram a visita e asseguraram à freira que não a matariam. Ainda desconfiados, eles perguntaram o local da reunião que a irmã faria na manhã de sábado com um grupo de assentados de um grupo de desenvolvimento sustentável. Às 8h de sábado, os mesmos homens aproximaram-se da irmã e a assassinaram friamente, na presença de duas testemunhas.

Apuração rigorosa

Para ministro da Justiça, crime aconteceu porque as pessoas da região não estão acostumadas a se submeter à lei. Reunião no Planalto discutirá providência para evitar outros assassinatos

Segundo Thomaz Bastos, que participou de cerimônia de desarmamento ao lado do prefeito de São Paulo, José Serra, repressão será dura e forte

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse ontem que o assassinato da missionária americana Dorothy Stang será apurado com rigor e rapidez. Para Thomaz Bastos, o crime é uma reação às tentativas do governo de civilizar o campo. "Pessoas que não estão acostumadas à convivência democrática e civilizada, e que não estão acostumadas a se submeter ao império da lei, reagem. É a presença do Estado que provoca essa reação. A resposta que temos é uma repressão penal dura e forte", disse durante a solenidade em que esteve presente o prefeito de São Paulo, José Serra, e o arcebispo de São Paulo, dom Claúdio Hummes.

Para o presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, a morte da missionária reforça a convicção de que solidariedade e respeito ao próximo são pressupostos para uma sociedade mais justa. "E nos desafia a responder, com justiça, à brutalidade dos que atentam contra o curso da história", disse.

Cada passo das investigações sobre o crime está sendo repassado ao ministro da Justiça. Ao longo do dia, Thomaz Bastos trocou vários telefonemas com o superintendente da Polícia Federal (PF) no Pará, José Ferreira Salles, e com o diretor-geral da PF, Paulo Lacerda. Devido às más condições do tempo, Lacerda determinou o enviou de um avião à região. A aeronave tem condições de pousar em qualquer tipo de terreno e deve facilitar nas buscas dos quatro suspeitos de terem matado a religiosa. Mais de 50 agentes das polícias civil, militar e federal participam das diligencias no município de Anapu, município de nove mil habitantes localizado a cerca de 600 quilômetros de Belém.

Estado ausente
O ministro entende que a execução da freira é resultado da ausência do Estado. "Aquilo é um lugar cheio de tensão, um lugar onde não havia a presença do Estado". Ele comparou o caso com episódios anteriores que ganharam repercussão internacional. "Isso aconteceu no caso do Chico Mendes, que foi morto por pessoas que não admitiam a presença da lei. Aconteceu nesse caso recente de Unaí, do ano passado, em que os fiscais foram chacinados porque os fazendeiros acreditavam que não seriam fiscalizados", analisa.

Manchete de jornais nos Estados Unidos e Europa, o assassinato da freira, segundo Thomaz Bastos, não deverá gerar uma crise diplomática entre o Brasil e o governo americano. Em entrevista à TV Globo, a família da freira, em Ohio, reconheceu que o trabalho dela era importante, porém arriscado.

As ameaças de morte contra a freira vinham ocorrendo há seis meses e foram levadas ao conhecimento da Secretaria de Segurança Pública do Pará, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil do estado. No entanto, o ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, informou ter se encontrado com a religiosa há pouco mais de suas semanas. Na ocasião, ela teria comunicado que os colonos vinham sofrendo ameaças, mas não havia dito que a sua vida corria perigo. Dorothy atuava com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e trabalhava há mais de oito anos com as comunidades e movimentos sociais na região da rodovia Transamazônica.

O assassinato da freira mobilizou o governo. Está prevista para hoje, no Palácio do Planalto, reunião dos ministros da Casa Civil, José Dirceu; do Meio Ambiente, Marina Silva; da Justiça, Márcio Thomaz Bastos; dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda; da Integração Nacional, Ciro Gomes; do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto; da Secretaria de Comunicação, Luiz Gushiken; e do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix. Eles vão analisar o caso e discutir as previdências que governo deve tomar para que um crime do gênero se repita.

