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Brasil abriga 200 mil clandestinos

OESP, Nacional, p. A8
18 de Dez de 2006

Brasil abriga 200 mil clandestinos
Perseguidos ou miseráveis, refugiados entram principalmente pela Amazônia e desistem da regularização

Liège Albuquerque

As estatísticas apontam que há 3,6 mil refugiados no País, porém mais de 200 mil imigrantes vivem aqui como clandestinos, segundo o Comitê Nacional para Refugiados (Conare). Esse número tem crescido nos últimos anos, segundo números de entidades da Igreja Católica.

Perseguidos por razões políticas, religiosas ou simplesmente pela miséria, eles vêm para o Brasil atrás do que chamam de reassentamento. De saída, esbarram na burocracia para obter regularização, que pode demorar de três a seis meses, que eles têm de vencer sem ajuda financeira.

A Amazônia - em especial os Estados do Amazonas, Acre e de Roraima - são os maiores corredores para a entrada de imigrantes ou refugiados, em grande parte colombianos, que fogem para o Brasil tocados pelos conflitos de uma interminável guerra que envolve paramilitares e o narcotráfico. Mas há também peruanos, bolivianos, venezuelanos e até filipinos.

'Eles entram pela Amazônia, mas a maioria não quer ficar na região: sonha com Brasília, Rio, São Paulo, pois quer ficar o mais longe possível da fronteira e do que está fugindo', diz a irmã Esther Ostrowski, que trabalha há 12 anos na Pastoral do Imigrante no Acre, que hoje acolhe 20 refugiados em processo de regularização. 'O Brasil não têm políticas públicas que acolham os estrangeiros em necessidade no Brasil. Não há política, não há verbas, só boa vontade de voluntários.'

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) começou em novembro uma campanha nas fronteiras amazônicas para mapear o problema e instruir imigrantes e refugiados sobre os seus direitos. 'Também seria necessário o governo federal fazer uma campanha educativa sobre o assunto com os governos estaduais e municipais, que ignoram tudo isso', destaca a irmã Carolina França, da Pastoral do Imigrante da Arquidiocese de Manaus.

PRECONCEITO

O preconceito sofrido especialmente pelos colombianos é apontado por voluntários como uma das principais causas de os refugiados e imigrantes desistirem da regularização. 'Até pouco tempo atrás, na carteira de trabalho do refugiado, que já tem uma cor diferente da brasileira, vinha o carimbo 'refugiado', o que dificultava a procura de emprego', conta.

'Esse preconceito não é velado: cansei de ouvir que no Brasil temos muito pobres e perseguidos e que os outros países é que têm de cuidar dos deles', afirma o padre Franco Gonzalo, colombiano, há três anos comandando a Pastoral da Mobilidade Humana, em Tabatinga, onde há hoje 12 pessoas acolhidas na paróquia, em processo de regularização. O município fica a 1.105 quilômetros de Manaus e é separado da cidade de Letícia, na Colômbia, pela Rua da Amizade, ou Calle de la Amistad.

Essa facilidade de chegar a Tabatinga, segundo o padre, têm aumentado o número de colombianos em fuga das pressões de paramilitares ou das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) ou de perseguições do narcotráfico. 'Muitos chegam só com a roupa do corpo, com abalos emocionais irreversíveis por terem presenciado o assassinato de parentes. O que podemos dar é solidariedade e alimentação com verbas doadas', observa.

Fuga não garante fim dos sofrimentos
Na periferia de Manaus, imigrantes dançam salsa para esquecer a dor

Os imigrantes e refugiados ilegais colombianos, peruanos, venezuelanos e bolivianos costumam se reunir no Terra Amazônica, restaurante popular no centro de Manaus, ou em Terra Nova, um bairro emergente na periferia da capital amazonense. 'Buscamos terra, mas a dificuldade de se estabelecer é grande, sofremos muito preconceito', reclama o dono do restaurante, um colombiano ilegal que está no Brasil há 6 anos.

Agora, ele busca a regularização para poder se casar com uma amazonense com quem terá um filho em breve. 'Mesmo com sotaque diferente, a gente vive negando que é colombiano, diz que somos peruanos, porque as pessoas ouvem Colômbia e já são irônicas: cocaína, não é?'

