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Belo Monte ameaçada

O Globo, Economia, p. 29
08 de Abr de 2010

Belo Monte ameaçada
Camargo Corrêa e Odebrecht desistem de usina. Ministério Público quer suspender leilão

Ronaldo D'Ercole, Eliane Oliveira e Mônica Tavares
São Paulo e Brasília

As construtoras Odebrecht e Camargo Corrêa anunciaram ontem que estão fora do leilão de concessão da usina de Belo Monte, no Rio Xingu, em Altamira (PA).

Em comunicado conjunto, as empresas afirmaram não ter encontrado nos termos do edital do leilão "condições econômico-financeiras que permitissem sua participação na disputa". A desistência representa um duro golpe para o governo, já que enfraquece a concorrência pelo projeto. Em outra frente, o leilão, previsto para o dia 20, está ameaçado de ser suspenso judicialmente. O Ministério Público Federal (MPF) no Pará ajuizará hoje ação civil pública, na Justiça Federal de Altamira, pedindo a anulação da licença prévia da hidrelétrica, concedida pelo Ibama em janeiro. Os procuradores da República do estado apontam afronta à Constituição, às leis ambientais e às resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).

Odebrecht e Camargo Corrêa se associaram no início do ano para disputar a construção da megausina. Tinham até ontem, às 17h, para formalizar junto à Eletrobras o interesse em ter uma das estatais do grupo como parceira. Esgotado o prazo, divulgaram a nota sobre a desistência. Assim, o leilão de Belo Monte corre o risco de ter um único grande interessado: o consórcio encabeçado pela Andrade Gutierrez, que se uniu à Vale, ao grupo Votorantim e à Neoenergia (que tem o Banco do Brasil e a Previ como acionistas). A Andrade Gutierrez, que já havia atendido à chamada pública da Eletrobras semana passada, informou que segue "avaliando as condições" do projeto e que não comentaria a desistência das rivais.
Licença prévia não basta, diz MPF
Camargo Correa e Odebrecht vinham pressionando o governo a rever dois pontos do edital que consideravam vitais à viabilidade da construção de Belo Monte: o valor da tarifa-teto do leilão, de R$ 83 o megawatt/hora, e a adoção de um "alívio" ao chamado risco de submercado. Como discordavam do custo da obra, calculado pela Empresa de Planejamento Energético (EPE), em R$ 19 bilhões, as empreiteiras queriam fixar a data base para a tarifa-teto em dezembro de 2008.

Mas o governo se recusou e manteve a data do leilão como referência.

- Com a data de referência em 2008, a tarifa-teto equivaleria a R$ 85 ou R$ 86, compatível com o custo estimado para a obra, de cerca de R$ 28 bilhões - disse o executivo de uma grande empresa consumidora. - Camargo e Odebrecht já tinham dito que, naquelas condições, não participariam.

Outra esperança do governo para ter maior disputa no leilão de Belo Monte era a entrada de um terceiro consórcio, liderado pela Suez Energy.

Vencedora do leilão de Jirau, no Rio Madeira, a Suez foi procurada ontem, mas não se manifestou sobre o processo, nem se havia aderido à chamada pública da Eletrobras.
Com as duas maiores oponentes da Andrade Gutierrez aparentemente fora do páreo, especialistas avaliam que o processo ganha forte componente político. Como outras empresas teriam aderido ao chamado público da Eletrobras, estariam aptas a entrar na disputa, mesmo não tendo uma grande construtora como sócias, algo considerado imprescindível numa obra do porte de Belo Monte.

Uma das estratégias em curso para minimizar o desgaste político de haver um único interessado no leilão da obra que é a "menina dos olhos do governo Lula", segundo um executivo que pediu para manter-se anônimo, é a formação de um "consórcio fantasma", com OAS, Queiroz Galvão, Alusa e Bertin.

- Colocaria o nome delas lá, fariam o depósito de garantia de participação, de R$ 190 milhões, mas só para fazer número - disse o executivo.

A data para a inscrição dos consórcios é dia 13, e a dos depósitos de garantia, que definirá quem estará na disputa, vence dia 14.

- A questão agora é: o governo vai levar o leilão adiante, ou adiar? - questiona outro executivo.

Outro fato divulgado ontem que também ameaça o leilão refere-se à ação civil pública que o MPF no Pará ajuizará hoje, pedindo a anulação da licença prévia. Os procuradores da República do estado identificaram oito problemas, que afrontariam a Constituição, resoluções do Conama e leis ambientais. Eles afirmam, por exemplo, que, se for construída do jeito que está, a usina pode secar 100 quilômetros de rio, comprometendo a água e o alimento das populações.