Segundo Nilmário Miranda, na reunião será tratada a forma como o governo vai tratar a otimização de recursos na região e a integração dos órgãos. Além disso, Miranda comentou que a pergunta central do encontro interministerial será o porquê da morte da missionária Dorothy Stang. "Vamos tentar encontrar mais soluções para os problemas daquela região. Temos que fazer um trabalho coletivo", comentou.

HOMENAGENS NO CONGRESSO
A execução da irmã Dorothy Stang entrou na pauta das sessões que elegeram os novos presidentes da Câmara e do Senado. Às 16h, o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) pediu aos parlamentares que fizessem um minuto de silêncio em memória da religiosa. Já o novo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) anunciou que o primeiro ato de sua gestão será a criação de uma comissão mista de parlamentares para acompanhar as investigações.

Pedido de investigação federal

O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, entrará com pedido no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para que o assassinato da irmã Dorothy Stang seja investigado apenas pela esfera federal. A Polícia Civil, no entanto, confirmou que continua no caso. A decisão de Fonteles instalou uma discussão entre juízes, advogados e até dentro do governo. Aprovada ano passado, a reforma do Judiciário trouxe, entre outras novidades, dispositivo estabelecendo que os crimes com grave violação de direitos humanos poderão passar da esfera estadual para a federal em qualquer fase do inquérito ou processo. Para isso, o procurador-geral tem de fazer um pedido ao STJ, que decidirá caso a caso.

Essa é primeira vez que acontece um pedido para federalizar a investigação de um crime no Brasil, até porque a legislação é recente. Para o ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, a medida parece precipitada. "É prematuro dizer se há necessidade de uma providência assim, até porque o Ministério Público e a Polícia Federal já estão trabalhando em conjunto com os órgãos estaduais", defendeu. Apesar de contrário à idéia, Nilmário reconhece muitas circunstâncias que podem levar o caso para a esfera federal. "O crime foi cometido em área da União, envolve uma estrangeira e a vítima era uma defensora dos direitos humanos."

Presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Jorge Maurique acha que a federalização deve ser pedida caso fique comprovado, durante as investigações, que o estado do Pará falhou em relação à segurança da vítima. "A situação precedente pode justificar a medida. Mas no momento, tomando como ponto de partida o inquérito, não vejo necessidade", afirmou. Maurique disse ainda que o tratamento diferenciado só se justificará se a polícia e a Justiça no estado se mostrarem incapazes de garantir um julgamento isento.

Para Roberto Busato, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a federalização é necessária porque se trata de um assassinato torpe, cometido numa região visada pelo mundo inteiro. "O crime bárbaro contra a missionária extrapola os limites do território brasileiro. Temos que dar uma resposta à comunidade internacional porque a Amazônia vem sendo altamente questionada", disse em nota divulgada pela entidade. O presidente da seccional da OAB do Pará, Ophir Filgueiras Cavalcante Júnior, também defende investigações federalizadas.

Pedido de socorro

Irmãs da congregação Notre Dame entram em contato com o Departamento de Estado dos EUA para solicitar reforço nas investigações. Embaixador americano elogia reação do Brasil

A missionária americana Dorothy Stang foi executada na manhã de sábado à queima-roupa com seis tiros em Anapu, cidade a Oeste do Pará

A Congregação das Irmãs Notre Dame, com sede nos Estados Unidos, comunicou ontem ao Departamento de Estado desse país a morte da missionária Dorothy Stang e pediu ajuda nas investigações do assassinato. Irmã Dorothy foi executada com seis tiros em um acampamento no oeste paraense na manhã do último sábado. Apesar do pedido de ajuda da congregação, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, John Danilovich, elogiou a atuação do governo na apuração do caso. "Sinto-me encorajado pela rápida reação do governo brasileiro e da Polícia Federal", disse, por meio de nota em que lamentou a morte da missionária. "Estamos confiantes de que haverá uma investigação completa e detalhada desse assassinato e que os responsáveis serão trazidos perante a Justiça."

