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Brasil é crucial para o 'Green Deal', diz comissário da UE

Valor Econômico - https://valor.globo.com/mundo/noticia
Autor: Virginijus Sinkevicius; CHIARETTI, Daniela
04 de Mai de 2022

Brasil é crucial para o 'Green Deal', diz comissário da UE
Comissário do Meio Ambiente europeu ressaltou, porém, que o país precisa conter o desmatamento, honrar compromissos e, no caso da mineração, que os projetos sejam legais e respeitem os direitos dos povos indígenas

Por Daniela Chiaretti
De São Paulo 02/05/2022

"Espero liderança". Claro e direto, Virginijus Sinkevicius, comissário europeu de Meio Ambiente, Oceanos e Pesca, expressa o que espera do Brasil nas negociações internacionais de proteção da biodiversidade. Depois, sobre o impasse do acordo de comércio UE-Mercosul, travado pela política ambiental do governo Bolsonaro e os altos índices de desmatamento da Amazônia, responde: "O que disse e repito é que estou pronto para dialogar com o governo brasileiro e encontrar um resultado satisfatório para o acordo UE-Mercosul."
O político lituano de 31 anos, que ocupa um dos mais altos cargos ambientais da Comissão Europeia, o braço executivo da União Europeia, esteve no Brasil na semana passada. Começou a viagem pela Amazônia, circulou por ministérios e conversou com parlamentares, entidades de classe e cientistas em Brasília. Concluiu a visita em São Paulo antes de seguir para a Argentina e o Uruguai. "A floresta amazônica tem, é claro, enorme impacto no clima do planeta e na biodiversidade e é de interesse comum que seja salva", diz. "Neste momento, os números são muito alarmantes. Em 2021 houve recorde de desmatamento e parece que 2022 pode ser ainda pior".
Em sua primeira visita ao Brasil explicou os próximos passos da "due dilligence", a legislação europeia que irá impedir que produtos relacionados a desmatamento de florestas e ecossistemas no mundo sejam importados. Haverá um período de transição - talvez de três a cinco anos. "Não queremos que nosso consumo leve ao desmatamento", resume.
Embora relutante em comentar os controversos projetos socioambientais que tramitam no Congresso, Sinkevicius disse esperar que "se o Brasil deseja estar entre os líderes que darão o formato das agendas de clima e biodiversidade -tendo compromissos muito importantes e ganhando o respeito e a confiança da comunidade internacional- não coloque tudo em risco com legislações que, se adotadas, poderiam representar um recuo nestes compromissos."
A poluição é uma outra grande consequência da guerra na Ucrânia. Tudo vaza para o ambiente e dentro dos rios"
No Ministério das Minas e Energia, Sinkevicius discutiu mineração. O Brasil tem a segunda reserva global dos minerais conhecidos por terras-raras, fundamentais em produtos-chave da descarbonização europeia como carros elétricos e placas fotovoltaicas. "Muitos minerais encontrados nos ricos ecossistemas do Brasil podem ter papel crucial para implementarmos o Green Deal Europeu", diz. "Mas é importante para nós saber que as atividades de mineração serão feitas só depois de uma avaliação ambiental dos impactos, que sejam legais e respeitem completamente os direitos dos povos indígenas".
O comissário europeu falou ao Valor no Consulado da Lituânia em São Paulo. A seguir, trechos da entrevista:
Valor: Qual a ideia de sua viagem ao Brasil e o que achou dela?
Virginijus Sinkevicius: Um dos objetivos era ver o assunto e a floresta com meus próprios olhos, encontrar representantes de ongs e lideranças indígenas. Isso ajuda a expandir o conhecimento. Também quis ouvir as histórias do que está acontecendo na Amazônia. Encontramos com membros do governo que foram francos em compartilhar suas visões. Falamos do compromisso brasileiro de parar o desmatamento ilegal em 2028 e acabar com todo desmatamento em 2030, assumido no Brasil na COP 26 [em Glasgow, em novembro]. Minha mensagem foi de como podemos unir forças para garantir que esses compromissos sejam alcançados. A Amazônia tem enorme impacto no clima do planeta e na biodiversidade e é de interesse comum que seja salva.
