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Brasil terá compromissos ambiciosos sobre o clima

FSP, Mundo, p. A16
Autor: SERRA, Sérgio Barbosa
08 de Jul de 2007

Brasil terá compromissos ambiciosos sobre o clima

Entrevista
Sérgio Serra

Recém-designado embaixador especial do país para mudança climática diz que é possível adotar meta interna de redução do desmate, com crivo internacional

O Brasil tem condições de adotar uma meta interna de redução de desmatamento na Amazônia, e poderá usá-la como parte de seu compromisso no acordo internacional contra o aquecimento global a ser adotado após 2012, em substituição ao Protocolo de Kyoto. Quem dá o recado é Sérgio Serra, 65, recém-designado pelo ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) como embaixador do Brasil para mudanças climáticas.

Claudio Angelo
Enviado Especial a Brasília

"Os nossos compromissos serão mais ambiciosos do que os que nós temos até agora. Você pode até definir como metas", afirma o embaixador, apressando-se em deixar claro que não gosta do termo. As declarações de Serra sinalizam que o Brasil está mudando seu discurso sobre o combate ao efeito estufa e cedendo a um dado de realidade: para que o mundo tenha alguma chance de se livrar dos cenários dantescos pintados pelo IPCC (o painel do clima das Nações Unidas) de aquecimento da Terra em 2100, todos os países terão de cortar emissões. A diplomacia brasileira tem resistido a aceitar cortes, escorada nos princípios que nortearam o Protocolo de Kyoto: os países ricos poluíram mais portanto, têm o ônus de resolver o problema, reduzindo o uso de combustíveis fósseis (com custo para suas economias). Os países pobres têm o direito de se desenvolver, portanto franquia para poluir. Por Kyoto, eles estão dispensados de metas. Brasil, China e Índia não arredam o pé dessa posição. Acontece que o grosso das emissões brasileiras (75%) não vem de atividades industriais que geram riqueza, como no caso da China. Vem de uma atividade que pouco ou nada contribui com o desenvolvimento do país: a destruição da Amazônia, em grande parte ilegal. No entanto, a ligação entre florestas e clima sempre foi assunto-tabu no Itamaraty. Afinal, admitir que o mau uso da terra no norte do Brasil tem alguma ligação com o maior dos problemas globais seria admitir também algum grau de ingerência internacional na maior floresta tropical do mundo. Adotar metas obrigatórias de redução de desmatamento, raciocina a chancelaria, seria perder a soberania sobre uma porção do território nacional. Essa resistência ainda existe. Mas, segundo uma fonte graduada da área ambiental, ela tem sido quebrada ao longo dos últimos dois anos. Em entrevista à Folha, Serra, um carioca de 65 anos que serviu na Nova Zelândia, diz que o Brasil está disposto a ter metas internas de redução do desmatamento que possam ter "accountability" [responsabilização] internacional. "Estamos dispostos a ter o crivo internacional quanto a isso." Diplomaticamente, o embaixador também alfineta a União Européia e comenta a aparente conversão do presidente dos EUA, George W. Bush, à causa climática. Leia a entrevista.

FOLHA - A União Européia, especialmente depois que os EUA se retiraram de Kyoto, tem assumido uma liderança na questão climática. O que eles esperam do Brasil?
SERRA - A UE anunciou metas que são aparentemente ambiciosas mas, que se você for ver no papel, não são tão ambiciosas assim. Se você fizer 20% a mais [de corte de emissão até 2020] não há muita diferença em relação ao que eles se comprometeram por Kyoto.

FOLHA - Não?
SERRA - O primeiro período de Kyoto estabelece 8% de corte de emissões até 2012 em relação a 1990 para a UE. O que eles se propõem além de 2012 não é um ritmo maior, é um prosseguimento desse processo. Mas foi anunciado como se fosse um grande avanço.