Danilovich afirmou que a embaixada irá acompanhar de perto a investigação do caso. "Estou entristecido e chocado com esse assassinato brutal e insano. A irmã Stang era uma pessoa corajosa, que amava o povo brasileiro e que dedicou sua vida ao serviço daqueles menos favorecidos", cita a nota. De acordo com ele, a missionária Dorothy era conhecida por muitos na embaixada e havia recebido apoio do governo dos EUA, por meio da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), para seu trabalho a favor das mulheres e em defesa das populações tradicionais da Amazônia.

A decisão de comunicar ao governo norte-americano partiu da Congregação das Irmãs Notre Dame, que atua no Brasil há quase 40 anos. O objetivo da ordem é pressionar para que o incidente seja totalmente investigado. "Muitos detalhes do violento encontro não estão claros", divulgou a congregação, também por meio de nota.

"A irmã Marie Bowyer, de Cincinnati, Ohio, contactou o Departamento de Estado em Washington e solicitou uma investigação completa", esclarece o documento. "Vamos rezar para que sua morte esteja chamando a atenção para a opressão violenta e que ela não tenha sido em vão."

Disputa
A violência também foi lembrada pelo bispo da Prelazia do Xingu, em Altamira, dom Erwin Krautler. De acordo com ele, o assassinato da missionária não foi um simples crime porque evidencia uma disputa entre os latifundiários, que possuem o poder econômico na região, e os marginalizados. "Ela morreu porque tinha um sonho diferente para a Amazônia, defendia sempre os planos do desenvolvimento sustentável e lutava pelo assentamento dos colonos simples", afirma dom Erwin. "Assim, ela ia contra o espírito e a idéia dos latifúndios."

Dom Cláudio Hummes, cardeal-arcebispo de São Paulo, criticou a falta de segurança no país para garantir a vida das pessoas que fazem trabalhos comunitários em regiões de conflito, como é o caso do Pará. "Falta muito em termos de segurança. Deveria haver mais empenho na proteção da população", alertou.

Negligência
A Anistia Internacional também divulgou uma nota ontem. O comunicado pede o fim do "derramamento de sangue". O crime, segundo a organização, é o último entre as centenas de assassinatos de sindicalistas, ambientalistas e ativistas da luta pela terra no estado brasileiro do Pará que a Anistia Internacional documentou por décadas. "A violência no estado foi exacerbada pela negligência de longo prazo mostrada pelas autoridades federais e estaduais para combater a impunidade e proteger os defensores dos direitos humanos em risco", cita o texto.

No comunicado, a Anistia Internacional lembra que o governo federal recentemente prometeu medidas para proteger os defensores dos direitos humanos, e seria vital que essas promessas fossem seguidas com ação rápida. Entre as medidas defendidas pela entidade, estão as de desarmamento e o fim de milícias armadas na região, reformas judiciais e policiais para assegurar a condenação dos responsáveis.

"A violência vem sendo sustentada por um sistema judicial dolorosamente lento que perpetua o estado de impunidade", critica a anistia.

A mesma indignação foi expressada pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato. Ele sugeriu a criação de uma força-tarefa do Executivo, comandada pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, para estabelecer um padrão das investigações. De acordo com Busato, "é preciso tomar cuidado para o Pará não virar uma Faixa de Gaza". "Morrem diariamente, em decorrência dos conflitos, muitas pessoas, a maioria agricultores sem-terra e sem influência política", afirmou.

