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Barbárie dos brancos

CB, Brasil, p. 10
18 de Set de 2007

Barbárie dos brancos
No interior de Minas, três jovens espancam até a morte o índio xacriabá Avelino Nunes Macedo, 35 anos. Queriam dar um susto nele, deixando-o nu no meio da rua. Entre os agressores, dois menores de 18 anos

Luiz Ribeiro
Do Estado de Minas

Quatro dias depois de a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovar a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, que garante proteção aos mais de 370 milhões de aborígenes em todo o mundo, um crime no interior de Minas Gerais pode comprometer a imagem do país aos olhos do mundo. Três jovens - incluindo dois menores de 18 anos - mataram a socos, na madrugada de domingo, um índio xacriabá. O homicídio, aparentemente por motivo fútil, ocorreu em Virgínio, no município mineiro de Miravânia, próximo à reserva indígena dos xacriabás. O crime chocou a comunidade e levou a Fundação Nacional do Índio (Funai) a pedir ao Ministério Público Federal rigor para levar os criminosos à condenação.

Avelino Nunes Macedo, 35 anos, será enterrado hoje de manhã na reserva xacriabá, onde morava, no município de São João das Missões. O índio foi espancado até a morte, sofrendo uma seqüência de socos e pontapés depois que os três jovens tentaram tirar a sua roupa no meio da rua. Os delinqüentes foram detidos. O mais velho está na cadeia pública de Manga - de 23,7 mil habitantes, a 711km de Belo Horizonte, no norte de Minas. Edson Gonçalves Costa, 18 anos, e os menores G.P., de 16 anos, e V. S., de 15, confessaram o assassinato.

Ontem à tarde, o presidente interino da Funai, Aloysio Guapindaia, divulgou nota, anunciando que o órgão, por intermédio da sua procuradoria jurídica, vai acompanhar o inquérito. "Casos como esse causam indignação, pois são demonstrações do processo de discriminação acentuada sofrida pelos índios", disse Guapindaia. "A Funai tem trabalhado para que crimes dessa ou de outra natureza não aconteçam".

O delegado da Polícia Civil de Manga, Airton Alves de Almeida, comparou a morte do xacriabá ao caso do índio pataxó Galdino de Jesus Santos, morto depois de ter seu corpo coberto de gasolina e queimado com fogo ateado por quatro jovens de classe média de Brasília, em 20 de abril de 1997. O caso alcançou repercussão internacional. "Foi um crime bárbaro, com as marcas do preconceito étnico", disse o delegado, lembrando que Avelino Nunes foi vítima da violência simplesmente porque os "jovens pretendiam tirar sua roupa e deixá-lo nu no meio da rua, submetendo-o ao ridículo". Ele considerou que o crime ocorreu por motivo fútil, o que é um agravante. Avelino Nunes Macedo não portava faca ou qualquer objeto que pudesse ameaçar os agressores.

Revolta
O assassinato causou revolta na área xacriabá, a maior reserva indígena de Minas Gerais, com cerca de 7,8 mil pessoas, mais de 60% da população de São João das Missões - de 12,5 mil habitantes, distante 663km de Belo Horizonte. "Foi muita covardia. A gente nunca esperava uma coisa dessas. Esperamos que seja feita justiça e os marginais fiquem na cadeia", afirmou Domingos Gonçalves, índio xacriabá da aldeia Sumaré. Avelino Nunes morava perto dali, na aldeia Buriti.

Na noite de sábado, montado num cavalo, ele foi a uma festa de casamento na localidade de Virgínio, que faz divisa com a área indígena demarcada. De acordo com testemunhas, por volta das 5h, após ingerir bebida alcoólica, Avelino caminhava no meio da rua, quando foi abordado pelo por Edson Gonçalves (trabalhador rural) e os dois menores. Duas horas antes, eles tinham saído de uma outra festa, na quadra poliesportiva do lugarejo. Ontem, em depoimento à policia, os três contaram que tentaram tirar a roupa do índio, mas ele resistiu. Um dos menores o derrubou com uma "rasteira". Em seguida, passaram a agredi-lo com socos e pontapés. Até a morte.

Memória

Galdino, um caso de vergonha nacional

A morte do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, assassinado aos 44 anos depois de sofrer um ataque e ter o corpo queimado após ser encharcado de álcool, enquanto dormia em uma parada de ônibus na Asa Sul de Brasília, é um desses casos de vergonha nacional. O crime ocorreu em 20 de abril de 1997, um dia depois da comemoração do Dia do Índio. Cinco rapazes de classe média da capital da República atearam fogo no corpo de Galdino. Ele morreu com queimaduras em 95% do corpo.

