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Barro, buracos e floresta à espera do asfalto. Mas o pedágio já funciona

OESP, Economia, p. B4-B5
08 de Mai de 2005

Barro, buracos e floresta à espera do asfalto. Mas o pedágio já funciona
Depois de três décadas de abandono, a Cuiabá-Santarém foi eleita prioridade do governo para virar um corredor de exportação

Renée Pereira
Enviada especial a Santarém

Parece uma prova de rali. Carros atolados, lamaçais intermináveis, crateras assustadoras e pontes de madeira improvisadas com troncos de árvores. Uma trilha perfeita para os aficionados por aventura, não fosse essa uma rodovia federal, a famosa BR-163, também conhecida como Cuiabá-Santarém.
No meio da Floresta Amazônica, a estrada construída na década de 70, durante o governo militar, traduz um abandono de 29 anos e revela personagens jamais imaginados pela maioria da população brasileira. Uma terra povoada por migrantes vindos de várias partes do País, que acreditaram nas promessas de desenvolvimento da região.
Promessas que, mais uma vez, voltam à tona com a decisão do governo federal de privatizar, até o início do próximo ano, a rodovia considerada um estratégico corredor de exportação para o País. No total, a BR-163 soma 4.069 km e corta o Brasil de Norte a Sul, do Rio Grande do Sul ao Pará. O trecho de concessão, no entanto, fica entre Nova Mutum, no Mato Grosso, e Santarém, no Pará, e soma 1.570 km.
A reportagem do Estado foi conferir a estrada federal com as piores condições de tráfego no território nacional e deparou com uma situação de calamidade. A viagem começa em Sinop, no interior do Mato Grosso, num trecho ainda pavimentado, mas bastante precário. De lá até Santarém, no Pará, são quase 1.300 quilômetros de estrada, a maioria de terra.
No primeiro trecho, foram aproximadamente 4 horas para percorrer 224 quilômetros até Guarantã do Norte, divisa com o Estado do Pará. A bordo de uma picape Hilux, da Toyota, com tração nas quatro rodas, a equipe embarcou numa aventura jamais imaginada. O asfalto fica para trás e a terra vermelha da estrada desenha um novo cenário no meio da mata. A velocidade do carro não ultrapassa 30 km por hora e o velocímetro parece não se mover. Cai a noite e a estrada, desconhecida, fica ainda mais perigosa. Poucos se arriscam a dirigir após o pôr-do-sol.
A primeira parada é no Hotel e Restaurante Campeão, do cearense Francisco Rodrigues, de 60 anos, e da mulher Francisca Rodrigues - irmã da sua primeira esposa. Morou quase 30 anos na Penha, em São Paulo, e em 2001 decidiu tentar a sorte no Pará, na Serra do Cachimbo. Comprou umas terras e o estabelecimento, mas ainda não tem a escritura do terreno. "É uma vida divertida. Por aqui passa todo tipo de gente, desde marajá até pistoleiro", diz ele.
No dia seguinte, a viagem começa cedo, às 6 horas. A meta é atingir a cidade de Novo Progresso, 300 quilômetros à frente. Mas os obstáculos não permitem previsões. A cada quilômetro várias surpresas e com elas os apelidos divertidos dados pelos motoristas aos desafios: cintura fina, quando as crateras corroem e afinam a pista, costela de vaca, para as ondulações. Mas essas imperfeições são irrelevantes se comparadas aos infindáveis lamaçais.
Primeiros atoleiros
De repente, dez quilômetros de puro sossego, sem nenhum veículo vindo na direção contrária, sozinhos no meio da mata. Esse, no entanto, não era bom sinal, mas sim, um alerta. A explicação não demorou. Carretas e caminhonetes aguardavam mais à frente, numa enorme fila, a retirada de outro veículo da lama para continuar viagem.
A ajuda vem dos próprios caminhoneiros. No improviso, amarram cordas de aço e tentam desatolar o veículo. Mas nem sempre conseguem e, às vezes, também ficam atolados. Nesse caso, é preciso esperar o lamaçal secar ou aguardar algum trator para tirar os veículos do barro. Isso pode levar horas e até dias.