ENTREVISTA - IRMÃ MARIA ALICE McCABE
"Aqui, a Justiça não chega"

A morte da irmã Dorothy Stang, missionária da Congregação Notre Dame, em Anapu, foi apenas mais uma no oeste do Pará, estado conhecido pelos constantes conflitos de terra e problemas trabalhistas. De acordo com a irmã Maria Alice McCabe, da mesma congregação de Dorothy, nos últimos dez anos, mais de 50 lideranças foram mortas na região por causa das brigas entre assentados, pecuaristas e madeireiros. "Aqui, a Justiça não chega", afirmou, com um carregado sotaque norte-americano, apesar de estar há mais de 30 anos no Brasil. "Os pistoleiros matam e queimam os corpos sem que ninguém se dê conta do que está acontecendo."

A irmã Maria Alice conversou com o Correio, por telefone, durante o velório da colega, cujo corpo será enterrado hoje em Anapu. As duas vieram dos Estados Unidos para morar no Brasil na mesma época, final da década de 60. "A morte da irmã Dorothy só teve visibilidade porque é uma norte-americana, missionária. O povo daqui sofre isso todo dia", lamentou.

Correio Braziliense - A morte da Irmã Dorothy surpreendeu a Congregação Notre Dame?
Irmã Maria Alice McCabe - Todos sabíamos e tínhamos medo das ameaças contra a nossa irmã. Inclusive, denunciamos o risco em inúmeras ocasiões. Ela mesmo denunciou, assim como vários colonos. Mas nós estamos chocados com todo o esquema, com toda a impunidade e injustiça que o povo daqui sofre.

Correio - As ameaças são constantes aos assentados?
Irmã Maria Alice - A morte da irmã Dorothy só teve visibilidade porque é uma norte-americana, missionária. O povo daqui sofre isso todo dia. É tudo muito arbitrário e nos dá a certeza de que a Justiça não chega aqui.

Correio - O que a senhora espera que aconteça agora?
Irmã Maria Alice - Esperamos o que se espera sempre. Que os culpados sejam punidos, que o povo tenha direito de verdade à terra nessa região, porque até hoje só teve esse direito no papel. Quando há briga com os madeireiros e pecuaristas, nada é feito. Os pistoleiros matam essa gente, queimam os corpos e ninguém vê o que está acontecendo.

Correio - Houve outras mortes nessa região?
Irmã Maria Alice - Muitas. Sabemos de mais de 50 mortes de lideranças e moradores dessa região, nos últimos dez anos. Pessoas que foram assassinados por pistoleiros.

Correio - A senhora veio ao Brasil na mesma época que irmã Dorothy e luta pelas mesmas coisas. Não tem vontade de deixar o Brasil?
Irmã Maria Alice - De jeito nenhum. Somos um grupo muito comprometido com o povo brasileiro, que se identifica com a gente e acompanha nossas batalhas. Espero ficar no Brasil até a minha morte e ser enterrada neste solo sagrado. (EK)

Denúncias ao vento

Pastoral da Terra e Associações de Agricultores do Pará cansaram de divulgar relatórios com o nome de trabalhadores e líderes comunitários ameaçados de morte na região

Protesto contra o assassinato de Dorothy pede o fim da impunidade: No Sul e Sudeste do Pará, 119 pessoas foram mortas entre 1982 e 2004

Não foi por falta de aviso. Organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Pará, e associações de agricultores da região cansaram de fazer denúncias, elaborar relatórios, divulgar nomes de pessoas ameaçadas de morte. Doze dias antes de a missionária Dorothy Stang ser assassinada, a Subsecretaria da CPT em Marabá finalizou um documento com a relação de inquéritos e processos que apuram assassinatos de trabalhadores rurais e líderes comunitários no sul e sudeste do estado.

O relatório aponta 25 casos, ocorridos de 1982 a 2004. "Sem contar os crimes e ameaças de morte que, pela dificuldade de comunicação aqui, nem chegam ao nosso conhecimento", observa Raimunda Regina Bastos, advogada da CPT em Marabá. Alguns processos se perderam em comarcas da região. Outros ainda estão em andamento. Mas, na maioria deles, os criminosos tiveram a prisão decretada e estão foragidos.