FOLHA - Mas mesmo considerando que vários países da UE tiveram crescimento em suas emissões?
SERRA - Mas outros tiveram queda. Aquelas economias que em 1990 ainda eram do Leste Europeu tiveram uma queda, porque aquelas indústrias poluentes fecharam. Enfim, o fato é que houve um dado novo antes da última reunião do G8 [o clube dos países mais ricos na Alemanha, no mês passado], que foi o anúncio dos EUA de que teriam um plano de diminuição de emissões, reconhecendo o problema. Acabou saindo uma declaração que eu pessoalmente não acho muito ruim, mas que é um pouco diluída, e não tão ambiciosa quanto pretendia a chanceler [alemã Angela] Merkel.

FOLHA - Essa declaração tem algum efeito sobre a negociação do regime substituto de Kyoto, que começará em Bali no fim deste ano?
SERRA - Há um dado novo aí que pode vir a ser positivo, que é o fato de os EUA estarem dispostos a algum tipo de ação. A decepção maior para nós, os cinco países convidados [Brasil, Índia, China, México e África do Sul], foi que a declaração foi negociada sem nós. Você é convidado e chega para a sobremesa. Isso, como forma, não é apropriado. A próxima reunião vai ser no Japão. E em princípio os cinco emergentes serão convidados. Há uma tendência a não se aceitar participar se não forem mudadas essas regras. Mas houve coisas positivas. Reconhece-se a prevalência das Nações Unidas. Não se ficou muito naquela idéia da Angela Merkel de limitar o aquecimento da Terra em 2100 a 2C .

FOLHA - O Brasil não concorda?
SERRA - Não é que concorde ou deixe de concordar. Achamos que não há base científica para que esse seja o parâmetro. E, depois, aparentemente até mesmo esses 2C seriam excessivos para a sobrevivência de vários países que são membros da comunidade internacional.

FOLHA - Mas o IPCC, o painel do clima da ONU, diz que essa é a estabilização factível.
SERRA - O IPCC não é assim tão categórico.

FOLHA - O Brasil então não trabalha com metas de estabilização de gases-estufa na atmosfera?
SERRA - Não chegamos a um número. Da nossa parte, nós estamos, principalmente depois do relatório do IPCC, conscientes da nossa responsabilidade. E vamos dar a nossa contribuição a esse processo. Agora, exatamente o que será a nossa contribuição ainda precisamos definir. Pergunta-se se o Brasil vai ter metas de redução de emissões. Metas, no sentido como a Convenção do Clima da ONU as define, as metas compulsórias, nós não aturaríamos.

FOLHA - Por quê?
SERRA - A convenção divide os países segundo o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas. Se os países em desenvolvimento adotarem cotas ou metas como as dos países desenvolvidos, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo acaba. Afinal, ele é feito para compensar os países desenvolvidos que invistam no desenvolvimento limpo de países em desenvolvimento, abatendo isso de suas metas.

FOLHA - Mas existem mecanismos do tipo funcionando entre países desenvolvidos. Quando se fala em metas para os países pobres, isso não quer dizer que eles precisem adotar metas tão rígidas quanto as dos países desenvolvidos.
SERRA - Sem dúvida. A convenção prevê que os países em desenvolvimento assumam compromissos. E eu acho que os nossos compromissos serão mais ambiciosos do que os que nós temos até agora. Você pode até definir como metas. O problema é que a palavra meta tem uma conotação muito particular nessa negociação. Como você sabe, 75% das nossas emissões vêm do desmatamento. O desmatamento, por causa de uma série de medidas, caiu 52% nos últimos três anos. Nós podemos ir além disso. Não é fácil, porque sabemos que o desmatamento na Amazônia obedece a uma série de variáveis. Será um esforço danado combatê-lo. Mas já se fez muito, no combate à grilagem, na criação de unidades de conservação. E temos um dos sistemas mais sofisticados do mundo de monitoramento do desmatamento. E eu acho que podemos assumir compromissos conosco mesmos, voluntários, mas que possam ser apresentados à comunidade internacional, de uma queda no desmatamento.

FOLHA - O sr. acha então que o Brasil tem condições de assumir metas de redução de desmatamento?
SERRA - Metas internas. Eu não gosto da palavra "metas". Eu acho que são políticas que levem a uma redução maior ainda do desmatamento.

