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Baía de Guanabara, endereço comercial

OESP, Cidades, p. C1, C3
05 de Set de 2004

Baía de Guanabara, endereço comercial
Apesar da poluição, ainda é dela que 10 mil pescadores tiram o seu sustento

Alexandre Rodrigues

O manguezal, no encontro do Rio Suruí com a Baía de Guanabara, parece deserto. Até ouvir as vozes, ninguém suspeitaria que aquele é um local de trabalho. São os catadores de caranguejo respondendo aos gritos das mulheres, que criaram um código para localizar os maridos nos labirintos do mangue. Castigada pela poluição, a baía é o único meio de sobrevivência de cerca de 10 mil pescadores e catadores de caranguejo no Grande Rio. A maioria não sabe como será o futuro. Gente que, de geração em geração, viveu de jogar a rede no mar, de onde tira cada vez menos.
Hélio Pereira Filho, de 37 anos, não freqüentou sala de aula. Mas herdou do avô a agilidade para pegar os caranguejos do manguezal de Suruí, distrito de Magé, Baixada Fluminense. Acorda às 4 horas para deixar armadilhas no mangue assoreado. Mas já não vale tanto a pena o esforço de mergulhar na lama. "Tem pouco bicho para muita gente. Eles estão cada vez menores. A gente luta para pegar e depois o comprador não aceita por causa do tamanho. Sobram só para o pirão e para a sopa." Cada caranguejo é vendido por R$ 0,25.
A mulher dele, Marlúcia Correia Santos, de 37 anos, até come, mas detesta o bicho. Ela diz que, quando a situação aperta, a família toda vai para o mangue. "Em época de Natal, a lama fica cheia de criança, mulher, idoso.
Todo mundo correndo atrás dos caranguejos."
A situação é parecida nos barcos que cruzam o Suruí em direção à Baía de Guanabara no fim da tarde e só voltam no dia seguinte. As redes vazias estão levando pescadores a abandonar a pesca. Parte dos que saem é substituída por gente que foi expulsa das cidades pelo desemprego.
"Essa é uma das profissões mais antigas do mundo e vivemos do mesmo jeito há 200 anos. O pescador não sabe fazer mais nada. A desilusão e a falta de perspectivas levam muitos para o álcool e as drogas", preocupa-se Romildo Soares de Oliveira, de 40 anos, 20 deles nas águas da baía. Ele lidera a formação de uma cooperativa de pescadores em Suruí, que tem como principal objetivo eliminar atravessadores e aumentar o valor do trabalho.
Sorte grande - Há alguns dias, Antônio Ferreira Barreto, de 48 anos, tirou a sorte grande: voltou para casa com nada menos que 90 quilos de peixe. "Deu uma água brava e a rede ficou cheia", disse, referindo-se a uma onda de poluição que mata cardumes, mas, segundo os pescadores, não inutiliza o pescado.
Mas Antônio não esquece a rotina dura das noites em claro na baía. "Às vezes, a gente tem de tirar a roupa e cair no mar para tirar plástico da hélice do barco", conta. "Já vi de tudo boiando na água, até corpos."

Colônias deixam de viver só da pesca
Vazamento de óleo da Petrobrás, até hoje sem indenização, acabou com esperança de muitos
Alexandre Rodrigues
RIO - Os pescadores de cinco colônias da Baía de Guanabara que ganharam na Justiça indenizações da Petrobrás ainda não receberam um tostão da empresa, que recorreu da decisão. Mas depositam nessa possibilidade uma esperança.
Para quem vive da baía, o vazamento de 1 milhão de litros de óleo de um terminal da Petrobrás em 2000 é um divisor de águas. "Esse dinheiro nunca chegará às minhas mãos. A Petrobrás só nos deu o tiro de misericórdia. Há quatro anos, as coisas já eram difíceis, mas éramos felizes e não sabíamos.
No momento não estamos vivendo, estamos vegetando", diz o pescador Romildo de Oliveira.
Nelson Barroso Ferreira, de 25 anos, foi um dos que receberam R$ 500,00 e uma cesta básica da Petrobrás na ocasião. Nos outros meses em que a grossa camada de óleo impediu que os pescadores lançassem o anzol nas águas, tentou trabalho na capital. De volta, ele coça os olhos de sono para pesar os 9 quilos de corvina que a noite na baía lhe rendeu.
"Quando ia para o mar com meu pai, este barco aqui vinha com cem quilos de peixe. O que eu trouxe hoje só dá para o combustível. A gente tem de ir cada vez mais longe para pegar alguma coisa", lamenta o rapaz. Ele diz que sonha com um emprego de carteira assinada. "Eu gosto de pescar, mas preciso de uma remuneração fixa para poder formar família. É com isso que todo mundo aqui sonha."
O pescador Geraldo Souza Lima, de 46 anos, sai todos os dias às 22 horas em seu barco a remo da Praia do Coqueirinho, na Ilha do Fundão, e vai até a Ponte Rio-Niterói, onde pesca durante a noite. Em vez de descansar, de dia ele trabalha como revendedor. "Ganho uns R$ 180,00 por mês, mas tem época que não tiro nada. Se eu dependesse só da pescaria, já tinha matado a minha família de fome", diz o pescador.
Rosângela Molinaro, de 46 anos, orgulha-se de ter criado os quatro filhos com a pesca, mas hoje revende camarão vindo de outros pontos da baía, porque onde mora, na comunidade do Gradinho, em São Gonçalo, há muito tempo não se vê o crustáceo.
Nos fundos da casa às margens da baía, ela limpa um camarão cinza, miudinho, sentada no quintal cheio de detritos trazidos pela maré. O camarão que enche o isopor é conhecido como camarão de lixo, retirado com a pesca de arrasto das traineiras, que revolvem o lodo do fundo da baía. "O pescador enfrenta sol, chuva, tempestades e, na beira do cais, o peixe suado cada vez vale menos. A pescaria na baía está com os dias contados", profetiza.
Para o oceanógrafo David Zee, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), os pescadores são os melhores indicadores da situação da baía. "Não há opção. Se houvesse peixe grande, quem pegaria os pequenos?"
À frente da cooperativa de Suruí, Romildo de Oliveira diz que o salário mínimo pago às famílias no defeso, quando não se pode pescar, não é suficiente. "Enquanto o peixe e o caranguejo crescem, é preciso dar uma alternativa a essas famílias." (Colaborou Felipe Werneck)

