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Brasil: direitos indígenas sob grave ameaça

Human Rights Watch - https://www.hrw.org/pt/news/
09 de Ago de 2022

Brasil: direitos indígenas sob grave ameaça
Governo enfraquece agência encarregada de proteger os povos indígenas

9 agosto, 2022

(São Paulo) - O governo brasileiro adotou políticas que ameaçam seriamente os direitos dos povos indígenas, disse a Human Rights Watch hoje, no Dia Internacional dos Povos Indígenas do Mundo.

O governo do presidente Jair Bolsonaro enfraqueceu a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão público encarregado de proteger esses direitos; emitiu normativas prejudiciais aos povos indígenas; e suspendeu a demarcação de suas terras tradicionais. O governo também enfraqueceu os órgãos federais de proteção ambiental, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), deixando as terras indígenas ainda mais vulneráveis à invasão.

"O governo brasileiro transformou a agência encarregada de promover e proteger os direitos indígenas em uma agência que colocou esses direitos em risco", disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. "As declarações e as políticas anti-direitos indígenas do governo têm encorajado garimpeiros, madeireiros, grileiros e caçadores a invadir terras indígenas com impunidade, levando a consequências devastadoras para os povos indígenas e o meio ambiente".

Durante sua campanha eleitoral em 2018, Bolsonaro criticou a FUNAI por proteger os direitos indígenas e prometeu "dar uma foiçada" no órgão. Uma vez no cargo, ele cumpriu essa promessa, disse a Human Rights Watch.

Marcelo Xavier, nomeado pelo presidente Bolsonaro para presidir a FUNAI em julho de 2019, afastou servidores públicos experientes de cargos diretivos. Ele pediu à polícia que instaurasse investigações criminais contra servidores, lideranças indígenas e até membros do Ministério Público por defenderem os direitos indígenas; prejudicou os esforços para proteger as terras indígenas; e adotou políticas que facilitaram invasões.

Xavier não retornou um pedido de resposta enviado ao seu gabinete pela Human Rights Watch.

Apenas dois dos 39 coordenadores regionais - encarregados de proteger os direitos dos povos indígenas em sua região - são servidores de carreira que atuam como chefes titulares, de acordo com um relatório conjunto das organizações não governamentais Indigenistas Associados (INA), formada por servidores da FUNAI, e Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Outras dez coordenações regionais são lideradas por servidores na condição de substitutos, por ausência de coordenadores titulares.

As demais coordenações regionais foram chefiadas por pessoas de fora da FUNAI, incluindo 21 militares ou policiais ativos ou da reserva com pouca ou nenhuma experiência em questões indígenas. O próprio Xavier é um delegado da polícia federal. Uma reportagem recente publicou uma lista de candidatos a cargos diretivos supostamente produzida pela diretoria de administração e gestão da FUNAI que indicava se eram a favor ou contra o governo. O artigo dizia que a lista foi usada para decidir sobre as nomeações.

Três servidores da FUNAI e um procurador da República disseram à Human Rights Watch que Xavier criou um clima de medo e intimidação no órgão.

Em um comunicado público, o Ministério Público Federal (MPF) disse que Xavier, em um relatório, acusou diversos servidores da FUNAI e integrantes de uma associação indígena de terem cometido crimes "mesmo sabendo que eram inocentes". Segundo os procuradores, ele fez isso "como instrumento de pressão política" no processo de licenciamento de uma linha de energia elétrica em um território indígena. Xavier enviou esse relatório à polícia federal, pedindo a abertura de inquérito policial, e à agência de inteligência do Brasil, ABIN, disse o Ministério Público Federal. Depois que um procurador pediu o arquivamento do caso, Xavier solicitou que o procurador fosse submetido a uma investigação criminal. Em julho de 2022, o Ministério Público Federal apresentou uma denúncia contra Xavier pelo crime de denunciação caluniosa. Xavier não respondeu publicamente às acusações do MPF.

Ubiratan Cazetta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), disse à Human Rights Watch que em várias ocasiões Xavier pediu à polícia federal que investigasse procuradores que defendiam os direitos indígenas e pediu à Corregedoria do Ministério Público Federal que conduzisse processos disciplinares. "Foi para constranger", disse Cazetta.

Xavier também pediu à polícia federal que investigasse a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), principal coalizão de organizações indígenas do país, após ela criticar o governo. Além disso, pediu uma investigação de uma liderança do povo paiter suruí e o "monitoramento" pela agência de inteligência de atividades desenvolvidas por esse povo indígena.

A INA, associação de servidores da FUNAI, afirma que a direção do órgão transferiu servidores quando seus relatórios apoiaram reivindicações indígenas e, em alguns casos, pediu à corregedoria do órgão que investigasse suas condutas. Em um caso, Xavier determinou que um servidor fosse denunciado à corregedoria e à polícia federal após o servidor escrever um relatório técnico, solicitado pela procuradoria do órgão, que recomendava que a FUNAI contestasse uma sentença judicial que anulava a identificação de uma terra indígena, disse a INA. Xavier não respondeu publicamente às alegações, disse a associação.

A direção da FUNAI também introduziu obstáculos burocráticos que dificultam severamente o trabalho de proteção, vários servidores disseram à Human Rights Watch. Os servidores devem solicitar autorização para viajar para uma terra indígena com 15 dias de antecedência, tornando virtualmente impossível responder a emergências. O órgão rotineiramente nega autorização para viagens a terras indígenas que estão em processo de demarcação, disse uma servidora.