FOLHA - Mas que possam ter uma "accountability" [dever de prestar contas] internacional?
SERRA - Sim, sim, sem dúvida! Que possam ter uma "accountability" internacional que ainda está por definir, mas estamos dispostos a ter o crivo internacional quanto a isso.

FOLHA - O Itamaraty tem sido criticado por jogar muito na defensiva e pelo discurso de que não aceita metas obrigatórias por não querer abrir mão do desenvolvimento. A chancelaria está mudando sua visão?
SERRA - Há um entendimento errôneo do que seja a nossa posição. Não sei em que momento houve esse curto-circuito com a imagem que nós projetamos. Não é bem o Itamaraty, é o governo brasileiro. Essa questão de não-aceitação de metas, como definidas por Kyoto, não são entendidas como uma postura defensiva. O Brasil tem uma posição muito moderadora, em relação a países que são muito mais radicais que nós, como China e Índia.

FOLHA - A China deu mostras de que está revendo suas posições...
SERRA - A China está anunciando aos poucos um programa que parece ambicioso de combate às suas emissões. Mas o problema da China é muito mais complicado que o nosso. A China, sim, pode dizer que a adoção de metas puras e simples é um grande limitador do crescimento econômico.

FOLHA - Mas essa questão da economia corta dos dois lados, não? Há um risco cada vez mais real de perda de mercados para quem não dançar conforme a música da redução das emissões de gás carbônico.
SERRA - A questão do desmatamento, para nós, não é só uma questão de emissões. Nós precisamos conter o desmatamento da Amazônia não só porque isso melhora nossa imagem na questão do clima, mas porque o IPCC mostra que a Amazônia será uma vítima da mudança do clima, mais do que causadora. Um dos cenários do IPCC mostra que 20% da Amazônia pode se savanizar, e isso causará uma reação em cadeia. O sistema de chuvas desta área aqui, o cerrado, depende das chuvas da Amazônia. Se ela passa a ter um clima parecido com este, isto aqui vira uma caatinga.

FOLHA - Qual é a avaliação brasileira da aparente mudança de discurso do governo americano?
SERRA - O discurso anterior era de negação. Hoje há um reconhecimento do problema, após os relatórios do IPCC. Ao mesmo tempo, você tem uma eleição nos EUA daqui a pouco; a pressão está aumentando. É preciso pagar para ver. Eles anunciaram uma reunião entre alguns países mas, até a véspera da reunião do G8, não havia nenhuma menção ao processo das Nações Unidas.

FOLHA - O Brasil participará dessa reunião?
SERRA - Não sei. Se formos convidados, poderíamos participar, sabendo que aquele não é o fórum e declarando que aquele não é o fórum.

FOLHA - A secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Thelma Krug, deu uma entrevista falando que o Brasil mais cedo ou mais tarde precisaria discutir a opção nuclear. O sr. concorda?
SERRA - Eu não gostaria de entrar nesse debate. Mas estou vendo que ele existe. Como embaixador extraordinário para mudança do clima, eu posso dizer que a energia nuclear não emite CO2. Na posição em que eu estou, mais preocupante -o que não é um cenário absurdo- é que a nossa matriz energética limpa passe a não ser tão limpa se houver uma proliferação de usinas a carvão.

Para Lula, questão é "estratégica"
Da Redação

A criação do cargo de embaixador extraordinário para mudança do clima é apenas uma das iniciativas do governo para atacar uma questão considerada "estratégica" pelo presidente Lula. Também neste ano, o Ministério do Meio Ambiente criou uma secretaria para o tema, e o Ministério da Ciência e Tecnologia monta uma rede de pesquisas climáticas.

Lula criou, no Planalto, um grupo especial de discussão do assunto. O comitê tem concluído que o Brasil precisa se afastar, sem ruptura, da posição da China e da Índia, contrárias a metas, nas negociações internacionais. (CA)

FSP, 08/07/2007, Mundo, p. A16

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