Valor: A taxa de desmatamento no Brasil está muito alta. Há poucos dias saiu um relatório mostrando que o Brasil lidera o ranking mundial de perda de florestas primárias no mundo em 2021. Como vê isso?
Sinkevicius: Os números são muito alarmantes. Em 2021 houve recorde de desmatamento e parece que 2022 pode ser ainda pior. Precisamos encontrar ferramentas efetivas para combater o desmatamento. Discuti isso com o ministro Joaquim Leite [do Meio Ambiente]. Como trabalhar em ferramentas efetivas para, de um lado salvar a floresta e, de outro, garantir o bem-estar das pessoas que vivem lá, os direitos dos povos indígenas e reduzir a pobreza da região.
Valor: Como foi a conversa com o ministro Leite?
Sinkevicius: Foi um diálogo positivo. Discutimos desmatamento, economia circular, oceanos, políticas públicas e metas para eventos internacionais como a COP-15, da conferência de biodiversidade, que será crucial e onde o Brasil pode jogar um papel muito importante. Sinto que o Brasil permanece comprometido em combater o desmatamento ilegal até 2028 e em 2030 terminar totalmente com o desmatamento e por isso temos que ajudar. O ministro apresentou algumas iniciativas como o Floresta+ e, do nosso lado, falamos sobre como implementar a colaboração e garantir que nosso consumo não leve ao desmatamento. E que não haverá mercado para produtos associados a ele.
Não há tecnologia que substitua o que os oceanos fazem para capturar carbono nem a Amazônia"
Valor: Como está a "due dilligence", a legislação que impede importar produtos ligados ao desmate?
Sinkevicius: A política da UE sobre desmatamento não é para a Amazônia, mas para todas as florestas e ecossistemas do mundo. A legislação será aplicável a todos os produtos associados a altos níveis de desmatamento. Temos inicialmente seis grupos de produtos que, de acordo com nossa avaliação, têm maior impacto no desmatamento: soja, carne, cacau, café, madeira e óleo de palma. Poderão ser vendidos no mercado europeu só depois de provar de que não são associados a áreas onde o desmatamento aconteceu. Nossa data de corte é 31 de dezembro de 2021. Teremos um período de transição no qual iremos engajar com países parceiros como o Brasil e que pode ser de três ou cinco anos. Creio que será um instrumento eficiente para assegurar que a UE não está só falando sobre desmatamento mas tomando ações efetivas.
Valor: Quando o senhor acredita que irá entrar em operação?
Sinkevicius: Ainda temos uma fase de procedimentos internos e creio que leve pelo menos seis meses. Depois teremos que concordar com o período de transição que, eu diria, levaria entre três a cinco anos. Mas garanto aos nossos parceiros no Brasil que haverá tempo suficiente para ajustes de transição e preparar os dados que serão exigidos, garantir que estes dados tenham comprovação geolocalizada e que sejam confiáveis.
Valor: O que o senhor pensa sobre os projetos socioambientais em tramitação no Congresso como o de mineração em terras indígenas?
Sinkevicius: Não cabe a mim avaliar projetos de lei brasileiros. Acredito que em países como o Brasil, onde o meio ambiente é defendido também na Constituição, processos de decisão têm seu caminho. Espero verdadeiramente que, se o Brasil deseja estar entre os líderes que darão o formato das agendas de clima e biodiversidade -tendo compromissos muito importantes e ganhando o respeito e a confiança da comunidade internacional- não coloque isso tudo em risco com legislações que, se adotadas, poderiam representar um recuo nestes compromissos.
Valor: Com altas taxas de desmatamento e pressão de consumidores e supermercados, pode ocorrer boicote a produtos brasileiros?
Sinkevicius: Não escutei ninguém falando de boicote. O que temos que garantir é que os consumidores tenham toda informação possível sobre os produtos que estão comprando. Esta é a legislação que estamos propondo à União Europeia, que cada produto tenha seu 'passaporte digital' e ali você sabe qual é a origem do produto, que impacto tem na natureza etc. O consumidor, de posse de toda informação, pode fazer sua escolha. Temos que aprofundar nossas relações comerciais e não aprofundar o desmatamento. Entre 2005 e 2012 o Brasil viveu um período com taxas de desmatamento em declínio, a agricultura expandia e o PIB estava em ascensão. São lições do passado que podem nos ajudar a desenvolver um futuro sustentável e que podem construir um comércio sustentável.