De toda a relação, apenas três condenados cumprem pena - dois comandantes do massacre de Eldorado dos Carajás, operação que vitimou 19 trabalhadores rurais em 1996, e um pistoleiro que matou a família do sindicalista José Pinheiro Lima, em Marabá. No total, o documento lista 119 assassinatos.

Histórias de impunidade
Em 1985, a irmã Adelaide Molinari, religiosa que lutava em defesa dos mais necessitados da região, foi morta com um tiro quando se despedia, na rodoviária de Eldorado do Carajás, do então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, Arnaldo Delcídio Ferreira, que viria a ser executado na chacina de 1996. O processo que apurava o assassinato de Adelaide ficou parado por onze anos porque o acusado de cometer o crime, José Ribamar Rodrigues Lopes, estava foragido. Em 2003, encontrado pela polícia no Rio de Janeiro, ele foi a julgamento.

Segundo a CPT, o julgamento foi marcado por irregularidades. Alguns jurados teriam usado telefone celular, quebrando o príncípio da incomunicabilidade. O advogado de José Ribamar negou a autoria dos disparos. E o homem, conhecido pistoleiro da região, foi absolvido por cinco votos a dois. O resultado causou indignação nas cerca de 2.500 pessoas que acompanharam o julgamento. A acusação recorreu da sentença. E aguarda pronunciamento do Tribunal de Justiça do Pará. O caso foi denunciado à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

Longe de ser novidade no sistema judiciário brasileiro, a demora no andamento de processos criminais que correm no interior do Pará é de impressionar. O que trata da Chacina da Ubá, ocorrida em 1985, quando seis pessoas foram mortas, está parado há 19 anos, sem qualquer avanço. Nos casos em que os assassinos são julgados e condenados, raramente vão para a prisão. Pistoleiros geralmente ficam foragidos. E quase nunca se consegue chegar aos mandantes dos crimes.

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Alerta antigo

Uma carta aberta, encaminhada aos governos federal e do Pará em 20 de agosto de 2004, tentou alertar as autoridades sobre a gravidade dos conflitos na região onde a irmã Dorothy Stang foi assassinada. O documento foi redigido por 41 entidades e organizações não-governamentais (ONGs), como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Greenpeace Brasil e o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

De acordo com João Neves, presidente do Conselho Deliberativo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que também assina a carta, o texto foi redigido em um audiência pública em que irmã Dorothy contou as ameaças de morte que vinha sofrendo. "Isso, para a gente, é no mínimo uma falta de consideração dos políticos tanto do governo federal quando aqui do estado", criticou Neves. "Colocamos claramente que havia ameaças, mas ninguém fez nada. Agora, que a tragédia aconteceu, colocam ministros à disposição. Parece piada."

Na lista de reivindicações da carta, estava a imediata conclusão dos inquéritos e julgamento dos processos sobre grilagem de terras públicas e violência no campo, que se arrastam nas Justiças federal e estaduais, assim como a ação do Executivo. De acordo com Neves, nada mudou. "Agora, estamos todos com medo de que, depois de alguns dias, a morte dela seja esquecida e a gente também." (Erika Klingl)

Problemas no Pará

Pistolagem
Crimes ligados a conflitos fundiários, cometidos por matadores de aluguel. Nas regiões sul e sudeste do Pará, são 16 os assassinatos de sindicalistas que permanecem sem punição para os mandantes do crime. Vinte e nove acusados de pistolagem, que estão foragidos, são acusados pela morte de 36 pessoas que se envolveram em conflitos no campo no estado.

Grilagem
Posse de terra mediante falsa escritura da propriedade. A Operação Faroeste, da Polícia Federal, que investiga a grilagem de terras públicas no Pará, prendeu, em dezembro de 2004, dois dirigentes do Incra no estado, acusados de receber propina para autorizar a regularização de terras da União para sojicultores e madeireiros.