Quando não tem caranguejo, a gente cata pet'
RIO - Estima-se que a população do Estado do Rio jogue fora cerca de 960 milhões de garrafas plásticas do tipo pet todos os anos.
Durante muito tempo, elas foram a parte mais visível do lixo que vai parar na Baía de Guanabara. Mas a ce L s manguezais tomados por garrafas sujas é coisa do passado em muitos locais. O mercado de reciclagem criou uma alternativa econômica, e elas sumiram.
"Quando não tem caranguejo, a gente cata pet e vende por até R$ 0,40 o quilo", conta a catadora Marlúcia Santos. "É difícil juntar, mas, quando encontra garrafa, ninguém deixa para trás." A escassez da fauna e o aumento da poluição acabaram levando muita gente a viver do lixo. Barcos cruzam a baía cheios de garrafas em vez de peixes. Em média, as empresas pagam R$ 7,00 por 30 quilos de pet.
Em 2001, Célio de Oliveira tinha a vista de seu bar, na Praia da Piedade, em Magé, prejudicada pelas ondas de garrafas plásticas que chegavam todos os dias. Unindo o útil ao agradável, reuniu meninos carentes da região para recolhê-las. Em poucos dias, eles juntaram 10 mil garrafas. Oliveira desenvolveu uma técnica de construção civil com elas. Cheias de areia, elas tomaram o lugar dos tijolos na construção de uma casa com quarto, sala e banheiro. A moradia virou atração.
Ligado a uma ONG ambiental, ele mantém o trabalho de recolhimento com oito garotos. 0 dinheiro arrecadado é usado na compra de cestas básicas para as famílias dos meninos e para atividades esportivas e culturais.
"Eles me ajudam a manter isso limpo, eu ajudo eles e nós ajudamos a baía. As garrafas não são uma praga. Praga é o homem, que não sabe como
usar. Quem joga isso no lixo não sabe que termina aqui", diz Oliveira, que nasceu no meio da Guanabara, na Ilha de Paquetá.
"As árvores, em vez de dar fruto, pareciam dar garrafas. Hoje, sabemos que elas têm valor", conta Helton de Oliveira Silva, de 12 anos, um dos participantes do projeto. Com a ajuda de Oliveira, ele conseguiu uma bolsa num colégio particular e quer ser químico. "E meu sonho ajudar a acabar com a poluição da baía." (A.R.)

Despoluição adiada de novo, para 2005
RIO - Planejado para durar cinco anos, o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) se arrasta há dez. O convênio com orçamento original de US$ 926 milhões foi assinado entre o governo do Estado do Rio, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Japan Bank for International Cooperation (JBIC) em março de 1994. A primeira fase, que já teve a conclusão adiada uma vez para 2002, estava prevista para terminar no primeiro semestre deste ano. No entanto, de acordo com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, o prazo foi novamente adiado para julho de 2005. Do programa, 25% ainda não foram executados.
Catástrofes ambientais mobilizam, mas o maior algoz da baía é o esgoto.
Cerca de 465 toneladas de carga orgânica chegam todos os dias às suas águas, com o esgoto lançado in natura nos 55 rios que a alimentam. As obras de saneamento, principal braço do programa, ainda estão em curso. Das oito estações de tratamento previstas, só quatro estão prontas.
"Se eu tivesse uma única bala no revólver, atiraria no saneamento e resolveria o principal. Mas o programa anda devagar, quase parando. Há estações inauguradas sem ligações com redes coletoras, operando com menos de 20% da capacidade", diz o oceanógrafo David Zee, da Uerj.
O deputado Carlos Minc, do PT, presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembléia do Rio, defende uma auditoria. "Pelo menos R$ 120 milhões foram pelo ralo com superfaturamento, multas por atrasos e obras refeitas."
A geógrafa Dionê Castro, coordenadora dos Projetos Ambientais Complementares do PDBG, justifica o atraso com dificuldades como a demora de processos licitatórios. Segundo ela, a primeira etapa concentrou-se na modernização dos órgãos fiscalizadores para monitorar os lançamentos das maiores empresas e diz que, sem isso, a poluição seria ainda maior.
"Os demais projetos só tiveram andamento efetivo a partir de 2001. Estamos fazendo um esforço monstruoso para fechar tudo até 2005", disse Dionê, para quem o programa trouxe a esperança equivocada de que a baía estaria limpa em quatro anos. "Isso não existe. Uma baía que ficou sendo contaminada por 500 anos não pode ser despoluída em quatro, nem em dez anos. A baía de Veneza está lá, no primeiro mundo, e eles não conseguem. É tudo um processo, tanto que estamos pensando no PDBG2." (A.R.)

OESP, 05/09/2004, Cidades, p. C3

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