Valor: O senhor é lituano. Acredita que a guerra pode se espalhar na Europa e durar muito tempo?
Sinkevicius: A cada dia vemos inocentes morrendo na Ucrânia, cidades sendo destruídas e não estamos vendo sinais de que as ações militares russas irão parar. É uma situação trágica e que, infelizmente, está continuando. Talvez haja uma maneira diplomática de resolver isso, mas neste momento a Rússia não parece pronta a sentar à mesa e dialogar. Primeiro você cessa fogo, depois senta para conversar e não é o que está acontecendo. As ações militares estão continuando. É uma grande tragédia para a região.
Valor: Há um quadro confuso no setor de energia. Quais impactos vislumbra na proteção do clima?
Sinkevicius: A poluição é uma outra grande consequência da guerra. Os militares russos invadem indústrias químicas, refinarias de petróleo, gasodutos, instalações de tratamento de água. Tudo isso vaza ao ambiente e dentro de rios. Poluição não respeita fronteiras. Vemos também ações perigosas próximas a centrais nucleares, o que pode ter efeitos ainda mais dramáticos. O cinismo russo não tem limite. Temos que ser muito vigilantes e esperar que qualquer coisa pode acontecer. As políticas climáticas não estão neste momento no topo dos temas da mídia, mas a ação na Europa, espera-se, pode ocorrer até mais rápido especialmente em energia.
Valor: O que o senhor quer dizer?
Sinkevicius: Uma das razões para a transição energética vagarosa foi o gás. É visto como um combustível de transição embora ainda seja um combustível fóssil com impacto no clima. Agora há vários países com os olhos abertos, que sabem que não se pode confiar em autocracias, não se pode confiar em regimes não-democráticos e depender deles. A maneira que escolhemos desde o início com o 'European Green Deal', em que nos baseamos muito mais em energias renováveis, é o caminho correto. Este é um momento que acelera nossas ações e garante que nos tornemos independentes em relação à energia tanto quanto possível.
Valor: Qual o sentido político da sua viagem ao Brasil a cinco meses das eleições?
Sinkevicius: Tenho um grande respeito por processos democráticos e desejo aos brasileiros que façam a melhor escolha. Minha visita é ligada à COP 15, da biodiversidade, negociações em curso também no acordo de plásticos e na proteção dos mares além da jurisdição nacional. É parte do nosso trabalho visitar nossos parceiros, apresentar a lógica da nossa legislação de não comprar produtos relacionados com desmatamento e como aprofundar a cooperação. Eu me reuni com pessoas que lidam com o portfólio ambiental no Brasil.
Valor: Sobre a COP 15: as negociações em Genebra, em março, mostraram o quanto há de impasses. O senhor acha que a conferência irá ocorrer na China com os casos de covid-19 no país?
Sinkevicius: Adoraria ter uma resposta a esta pergunta. Respeito plenamente a política de covid-zero da China. Claro que é o governo chinês quem deve decidir, mas não podemos seguir adiando um evento internacional tão importante. A China tem que dar uma resposta - se está pronta a hospedar a COP ou poderíamos olhar outros lugares para que aconteça? Talvez no Canadá, onde fica o secretariado da CDB, possa ser uma solução. Não podemos seguir adiando o evento.
Valor: Quais suas expectativas?
Sinkevicius: Minha expectativa é de termos um ambicioso marco global de biodiversidade para 2030. Já perdemos tempo. Deveríamos estar implementando o acordo e não temos nada ainda. O centro do marco deve ser as metas de 30%, ou seja, proteger 30% das nossas terras e oceanos. Temos também que ter objetivos de restauração: não basta mais proteger, temos que recuperar. E também preencher a lacuna de financiamento, que é muito importante para os países em desenvolvimento. O que aconteceu na pré-negociação em Genebra é pouco concreto, sem ambição. Precisamos de um momento como o de Paris foi para o clima, para a biodiversidade.
Valor: O Marco Global da Biodiversidade parece mais difícil até do que o Acordo de Paris.
