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Brasil vive boom do "orgulho indígena"

FSP, Brasil, p. A10
20 de Nov de 2006

Brasil vive boom do "orgulho indígena"
Cresce o número de grupos que reivindicam direitos como índios; povos "ressurgiram" no Pará, no Ceará e em Alagoas
"Etnização" da sociedade e mudança legal contribuíram para fenômeno; Funai teme aumento "exponencial" de demanda por terras

Flávia Marreiro
Da reportagem local

O aumento da população de índios no Brasil é acompanhado por um fenômeno, além da recuperação demográfica por crescimento vegetativo: há cada vez mais comunidades reivindicando sua identidade indígena.
O boom do "orgulho índio" -há vários termos para designar as novas comunidades, desde povos "ressurgidos", "resistentes" ou coletivos originários de processos de "emergência étnica"- preocupa a Funai porque o órgão considera "previsível" esperar um aumento "exponencial" da demanda por terras indígenas.
A questão foi levantada pelo lançamento, na semana passada, do mais importante compêndio sobre índios no país: "Povos Indígenas no Brasil 2001/2005", editado pela ONG ISA (Instituto Socioambiental), financiado principalmente com recursos de organizações internacionais.
No livro, o ISA conta 225 povos indígenas no Brasil -nove a mais que em 2000. Atribui o aumento à "emergência étnica" e diz: a lista não esgota o número de etnias e não está fechada.
Os números de povos "ressurgidos" ou "resistentes" são de difícil aferição, mas o Cimi (Conselho Missionário Indigenista) trabalha com algumas projeções. Pela consulta feita pela Folha com a entidade católica, há pelo menos 47 povos que se consideram na categoria, além de centenas de comunidades de etnias já conhecidas que resolveram "acionar" sua identidade indígena.
Só na região dos rios Tapajós e Arapiuns, no Pará, 11 comunidades passaram a se reconhecer como índias a partir de 2000 e criaram organização que reivindica direito a terras, atendimento de saúde e educação diferenciados na área.
No Piauí e no Rio Grande do Norte, que até então não estavam entre os Estados com população indígena, há dois grupos cada um. No Ceará, o número cresce ano a ano e agora existem 16 comunidades.

Novo impulso
Se o processo não é novo -desde o final da década de 70, em resposta ao regime militar, grupos vem se afirmando como indígenas, movimento que ganhou marco legal na Constituição de 1988-, o fenômeno ganhou novo impulso, dizem o Cimi e antropólogos, por conta de alguns fatores.
O primeiro deles é a "etnização" da sociedade -não causaria mais vergonha ou seria menos alvo de preconceito se definir como índio. Esse "orgulho índio" é também uma das explicações para aumento de 150% da população que se declara indígena no país (passou de 294 mil, em 1991, para 734 mil, no Censo de 2000).
"Várias comunidades haviam se esquecido, com ou sem aspas, de que eram índias -a ordem para que eles esquecessem foi tão bem-sucedida que eles acabaram esquecendo mesmo. Na imensa maioria dos casos, viram agora que era possível reinventar a sua identidade indígena e passá-la de estigma em arma, instrumento de garantia de direitos", diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que assina texto no livro sobre a questão.
Outro fator, lembrado principalmente por líderes indígenas e missionários do Cimi, foram as comemorações dos 500 anos do descobrimento, em 2000, mote para articulação de várias comunidades.