Os rapazes fugiram após executarem o atentado, mas uma testemunha do crime anotou a placa do automóvel e entregou à polícia. Assim como no caso do assassinato do índio xacriabá, um dos autores do ataque a Galdino era menor de idade. G.N.A.J. ficou preso por três meses, mesmo tendo sido condenado a um ano de reclusão.

Os quatro comparsas - Tomás Oliveira de Almeida, Max Rogério Alves, Eron Chaves Oliveira e Antônio Novely Cardoso Vilanova - foram detidos e, em 2001, condenados por júri popular por homicídio doloso (com intenção de matar). Cada um recebeu a pena de 14 anos de detenção, em regime integralmente fechado, por conta do crime hediondo.

Os quatro não teriam direito à progressão de pena ou outros benefícios previstos pela lei. Mas, em 2002, a 1ª Turma Criminal concedeu autorização para que exercessem funções administrativas em órgãos públicos. Foi permitido a eles que deixassem o presídio da Papuda para trabalhar e retornassem ao final do expediente. Meses depois, o Correio flagrou três dos cinco rapazes bebendo cerveja em um bar, namorando e dirigindo o próprio carro até o presídio, sem passar por qualquer tipo de revista na volta. Após a denúncia, perderam, temporariamente, o direito ao regime semi-aberto.

Em agosto de 2004, ganharam o direito ao livramento condicional e estão em liberdade, seguindo regras de comportamento impostas pelo juiz: não podem sair do Distrito Federal sem autorização da Justiça e precisam comunicar periodicamente suas atividades profissionais.

Tensão na aldeia

Um dos coordenadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Wilson Mário Santana, disse ontem que teme pelo agravamento dos ânimos nas aldeias dos índios xacriabás, diante da morte de Avelino Nunes Macedo, espancado até a morte por três jovens, no interior de Minas Gerais, na madrugada de domingo. A entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) vai solicitar à Fundação Nacional do Índio (Funai) que acompanhe o caso com atenção para evitar reações. "A comunidade xacriabá é formada por uma população grande", disse Santana. "Temos preocupação de a situação ficar tensa."

O Cimi informou que cerca de 8 mil índios xacriabás vivem no norte do estado de Minas Gerais, numa área estimada em 54 mil hectares. Com base em uma documentação de doação datada da primeira metade do século 18, eles reivindicam a ampliação do território, o que costuma gerar atritos com fazendeiros da região. A maior parte da reserva está localizada no município de São João das Missões. O prefeito da cidade, João Nunes de Oliveira (PT), é um índio xacriabá. No final dos anos 80, três líderes índigenas foram assassinados em um conflito fundiário.

De acordo com Nilton Seixas, representante do Cimi em São João das Missões, o assassinato ocorreu em uma área alvo de litígio. "Acho que é preciso investigar melhor essa situação. A gente aqui avalia com uma preocupação muito grande. Um crime que aparenta ser banal, sem nenhuma razão, mas ao mesmo tempo, o povo (xacriabá) passa por um processo de muita ameaça. Esse povo vive hoje em apenas um terço do seu território", ressaltou.

Análise da notícia

Flagrantes recorrentes

Olímpio Cruz Neto
Da equipe do Correio

A cidadania sempre perde com os flagrantes exemplos de preconceito racial. O atentado contra a vida do índio xacriabá Avelino Nunes Macedo, morto covardemente ao ser espancado por três jovens no interior de Minas Gerais, escancara a tensa relação racial no país que é consagrado pela miscigenação de sua gente. O problema vem sendo apontado, reiteradamente, por ONGs ligadas à questão indígena e à defesa dos direitos humanos.

No ano passado, relatórios divulgados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Anistia Internacional e outras organizações sociais mostraram ao mundo que a carga do preconceito e do desrespeito aos direitos indígenas são comuns no Brasil. Ainda que estejamos no século 21. Quando não é a omissão do Estado que mata - como no caso da desnutrição que atinge fatalmente as crianças nas aldeias no Mato Grosso do Sul e na administração desastrosa dos conflitos por causa da terra - a vergonha vem manchada de sangue pela agressão sistemática ao índio. Como nesses ataques ao pataxó Galdino, em 1997, e ao xacriabá Avelino, anteontem.

Os números de assassinatos de índios no Brasil são preocupantes. Em 2005, teriam sido 38 pessoas. No ano passado, 80. O governo federal contesta. Fala em números mais modestos. Pouco importa. Enquanto a Funai permanece desestruturada, as verbas para as demarcações continuam minguantes e a disposição do governo Lula para enfrentar o problema é pequena, as maiores vítimas são mesmo os povos indígenas.

CB, 18/09/2007, Brasil, p. 10

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