Terras devolutas
Terras pertencentes à União, que há três anos começaram a ser usadas para fim de reforma agrária no Pará. Como desde a década de 1970 fazendeiros começaram a ocupá-las com autorização do governo federal, o uso delas para assentamentos rurais nos últimos anos tem gerado conflitos fundiários.

Terra do meio
Localizada entre Altamira e São Félix do Xingu, com cerca de nove milhões de hectares, é considerada a maior área contínua de florestas do Pará, uma das menos exploradas na região leste da Amazônia e ainda sem proteção legal. Atualmente, é alvo de disputa entre três grandes grupos de grileiros, segundo a Comissão Pastoral da Terra.

Deu no...
The New Work Times

O assassinato da missionária Dorothy Stang foi destaque na edição de ontem do jornal americano, que dedicou uma página inteira ao assunto. Na reportagem "Brasil promete ofensiva contra criminosos depois do assassinato da freira", o jornalista Larry Rohter comenta que as autoridades vêem a emboscada como um desafio à autoridade do governo, que enfrentou resistência de madeireiros e especuladores de terra na região.

The independent

O jornal britânico publicou na primeira página da edição de ontem a manchete "Freira americana que defendia os sem-terra, no Brasil, é morta a tiros" com matéria do jornalista Daniel Howden que fala sobre a ação da polícia brasileira na floresta amazônica para tentar prender os assassinos da missionária americana, Dorothy Stang.

The Guardian

O jornal britânico, na seção internacional, reproduz a matéria "Freira ativista é morta a tiros na floresta amazônica" do jornalista Michael Astor, da agência Associated Press, comentando a mobilização do governo e da polícia para investigar o crime da missionária Dorothy Stang.

Repercussão

"Que o Brasil não desista do sonho de um futuro melhor, com reforma agrária e política agrária para todos e todas"
Dom Geraldo Majella, presidente da CNBB

"Sua morte nos desafia a responder, com justiça, à brutalidade dos que atentam contra o curso da história".
Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal

"Foi um crime absurdo, covarde, que, portanto, precisa ser punido exemplarmente, não só para se combater a violência e a impunidade, mas também para impedir prejuízos à imagem do Brasil no Exterior"
Renan Calheiros (PMDB-AL), novo presidente do Senado

"As reações de criminosos são fruto do incômodo das ações do governo. Temos um século de ausência do Estado na região"
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente

"É preciso tomar cuidado para o Pará não virar uma Faixa de Gaza"
Roberto Busato, presidente da OAB

"A violência no estado foi exacerbada pela negligência de longo prazo mostrada pelas autoridades federais e estaduais para combater a impunidade e proteger os defensores dos direitos humanos em risco"
Anistia Internacional

"A morte da irmã Dorothy só teve visibilidade porque é uma norte-americana, missionária. O povo daqui sofre isso todo dia"
Maria Alice McCabe, freira da Congregação Notre Dame

"Estamos assistindo a polícia chegar a um grupo que se coloca acima da lei há muito tempo no Pará. Mas esse caso tem tudo para ser exemplar. Em dois dias, quatro prisões foram decretadas"
Nilmário Miranda, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos

"Estou entristecido e chocado com esse assassinato brutal e insano. A irmã Stang era uma pessoa corajosa, que amava o povo brasileiro e que dedicou sua vida ao serviço daqueles menos favorecidos"
John Danilovich, embaixador dos EUA

"Colocamos claramente que havia ameaças, mas ninguém fez nada. Agora, que a tragédia aconteceu, colocam ministros à disposição. Parece piada."
João Neves, presidente do Conselho Deliberativo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira

"Ela morreu porque tinha um sonho diferente para a Amazônia, defendia sempre os planos do desenvolvimento sustentável e lutava pelo assentamento dos colonos simples"
Dom Erwin Krautler, bispo da Prelazia do Xingu, em Altamira, Pará

"Falta muito em termos de segurança. Deveria haver mais empenho na proteção da população"
Dom Cláudio Hummes, cardeal-arcebispo de São Paulo

CB, 15/02/2005, Brasil, p. 13-16

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