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Brasil indígena: o direito de pertencer

O Globo - https://oglobo.globo.com/
Autor: HAJJAR, Ludhmila
11 de Abr de 2025

Brasil indígena: o direito de pertencer
Povos originários devem ter acesso a educação, saúde, infraestrutura, saneamento e conectividade digital

11/04/2025

Ludhmila Hajjar
Médica cardiologista brasileira e professora de cardiologia associada na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)

Recentemente, estive na Aldeia São João, da etnia Javaé, na Ilha do Bananal (TO), acompanhada por colegas médicos em uma missão promovida pelo Conselho Nacional de Justiça. Fomos para cuidar, mas saímos transformados. O contato direto com os povos indígenas revela, com crueza, uma ferida aberta: os povos originários do Brasil ainda são tratados como se estivessem à margem da sociedade, quando deveriam ocupar um lugar central na construção do país que sonhamos.

O Brasil não pode mais tolerar a exclusão silenciosa que atinge os indígenas. Eles são parte essencial da nação. Negar-lhes acesso integral às políticas públicas é perpetuar um apartheid social inaceitável. Educação, saúde, infraestrutura, saneamento, conectividade digital e oportunidades econômicas devem chegar às aldeias com a mesma força e urgência presente nos centros urbanos.

Na aldeia, vi crianças adoecidas, mães aflitas, idosos sem acesso regular a medicamentos. Mas vi também a dignidade, a resistência cultural e a sabedoria ancestral de um povo que, apesar de tudo, ainda confia na nossa capacidade de fazer diferente. O sistema de saúde indígena, gerido pela SESAI, ainda sofre com descontinuidade, falta de profissionais, logística precária e ausência de integração com a rede pública local. A mortalidade infantil indígena continua superior à média nacional. O acesso ao pré-natal é irregular. O transporte de pacientes é um desafio logístico.

A estrutura atual da assistência muitas vezes trata os indígenas como beneficiários episódicos do Estado, e não como cidadãos de pleno direito. É urgente adotar um modelo de atenção contínua, integrado ao SUS, com investimentos consistentes, formação de profissionais indígenas e políticas públicas com participação ativa das comunidades.

A realidade vivida nas aldeias deveria causar indignação nacional. Mas o que vemos é um silêncio institucional e social que naturaliza desigualdades brutais. Os povos indígenas continuam sendo tratados como se fossem invisíveis - ou, pior, como entraves ao desenvolvimento. Essa inversão moral precisa ser enfrentada.

A inclusão plena dos povos indígenas não é uma concessão: é um compromisso civilizatório. Eles não querem ser assimilados; querem ser respeitados.

É hora de investir em conectividade, telemedicina com estrutura técnica, educação bilíngue de qualidade, acesso a universidades e formação de lideranças indígenas. A política pública precisa deixar de ser paliativa e emergencial para se tornar estruturante e permanente. E isso começa com vontade política, orçamento dedicado, e reconhecimento do protagonismo indígena na definição das soluções. Com meu pensamento de quem cuida de vidas, desejo que haja um hospital bem estruturado para cada grupo de 30 mil indígenas, não basta a atenção primária. Atendi indígenas com tumores, doenças cardíacas e patologias cirúrgicas. Eles não podem ficar à margem.

Isso não significa desrespeitar tradições. Ao contrário: é possível e necessário unir ciência e ancestralidade. A valorização da cultura indígena deve caminhar junto com o acesso a exames, procedimentos invasivos, tratamento medicamentoso, partos seguros, vacinação, água potável e educação de qualidade.

O Brasil deve fazer um pacto com seus povos originários. Um pacto baseado em respeito, escuta e investimento. A Constituição de 1988 reconheceu os direitos indígenas - é hora de efetivá-los, com políticas públicas robustas, sustentáveis e permanentes.

Enquanto uma criança Javaé não tiver o mesmo acesso à saúde de uma criança da zona sul de São Paulo, nossa democracia estará incompleta. Enquanto uma mulher indígena não puder parir com dignidade, nossa Constituição estará sendo ignorada.

Os povos indígenas não pertencem ao passado. Eles são parte do nosso futuro. Um futuro em que todos, sem exceção, possam viver com dignidade, respeito e oportunidade.

https://oglobo.globo.com/blogs/receita-de-medico/post/2025/04/brasil-in…

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