Sinkevicius: Provavelmente. Na agenda do clima se criou um grande impulso com os jovens que saíram às ruas. Não temos este impulso para a biodiversidade. Mas não podemos resolver a crise do clima se continuarmos com a degradação dos ecossistemas. Não há tecnologia que possa substituir o que os oceanos fazem com a captura de carbono, não há tecnologia que substitua a floresta amazônica. Em nosso Green Deal, a biodiversidade é um componente-chave. Muito da economia brasileira depende dos serviços ecossistêmicos. Vocês têm ecossistemas lindos, ricos, únicos e que permitem ter produtos que podem ser usados no setor de alimentos, de cosméticos, na indústria farmacêutica. A natureza traz benefícios e lucros, mas não damos valor nem reconhecemos.
Valor: O que espera do Brasil?
Sinkevicius: Espero liderança. O Brasil tem uma situação única, com ecossistemas únicos, vasta biodiversidade. Espero que se coloque em posição dianteira e ajude a construir um ambicioso Marco Global da Biodiversidade.
Valor: Países em desenvolvimento e megadiversos pediram dinheiro para a biodiversidade. O senhor acha que isso pode acontecer?
Sinkevicius: Completar esta lacuna financeira pode ser um grande desafio, mas a UE está pronta a liderar pelo exemplo. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou que nossos fundos para a biodiversidade irão dobrar e serão €7 bilhões. Esperamos que outros países desenvolvidos nos acompanhem e aumentem o apoio.
Valor: O Brasil prepara um mercado de créditos de carbono. Pode ajudar a mitigar emissões?
Sinkevicius: As intenções são boas, mas se irá ajudar ou não só é possível saber quando puder ser visto e implementado.
Valor: As taxas de desmatamento são um dos fatores que travam o acordo UE-Mercosul. Muitos parlamentos europeus e governos não enxergam movimentos ambientais positivos no governo Bolsonaro. Há chance de o acordo destravar?
Sinkevicius: Disse a ministros no Brasil que estamos prontos a aprofundar nossa parceria estratégica. Claro que há temas importantes para nós. O European Green Deal é a nossa estratégia de crescimento até 2050 e será refletida em todas as políticas principais da Comissão, dos países-membros e é o que nossos cidadãos querem. O Brasil provou que pode reduzir e combater com sucesso o desmatamento aumentando o crescimento econômico. O que disse, e repito, é que estou pronto para dialogar com o governo brasileiro para encontrar um resultado satisfatório para o acordo UE-Mercosul.
Valor: O que se discutiu no Ministério da Energia?
Sinkevicius: Falamos sobre o mix energético do Brasil, desafios e oportunidades. Colocamos foco em hidrogênio verde, que é ainda uma discussão preliminar, mas é uma oportunidade para aprofundar nossa cooperação.
Valor: E sobre mineração?
Sinkevicius: Mineração é tema muito importante. Muitos minerais encontrados nos ricos ecossistemas do Brasil podem ter papel crucial para implementarmos o Green Deal europeu. Mas é fundamental para nós que as atividades de mineração sejam feitas apenas depois de uma avaliação ambiental dos impactos, que sejam legais e que respeitem completamente os direitos dos povos indígenas. Só então as atividades de mineração sustentável podem ocorrer.
Valor: Qual a tendência de descarbonização na Europa com a guerra na Ucrânia?
Sinkevicius: Vai acelerar. Precisamos nos livrar dos combustíveis fósseis russos assim que possível. O plano de repotenciação europeu é ambicioso e a meta é de termos um declínio das importações de gás russo no fim do ano. Mas ainda vamos precisar de energia. Um jeito de fazer isso é acelerar nossos projetos de renováveis. No caso do gás não se pode mudar para renováveis do dia para a noite, mas pode-se diversificar fornecedores.
Valor: Como o acordo de plásticos irá avançar?
Sinkevicius: A assembleia ambiental Unea 5 foi um sucesso porque conseguimos um mandato de negociação para termos um acordo global para reduzir a poluição plástica. Temos que finalizar isso em dois anos e conseguir um acordo legalmente vinculante. Não será fácil mas há possibilidades. O mais importante foi que todos os países apoiaram. Está claro que a poluição plástica afeta o mundo todo e pressiona enormemente nossos oceanos. Há necessidade urgente de achar uma solução e a sociedade global está apoiando. Temos que encontrar soluções para os produtos, principalmente aqueles de vida curta, que usamos por alguns minutos mas levam centenas de anos para degradar.

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