No fim de semana, o bar fica lotado de 'hermanos latinos' com sotaques diversos, que dançam salsa e se esquecem um pouco dos problemas e do medo. 'É só aqui que se come sancocho de gallina, lechona, mondongo, empanadas e, quando alguém consegue trazer frutos do mar, temos até uma cazuela de mariscos.'

Ricardo, colombiano, de 40 anos, vai sempre ao restaurante e é o único que se deixa fotografar, mas de costas e sem revelar o sobrenome. 'Meu maior medo é que a polícia volte a me achacar: como sabem que sou irregular, me tiram dinheiro e até o relógio', lamenta. Há quatro anos irregular, ele teria de pagar uma multa de R$ 850 para iniciar o processo de regularização. 'Vivo de bicos, não é fácil juntar todo esse dinheiro', queixa-se.

Daiane nasceu há um mês, em Rio Branco, filha de pais colombianos fugidos dos conflitos na Colômbia. 'É brasileirinha e um símbolo de esperança para seus pais e até para as outras famílias que estão por aqui', conta irmã Esther, da Pastoral do Imigrante . 'Trabalho com refugiados e imigrantes há muitos anos, mas há três o número dos irregulares, principalmente da Colômbia, aumentou muito. Temos uma lei excelente, mas que os governos municipais e estaduais ignoram', explica.

Os imigrantes, em geral, são camponeses, mas há casos até de universitários. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) interveio para que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) aceite Eric Casas, jovem colombiano, estudante universitário e ativista do movimento negro, que foi perseguido pelas Farc por defender os direitos dos familiares das vítimas de uma chacina.

'Desplazados' vivem sem pátria nem direitos
Socióloga explica razões do fluxo migratório que vem dos países vizinhos

Um estudo da socióloga Márcia Oliveira, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), aponta que a Colômbia e o Peru são responsáveis pelos maiores fluxos migratórios para a Amazônia nos últimos quatro anos. 'Os peruanos fogem do desemprego, dos problemas econômicos, e os colombianos, da guerrilha e dos paramilitares', diz.

Segundo o estudo, o contexto migratório da Colômbia é fortemente influenciado pela violência, que se soma aos problemas sociais e econômicos apresentados pelos outros países. A socióloga explica que os 'desplazados' pela violência vivem os horrores da fuga desesperada para escapar da morte e das ameaças constantes nos territórios do narcotráfico.

Márcia confirma que os guerrilheiros continuam recrutando militantes em território colombiano e nas fronteiras com o Brasil e o Peru para o que rotulam de 'Ejército del Pueblo'. Estimativas apontam que as Farc possuem entre 12 mil e 18 mil membros e mantêm presença em aproximadamente 35% a 40% do território colombiano.

Ainda segundo o estudo, os 'desplazados' determinam uma categoria migratória peculiar. 'Estão sempre na condição do provisório. Almejam ardentemente regressar à Colômbia, mas são impedidos porque os conflitos permanecem acirrados. Muitos adentram as fronteiras brasileiras, sempre pela Amazônia, onde não existe ainda nenhum suporte para migrantes nesta condição de desplazados', explica Márcia.

PERTO DA SELVA

A pesquisadora relata que a cidade colombiana de Letícia vem se tornando, cada vez mais, local de refúgio dos desalojados provenientes dos conflitos que se deslocam para a selva colombiana. No quilômetro 11 da saída norte da cidade foi instalado um centro de acolhida provisória que atende de 450 a 500 famílias nessa condição.

Submetidos a condições subumanas e sob iminentes ameaças, esses grupos estão adentrando a fronteira brasileira em busca do direito de refúgio.

Márcia diz que o governo brasileiro não apresenta nenhuma garantia de permanência para essa categoria migratória. 'O fato de serem colombianos já os coloca numa situação muito fragilizada pelo fato de que, do lado brasileiro, quem lida com eles é a mesma Polícia Federal que caça e prende os traficantes que, categoricamente, são classificados como colombianos', destaca a socióloga.

'Para não serem tratados com extrema diferenciação e xenofobismo, na maioria das vezes, caçados e rechaçados de volta à Colômbia, a alternativa é a clandestinidade', conclui a socióloga da UFAM.

OESP, 18/12/2006, Nacional, p. A8

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