Odair José Petry, de 29 anos, estava mais de 12 horas parado e nem tinha perspectiva para seguir viagem. Havia saído de Santa Catarina quatro dias antes para buscar uma carga de madeira no Pará. Já está acostumado com a precariedade da BR-163. Há 3 anos faz o mesmo trajeto, pelo menos 2 vezes por mês. "Mas o custo para percorrer essa rodovia é muito alto, especialmente com pneus e molas."
Nem todos os caminhoneiros, no entanto, suportam a vida dura da Cuiabá-Santarém. Cândido Sampaio decidiu levar a mulher, Jane, e a filha Cândida, de dois anos e meio, para ficar mais tempo com a família durante a primeira viagem pela rodovia. Há 20 dias fora de casa, ele promete explorar outras rotas, bem distantes da BR-163. "Ficamos atolados na ida e na volta. Não compensa. Gastamos tudo o que ganhamos com comida no caminho", diz Jane.
Quando se imagina que o pior ficou para trás, eis que surgem trechos ainda mais precários. Quanto mais longe da fronteira com o Mato Grosso e mais próximo do centro do Pará, mais complicada fica a situação. No terceiro dia de viagem, a estrada parece um atoleiro só. A cada quilômetro, um novo lamaçal, pior que os anteriores.
Isso significa parar, sair do carro, analisar as condições do local e esperar outros veículos que estão na fila passar. Os caminhões chegam a gastar um dia inteiro para percorrer 50 quilômetros. Vaidade não existe. Para desatolar as carretas, só enfiando os pés e as mãos no barro, vermelho e grudento. As poças d'água servem para os motoristas se limparem.
PEDÁGIO
No final do terceiro dia, uma surpresa que causaria inveja aos concessionários das rodovias privadas do Sul do País. Apesar da calamidade, a estrada tem pedágio. E custa caro. Como a pista da rodovia fica intransitável em alguns trechos, os moradores do local abrem estradas dentro das propriedades e cobram pelo acesso.
O preço: R$ 20. Mas, pechinchando, consegue-se passar pagando R$ 10 - valor bem maior que de alguns pedágios do Estado de São Paulo, onde estão as melhores rodovias do País. Mas quem pensa que esse desvio tem boas condições de tráfego, engana-se. Embora pago, o caminho é tão ruim quanto o resto da estrada. Em toda a rodovia há dois pedágios.
No quarto dia de viagem, a esperança de encontrar condições melhores de estrada desaparece. A situação, que já era ruim, fica mais desesperadora. Entre Aruri e Itaituba, mais uma fonte de renda para os moradores da região. Os tratores ficam parados em pontos estratégicos da estrada para retirar as caminhonetes e carretas. Em alguns casos, é melhor nem arriscar. A prudência recomenda desligar o motor e ser arrastado pela máquina. Cada travessia custa entre R$ 10 e R$ 50, dependendo do veículo e da situação.
A falta de pontes de concreto também representa perigo na BR-163. Quase todas são feitas de madeira. Umas estão podres, outras improvisadas com um tronco de árvore cortada ao meio. Para atravessar, é preciso habilidade e bom golpe de vista para não enfiar os pneus nos vãos entre os troncos. Em alguns locais, no entanto, nem ponte há. Nesse caso, uma balsa particular transporta os veículos de um lado para o outro. O custo: R$ 5 para caminhonetes e R$ 15 para caminhões. No final do mês, afirma o operador da balsa, o faturamento chega a R$ 50 mil.
No quinto e último dia de viagem, mais tratores para auxiliar na passagem pelos atoleiros. De Miritituba até Rurópolis, a BR-163 dá lugar à Transamazônica, outra imensa trilha de buracos e lama. É nesse cenário que os irmãos Joel Fernando e Ronaldo Fernando Parintins, de 11 e 9 anos, ganham o dinheiro que sustenta a mãe e os 4 irmãos. Todos os dias, a rotina dos dois garotos é ir para a escola de manhã e tapar buraco na rodovia à tarde. Quando vêem algum veículo se aproximando, pegam logo uma enxadinha e jogam terra na estrada. Ganham por dia cerca de R$ 2. O pai foi embora há alguns anos, afirma Joel. O motivo: "Batia na minha mãe".
Em Rurópolis, há novo entroncamento com a BR-163. Trata-se do último trecho até Santarém. A 90 quilômetros do destino final, o paraíso para quem percorreu quase mil em estrada de terra: o asfalto. Depois de 5 dias e mais de 75 horas de viagem, a reportagem do Estado chega a Santarém. E a conclusão é que todos os que sobrevivem à BR-163 são verdadeiros heróis.