O MPF também quer o cancelamento do leilão marcado para o próximo dia 20 sob a alegação de que o governo desobedeceu uma das exigências do Conama para licitação de hidrelétricas. O projeto só poderia ir a leilão depois que fosse emitida licença de instalação, nunca apenas com licença prévia.

O MPF disse que iria, ainda, notificar oito pessoas jurídicas potencialmente interessadas no empreendimento a respeito dos termos da ação, para que evitem cooperar com os danos e ilegalidades descritos, porque podem ser considerados co-responsáveis: BNDES, as construtoras Norberto Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, a Vale, as seguradoras J. Malucelli, Fator e UBF Seguros.

"O MPF descobriu, analisando o material do Ibama, que os próprios técnicos do governo deixaram claro, em vários documentos, seu desconforto com a falta de dados científicos que garantissem a segurança ambiental do projeto. A pressa em conceder a licença atropelou não só ritos legais e princípios democráticos, mas atentou contra o postulado da precaução, essencial para evitar desastres ambientais", diz a nota.
'Os indígenas não estão sendo ouvidos'
Segundo Ubiratan Cazetta, um dos procuradores responsáveis pelo levantamento, o MPF optou por montar duas ações. A primeira trata da exploração da terra indígena, com base no artigo 176 da Constituição. A segunda engloba as irregularidades apuradas na execução do empreendimento. Ele afirmou que os argumentos são "fortes e concretos". No entanto, destacou que há "grandes interesses econômicos no projeto" e lembrou que, em outubro, o MPF entrou com uma ação pedindo a interrupção das audiências públicas, mas a liminar foi cassada.

- A Advocacia Geral da União tem um batalhão de advogados para cassar liminares contra Belo Monte - disse.

O ministro de Minas e Energia, Márcio Zimmermann, defendeu que todos os aspectos foram analisados:
- A legislação ambiental brasileira é uma das mais rigorosas do mundo. A partir do momento em que uma usina como Belo Monte obteve licença prévia, é porque atendeu a todos os requisitos.

O diretor de licenciamento do Ibama, Pedro Alberto Bignelli, afirmou que as dúvidas às quais se refere o MPF foram levantadas pelos técnicos do órgão em novembro e, de lá para cá, foram todas esclarecidas. Quanto à licença prévia, ele esclareceu que o que está em foco é a viabilidade ambiental do empreendimento. A licença de instalação ficará para outra etapa:
- Por enquanto não se fala em obra, mas em viabilidade ambiental.

Em uma sessão ontem na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, a índia Rosane, da tribo Kaingang, defendeu que sejam realizadas mais audiências públicas no Congresso:
- Os povos indígenas dizem que não querem Belo Monte e não estão sendo ouvidos.

As irregularidades apontadas pelo MPF

1 É a primeira vez que um empreendimento afeta diretamente terra indígena, incluindo recursos hídricos. A Constituição exige, no artigo 176, que esse aproveitamento só poderá ser autorizado pelo poder público após edição de leis ordinárias regulamentando a questão, o que não foi feito

2 Não foi realizada análise das contribuições das audiências públicas, segundo a própria equipe de técnicos que fez o licenciamento. A Constituição determina que o Brasil, na condição de Estado democrático de direito, deve garantir a participação popular

3 Se há dúvidas sobre impactos graves, a obra não pode ser executada. Essa conclusão se aplica ao hidrograma previsto para os 100 quilômetros que serão afetados pelo desvio do rio

4 Há incertezas sobre como ficará a qualidade da água, se a usina for construída.
Segundo o MPF, os técnicos responsáveis pelo licenciamento se dizem preocupados com projeções de toxidades para humanos e peixes.
Falam em "impacto de grande magnitude possivelmente irreversível"

5 Uma vez identificados os impactos negativos, o governo só pode liberar um empreendimento se analisar as medidas propostas pelo empreendedor para mitigar ou compensar esses impactos. Essas medidas não foram apresentadas antes da licença prévia, diz o MPF

6 São inconciliáveis os interesses econômico-energéticos e ambientais. Segundo o MPF, a usina vai impor uma escolha "absurda": ou se sacrifica a Volta Grande (uma das regiões ao longo do leito do Xingu onde se concentram comunidades indígenas e ribeirinhas) ou a geração de energia

7 Há desobediência à resolução n 006/1987 do Conama: leilão, só depois da Licença de Instalação

8 Necessidade de reedição da Declaração de Reserva da Disponibilidade Hídrica. A Agência Nacional de Águas tem que "conceder" a água necessária para a geração de energia, porque se trata de um bem público. A liberação da licença, com modificações feitas pelo Ibama, exige uma nova concessão pela agência

O Globo, 08/04/2010, Economia, p. 29

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