Convenção da OIT
Mas houve também uma mudança legal nos últimos quatro anos: a adoção, pelo Brasil, da Convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) número 169.
Pela regra, transformada em lei ordinária pelo governo Lula em 2004, a autodeclaração deve ser considerada o "critério fundamental" para que uma comunidade seja reconhecida como indígena. Não seriam necessários, portanto, os "Laudos de Identificação Étnica".
Para a Funai, porém, a nova lei está sendo extrapolada por alguns dos movimentos indigenistas e contribui para o que chama de "guerra de números" sobre as terras indígenas que faltam ser demarcadas no Brasil. O critério de autodeclaração é importante, mas não o único, diz o antropólogo do órgão, Artur Nobre, no livro:
"Embora esse não seja, na atualidade, o fator que mais contribui para o aumento desse número, a adoção do critério único definitivo da Funai provocaria, muito provavelmente, um crescimento exponencial nas reivindicações por terras novas", escreve Nobre. O movimento, questiona, poderia pôr em risco direitos já garantidos aos índios?
Os antropólogos ouvidos pela Folha discordam. Para Viveiros de Castro, a questão não amedronta. "O que está em jogo é terra. Não se trata de só imprimir carteirinha de índio, porque, se fosse só isso, o governo faria com muito gosto. A questão amedontra também alguns dos meus colegas com alguma razão, mas a mim não. O medo é ambíguo, é uma maneira de impedir, de certa modo, o processo de devolução aos índios de uma parte ínfima das terras que eram deles."
Há consenso também entre os antropólogos de que não deve ser papel do Estado ou deles atestar quem é índio e quem não é e de que não cabe falar de "falsos" e de "verdadeiros".
Muitos dos grupos foram forçados a imigrar ou, reunidos artificialmente a outras etnias, perderam ao longo do tempo parte de seus rituais e não podem ser punidos ou deixados fora da lista por conta disso. O antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio, estudioso do fenômeno desde os anos 80, afirma que geralmente se trata de grupos, mais ou menos articulados com base em parentesco, que em determinado momento resolvem "acionar a identidade", principalmente quando está em jogo uma terra de uso coletivo.
"Não faz sentido chamá-los de sem-terra disfarçados, como falam alguns. É evidente que há um cálculo, porque nunca foi, até então, vantagem ser índio. Se isso acontece mais agora, é porque a situação mudou um pouco. Por outro lado, o cálculo não se fabrica. Há a opção de acionar ou não a identidade indígena, mas uma opção que tem raízes nas suas histórias", diz Sampaio, da Uneb (Universidade do Estado da Bahia).

Identidade

Índio Borari alterou próprio nome em 2000

Até meados de 2000, ele era simplesmente Odair José de Souza -nome dado pela mãe em homenagem ao cantor popular-, da comunidade Novo Lugar, na região do rio Arapiuns (PA).
Agora, ele se apresenta como Odair José Borari, sobrenome da sua comunidade que desde então reivindica direitos como indígena.
"Não nos apresentávamos como índios. Tínhamos vergonha. Fazíamos nossos rituais, mas escondido", diz ele, que é coordenador do Cita (Conselho Indígena Tapajós Amazonas).
A ONG foi criada há seis anos reunindo 11 povos da região, que querem que suas terras sejam demarcadas. "O número de grupos do Cita vai crescer. Há quatro comunidades que não reivindicam terras porque negociaram com os madeireiros. Mas eles estão vendo que não funciona", afirma.

Atendimento de saúde ficou pior, diz ONG

Da reportagem local

Nos últimos quatro anos, a despeito da melhora demográfica, o atendimento de saúde aos povos indígenas piorou, é o que aponta o compêndio "Povos Indígenas no Brasil 2001/ 2005", do ISA (Instituto Socioambiental).
O número de crianças indígenas que morreram por desnutrição voltou a subir. Eram 49 mortes por cada grupo de mil crianças em 2004, e passaram a 50,9. Os casos mais graves aconteceram entre os caiovás, em Mato Grosso do Sul.
Há também o caso dos ianomâmi de Roraima, onde recrudesceu a malária. Um dado reforçou o alarme: segundo um relatório da Funasa de Roraima, os casos da doença aumentaram 470%, se comparados o primeiro semestre de 2005 e o primeiro semestre deste ano.
Entidades e lideranças indígenas dizem que uma razão para a piora é o loteamento político da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), responsável pelo atendimento. "O maior erro do governo Lula é que a saúde indígena se tornou partidária. O PMDB é quem manda", disse à Folha Hiparidi Toptira, 33, liderança xavante.
Para analistas da questão, a transição do modelo de saúde indígena contribuiu. Desde 2004, a Funasa reassumiu o controle de funções do atendimento, como compra de remédios. Contratos com ONGs responsáveis pelo trabalho na ponta foram revistos -alguns por problemas nas prestações de contas- e outros substituídos por novos convênios.
"Houve um retrocesso [no processo de terceirização]. O atendimento foi repassado à Funasa deixando grande parte das conveniadas sem condições para trabalhar", diz Beto Ricardo, do ISA. O vice-presidente do Cimi, Saulo Feitosa, diz, porém, que o problema não foi frear a terceirização, mas a falta de condições do Estado para assumir o atendimento. Cobram concursos específicos de funcionários para tratar os índios.
O presidente da Funasa, Paulo Lustosa (PMDB), em entrevista ao ISA, defendeu o trabalho e contestou: "Não há e não houve loteamento", diz. Admite problemas com as indicações políticas, como no Maranhão, mas afirma que só nove dos 26 Dsei (Distritos Especiais de Saúde Indígena) tiveram as chefias trocadas desde que o PMDB assumiu o órgão.

FSP, 20/11/2006, Brasil, p. A10

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