Rota mais curta para as exportações
Pavimentada, a BR-163 receberá boa parte da produção do Centro-Oeste, hoje escoada pelos portos do Sul e Sudeste

Renée Pereira

A pavimentação da BR-163 representará um salto de competitividade para o produto brasileiro. Segundo estudo encomendado pelo Ministério dos Transportes ao Instituto Militar de Engenharia (IME), quando asfaltada, a nova rota poderá escoar boa parte da produção do Centro-Oeste, hoje exportada pelos portos do Sul e Sudeste do País. Em média, a distância de transporte será reduzida pela metade, calculam os agricultores do Mato Grosso, principais interessados na melhoria da Cuiabá-Santarém.
Na avaliação do produtor Egídio Raul Vuaden, integrante de um consórcio que começa a ser formado para disputar a concessão da estrada, a BR-163 é de extrema necessidade para a economia do País. "Hoje, a infra-estrutura de transporte do Sul está sem condições para suprir o aumento das exportações. Por isso, temos de inverter o fluxo. Com a Cuiabá-Santarém deixaremos de percorrer 2.500 km para fazer 1.300 km."
Para o diretor do complexo soja da Cargill, José Luiz Glaser, se não houver uma saída pelo Norte, a infra-estrutura de transporte do Sul vai parar. A empresa inaugurou há dois anos um terminal no Porto de Santarém e deve embarcar este ano um milhão de toneladas.
Mas, por causa das péssimas condições da BR-163, o produto é transportado de caminhão até Porto Velho, em Rondônia, e depois segue de barcaça até Santarém. Com a pavimentação da rodovia, toda a produção de grãos de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, para cima sairia por Santarém. Hoje, a produção de Sinop (MT), por exemplo, é exportada por Santos, diz ele.
Segundo o professor do Centro de Logística (Cel), da Coppead, Paulo Fleury, além do transporte rodoviário, a BR-163 vai reduzir o custo do frete marítimo. "Em vez de descer de caminhão até Santos ou Paranaguá e depois subir toda costa brasileira de navio, o produto pode ser levado direto para Santarém e de lá seguir para seu destino."
A vantagem em custo logístico do Porto de Santarém comparado às demais rotas é significativa para quase todos os municípios ao norte de MT, após a pavimentação da BR-163. Os custos de transporte para a exportação de soja da cidade de Sorriso, no Mato Grosso, para Roterdã, na Holanda, por exemplo, cairia US$ 33 por tonelada, comparado ao transporte via Porto de Santos. Mas isso, considerando o prolongamento dos trilhos da Ferronorte até Rondonópolis. O estudo mostra ainda que a pavimentação da Cuiabá-Santarém pode atrair volumes expressivos de carga geral na rota Manaus-São Paulo, hoje transportada pela rodovia Belém-Brasília.
A expectativa é que o processo de privatização da estrada esteja pronto até o início de 2006, afirmou o ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento. Serão concedidos à iniciativa privada 1.570 km de rodovia, entre Nova Mutum, no Mato Grosso, e Santarém, no Pará. A previsão de investimento é de R$ 1 bilhão. O ministério também trabalha num plano de desenvolvimento regional, seguindo leis ambientais. Há grande temor de que a pavimentação da estrada desencadeie desmatamento ainda maior na região - que vive da extração de madeira.

Sobreviventes, moradores esperam pelo progresso

A promessa de pavimentação da BR-163 trouxe nova esperança aos moradores da região. Com a melhoria da estrada, eles sonham com a chegada do progresso, desenvolvimento e dias melhores. Além das péssimas condições da rodovia, os vilarejos não têm a mínima infra-estrutura necessária ao bem estar da população. Faltam hospitais, escolas e segurança.
Apesar do grande número de crianças, algumas escolas foram fechadas e deixaram vários alunos sem ensino. A menina Luzia Rodrigues de Souza, de 10 anos, por exemplo, é uma vítima das decisões dos governos municipais e estaduais da região. Tímida e de poucas palavras, ela confessa não saber ler nem escrever. Mas conta que adorava ir à escola, mesmo tendo de acordar cedo e andar quilômetros até chegar ao local.
Luzia é moradora de Aruri, um dos principais focos de malária do Estado. Localizado ao lado do rio de mesmo nome, o vilarejo é formado de palafitas. Na época da cheia, entre março e abril, a água sobe e alguns moradores são obrigados a sair das casas, mesmo construídas em nível elevado, afirma a moradora Domingas Torres dos Santos, de 64 anos.
Há quatro dias com febre, ela suspeitava estar com malária. Mas, pelas péssimas condições da estrada, a possibilidade de ir até a cidade mais próxima para se consultar estava descartada. Além de ser caro, demoraria muito tempo, diz Domingas. Ela e o marido, Patrício Liberato dos Santos, de 72 anos, só enfrentam a BR para receber a aposentadoria na cidade de Trairão, a 100 km do vilarejo.
Pela viagem, os dois pagam R$ 100 e gastam cerca de dois dias, passando a noite na estrada. "Aqui nós somos esquecidos", afirma Patrício Liberato, referindo-se à falta de vacinação, escola e infra-estrutura. Nascidos no Maranhão, eles moram no local desde 1981 e já ouviram inúmeras vezes as promessas de pavimentação. Mas ainda mantêm a esperança de que um dia o asfalto chegue ao vilarejo. "Pode ser que não vejamos isso em vida, mas será bom para nossos filhos e netos."
Aos 42 anos, o paranaense Virgínio Ignácio, mais conhecido como Huck, sobrevive da estrada. Percorre parte da rodovia pegando passageiros para levar até Itaituba, uma das maiores cidades da região. Numa caminhonete D-20, vão cerca de 12 pessoas apertadas na caçamba. Na falta de espaço, a alternativa é ir na capota ou de pé nos pára-choques dos veículos. Cada passagem custa cerca de R$ 80. Huck chegou na região em 1979 com os pais. Durante esse tempo, diz, já pegou 87 malárias. Mas, para o motorista, não há tempo ruim, nem atoleiro impossível de ser atravessado.
A falta de pousadas e hotéis também é problema para os viajantes da BR-163. As poucas acomodações ao longo da estrada não dão conforto aos viajantes, com exceção da Pousada e Restaurante Campeão, que, apesar de simples, é limpa. Hotéis com TV e ar-condicionado, somente em Novo Progresso e Itaituba.
Energia elétrica também é um bem escasso. Boa parte dos moradores dos vilarejos só tem luz porque comprou gerador movido a óleo diesel. Mas, por causa do preço do combustível, o motor é ligado apenas durante algumas horas. À noite, o limite é 22 ou 23 horas. Depois, tudo vira um breu. Televisão é privilégio para poucos. O conforto do chuveiro elétrico é substituído por um cano com água fria.