A realização de estudos que levem à demarcação de terra indígena é uma das principais atribuições da FUNAI. De acordo com a legislação brasileira, a demarcação estabelece claramente as áreas que pertencem aos povos indígenas, conferindo-lhes segurança jurídica sobre o direito coletivo em relação aos territórios. Esse reconhecimento é extremamente importante para sua sobrevivência cultural e física, disse a procuradora Eliana Torelly à Human Rights Watch.

A demarcação está pendente para 241 terras indígenas. Durante a campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro prometeu não demarcar "mais um centímetro" de terra indígena. Como presidente, cumpriu essa promessa. A direção da FUNAI interrompeu na prática todos os processos para identificar e demarcar territórios indígenas, disseram servidores à Human Rights Watch.

Além disso, o governo Bolsonaro procurou enfraquecer a proteção legal dos direitos indígenas, promovendo um projeto de lei que impediria muitos povos indígenas de reivindicarem suas terras tradicionais. O projeto de lei exigiria que provassem que estavam fisicamente presentes no local em 5 de outubro de 1988, dia em que a Constituição do Brasil foi promulgada. Um julgamento sobre este assunto, conhecido como a tese do marco temporal, está pendente no Supremo Tribunal Federal.

O governo também enfraqueceu a proteção de territórios indígenas em processo de demarcação.

Uma instrução normativa emitida pela FUNAI em 2020 permite que indivíduos registrem terras que afirmam possuir dentro de áreas indígenas não homologadas, o último passo no processo de demarcação. Esse registro pode comprometer o reconhecimento dos direitos indígenas e alimentar disputas de terra e invasões. Os tribunais suspenderam a instrução em pelo menos 13 estados. No entanto, uma investigação da imprensa mostrou que fazendeiros registraram em seu nome 239.000 hectares dentro de áreas indígenas nos últimos dois anos.

Em 2021, a FUNAI emitiu dois atos administrativos que barraram atividades de proteção territorial de servidores em terras indígenas não homologadas. Em fevereiro, o Supremo Tribunal Federal suspendeu esses atos. O ministro Luis Roberto Barroso concluiu que eles podem constituir um convite à invasão de áreas sabidamente cobiçadas por grileiros e madeireiros".

A direção da FUNAI praticamente rompeu os laços com outras agências e organizações da sociedade civil com as quais havia cooperado para proteger as terras indígenas em governos anteriores. Torelly, procuradora federal, disse que a relação entre a FUNAI e a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da Procuradoria-Geral da República, que ela coordena, piorou a ponto de atualmente "ser quase inexistente".

Um policial federal que pediu para não ser identificado disse à Human Rights Watch que não envolve mais a FUNAI em operações para combater crimes ambientais por medo de vazamento das informações e de que os criminosos sejam alertados. O agente citou o caso de um coordenador regional da FUNAI, militar da reserva, que o Ministério Público Federal acusou de facilitar a criação ilegal de gado dentro de uma terra indígena no Mato Grosso, entre outros crimes. Em nota pública, a FUNAI disse que o arrendamento de terras indígenas é ilegal e que o coordenador seria afastado do cargo.

Líderes indígenas disseram à Human Rights Watch que a paralisação na FUNAI fortaleceu grupos criminosos envolvidos na destruição ambiental.

Em todo o Brasil, a grilagem em terras indígenas e exploração ilegal de recursos, como a extração ilegal de madeira, garimpo e caça e pesca ilegal ,aumentaram 137% em 2020, em comparação com 2018, ano anterior à posse do presidente Bolsonaro, de acordo com os dados mais recentes do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), uma organização sem fins lucrativos. A área total desmatada em territórios indígenas na Amazônia durante os três primeiros anos de mandato do presidente Bolsonaro foi 138% maior do que nos três anos anteriores (2016-2018), segundo o Instituto Socioambiental (ISA).

Junto com a destruição ambiental veio a violência. Indígenas do Vale do Javari, que tem a maior concentração de indígenas vivendo em isolamento voluntário do mundo, colaboraram com a FUNAI na proteção da floresta até 2019, disse à Human Rights Watch Beto Marubo, um dos líderes da UNIVAJA, associação local de povos indígenas. Devido ao enfraquecimento da FUNAI, eles se sentiram obrigados a começar a patrulhar a floresta por conta própria, disse ele.

Em 2019, um servidor da FUNAI, Maxciel Pereira dos Santos, foi executado em Tabatinga. Sua morte continua impune. Bruno Pereira, que estava de licença da FUNAI, foi morto em 2022, junto com o jornalista Dom Phillips. Pereira foi coordenador de índios isolados da FUNAI, mas foi afastado depois de liderar uma operação bem-sucedida contra a mineração ilegal no Vale do Javari em 2019. O Ministério Público Federal denunciou três homens supostamente envolvidos em pesca ilegal pelos assassinatos de Bruno Pereira e Phillips.

Outros servidores da FUNAI disseram à Human Rights Watch que temem por suas vidas e não se sentem apoiados pelada presidência do órgão. "Há uma chance real de que o que aconteceu com Bruno e Maxciel aconteça comigo", disse um agente.

"Com o início da campanha eleitoral, os candidatos deveriam dizer aos eleitores como vão garantir que a FUNAI volte a cumprir sua missão, como vão proteger os direitos indígenas e como vão desmantelar os grupos criminosos que estão destruindo as riquezas ambientais do Brasil e ameaçando e atacando os defensores da floresta", disse Canineu.

https://www.hrw.org/pt/news/2022/08/09/brazil-indigenous-rights-under-s…

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