Presidente Geisel abriu pista 'de primeira classe'em 1976
Rodovia foi construída sob comando do Exército e inaugurada com cobertura de cascalho para ser pavimentada depois

A famosa Cuiabá-Santarém, com 1.764 km, foi inaugurada em 20 de outubro de 1976 pelo presidente Ernesto Geisel. Mesmo revestida apenas de cascalho, foi chamada na época de estrada de 1.ª classe, com condições para posterior asfaltamento. Como hoje, uma de suas principais finalidades era abrir as portas para a exportação de produtos do Centro-Oeste pelos portos do Rio Amazonas, como o de Santarém.
A construção da estrada trazia também a promessa de desenvolvimento e progresso. Milhares de brasileiros acreditaram no sucesso do empreendimento e foram para a região incentivados pelo governo, que, além da terra, assegurava apoio financeiro. A maioria deles partiu em busca de um sonho e até hoje luta para que a promessa se torne realidade.
A construção da rodovia durou 2.239 dias, custou Cr$ 700 milhões e mobilizou a mão de obra de 989 militares e 1.869 civis, muitos dos quais morreram devido à insalubridade e às duras condições de trabalho. A abertura da estrada começou em 3 de setembro de 1970 e os planos da obra indicavam o ano de 1973 para a inauguração, que só ocorreu 3 anos depois. A construção foi comandada pelos 8.o e 9.o Batalhão de Engenharia e Construção (BEC) do Exército.
Segundo documentos da época, os dois grupos começaram o trabalho ao mesmo tempo. Mas as condições de terreno e os métodos de trabalho produziram resultados diferentes. Quando começou o ano de 1972, ainda havia esperança de concluir a estrada em 1973. Novos equipamentos, levados do Sul em aviões da FAB, chegaram para substituir os antigos. Mas, se no lado do Mato Grosso a terraplenagem podia ser atacada de imediato, na base de Cachimbo, no Pará, as coisas se passaram de forma diferente. O desmatamento nessa área não era tarefa fácil. Além disso, os trabalhadores tinham de conviver com temperaturas acima de 30 graus e umidade do ar de 90%.
Levar mantimentos até o local também era um desafio. Na época de chuva, a única forma de levar comida para os trabalhadores era uma carreta puxada por um trator. Quando não atolava nas baixadas, o caminhão seguia com dificuldade pela picada recém-aberta. Muitas vezes os passageiros tinham de descer, descarregá-lo, empurrá-lo, cortar árvores com machados e gastar seis horas de viagem para percorrer 30 km - situação não muito diferente da que vivem os caminhoneiros que hoje percorrem a BR-163. E, à medida em que a frente de topografia ia avançando, a entrega do suprimento tornava-se um sacrifício maior.
O método de construção da rodovia foi semelhante ao usado na Transamazônica. Começou pelos estudos de topografia, depois o desmatamento numa faixa de 70 metros de largura, até chegar ao traçado do leito da estrada, com largura entre sete e dez metros de largura.

OESP, 08/05/2005, Economia, p. B4-B5

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