VOLTAR

Ateliês da pré-história

CB, Cidades, p. 28-29
15 de Ago de 2004

Ateliês da pré-história
Os primeiros habitantes do Planalto Central deixaram suas marcas em sete das 29 grutas de Formosa (GO). São pinturas e desenhos rupestres, muitos ainda não decifrados. Tesouros que corre o risco de se perder

Renato Alves
Da equipe do Correio

Nos pastos e plantações de algumas fazendas de Formosa (GO), homens, cavalos, bois e outros bichos pisam sob ferramentas fabricadas entre 4 mil e 12 mil anos atrás. Machadinhas, pontas de lanças e outros artefatos estão espalhados por propriedades rurais. E esses não são os únicos tesouros pré-históricos desprotegidos no município, distante 80 quilômetros de Brasília. Pinturas rupestres feitas pelos primeiros habitantes do Planalto Central enfeitam sete das 29 grutas catalogadas no território de Formosa. Os homens das cavernas também deixaram gravuras em dezenas de paredões e pedras encravadas no cerrado.
As pinturas das grutas de Formosa estão nítidas, levando-se em conta o desgaste sofrido ao longo de tanto tempo de exposição. Algumas foram feitas a até 7,5 metros do solo. A maioria tem um só tom: vermelho, laranja, vinho e preto. Poucas têm associação de duas cores. As representações são variadas. Algumas gravuras se referem a animais, como tatus e veados. Também há marcas de pés, com quatro, cinco e seis dedos e desenhos primários de pessoas. Mas há muitas gravuras ainda não decifradas pelos cientistas. Elas têm formatos geométricos e tradições astronômicas. Os pesquisadores supõem ser retratos do céu, das diversas constelações.
Desde o fim do século 19, quatro expedições científicas visitaram as grutas e sítios arqueológicos de Formosa. A maior contribuição foi dada por arqueólogos goianos e cariocas que fizeram parte do Projeto Bacia do Paranã, da Universidade Federal de Goiás. Por dois anos, na década de 70, eles exploraram as cavernas da bacia hidrográfica do rio Paranã. O resultado do trabalho deu origem à publicação de um relatório detalhado e único sobre a fase pré-cerâmica e de arte rupestre do Planalto Central, em 1977.
Os arqueólogos concluíram que, devido aos traços finos, os desenhos das grutas de Formosa foram feitos com instrumentos fabricados só para a arte, como mo pincéis de madeira. No caso das pinturas maiores, eles supõem que os homens das cavernas usaram os próprios dedos para fazer os contornos. lá as tintas, à base do extrato de sementes, tinham formas variadas. "Na maior parte das sinalizações a tinta foi utilizada em estado pastoso e, só secundariamente, em estado sólido ou semi-sólido", descrevem os pesquisadores no relatório do Projeto Bacia do Paranã.
O estudo também traz o primeiro registro de oficinas líticas na região. As oficinas são pontos com vestígios de ferramentas e utensílios fabricados pelos homens das cavernas. Os pesquisadores encontraram 1.350 peças na área rural de Formosa. Os artefatos e fósseis humanos e animais coletados foram para o Museu Antropológico de Goiânia.
Nordestinos
Desenhos como os das grutas de Formosa, no Brasil, foram encontrados somente em Sete Cidades, no Piauí. Eles também estão em outros continentes, o que intriga os pesquisadores, já que na pré-história não havia meios de comunicação e de transporte. Os homens ainda não usavam nem mesmo cavalos para se locomover. "As figuras mais curiosas dos sítios arqueológicos de Formosa estão na Pedra Pintada, onde tem a chamada Árvore da Vida, bem semelhante a representações encontradas na África e na Austrália", conta o historiador Paulo Bertran Wirth Chaibub, autor do livro História da terra e do homem no Planalto Central, um dos poucos que trata da pré-história do Distrito Federal e região do Entorno.
Paulo Bertran visitou a maioria das grutas de Formosa. Para ele, os desenhos provam que os nordestinos chegaram ao Planalto Central muito antes da construção de Brasília. "As semelhanças das pinturas rupestres de Formosa com as do Piauí mostram isso", afirma. Mas os modos de vida dos autores dos desenhos das cavernas de Formosa eram bem diferentes dos nordestinos que começaram a desembarcar em Goiás há 50 anos para construir a nova capital do país. "Os autores dessas gravuras moravam nas grutas durante os meses mais frios. Não suportavam as baixas temperaturas da região. No verão, saíam para caçar. Naquela época, havia animais de sobra no cerrado", destaca Bertran.
As conclusões do historiador são embasadas por vestígios deixados pelos primeiros habitantes do Centro-Oeste nas grutas de Formosa. Muitas delas sofreram alterações antigas. Há sinais de camas artesanais e jaulas, onde animais de pequeno e médio porte, capturados no verão, eram trancados para servir de comida aos homens no inverno.

Sombras do passado
Além das pinturas rupestres, Formosa tem outras relíquias pré-históricas. Os homens das cavernas também deixaram pistas de seu cotidiano em diversos paredões. Mas, em vez de tintas, eles usaram ferramentas para desenhar em arenitos, uma rocha frágil. As gravuras em baixo-relevo, classificadas como petroglifos no meio científico, têm as mesmas formas das encontradas nas grutas.
Um dos pontos mais conhecidos com esse tipo de arte está a 65 quilômetros de Formosa. E preciso seguir pela BR-020 na direção de Fortaleza (CE). 0 sítio arqueológico fica na região conhecida como Bisnau. O acesso também é complicado, infestado de animais silvestres e só deve ser feito na companhia de guias.
No entanto, muitas das poucas pessoas que já estiveram no local não contribuíram para preservá-lo. Alguns arrancaram pedaços da pedras com as gravuras. Para aumentar a visibilidade do desenho, boa parte dos visitantes riscou o baixo-relevo com giz, tinta e até mesmo outras pedras. Técnica desnecessária, já que a própria natureza se encarrega de mostrar o desenho. No fim da tarde, com o sol se pondo, a sombra produzida no baixo-relevo destaca a forma da gravura com o contraste da pedra.
Mas a mesma natureza também contribui para a ".destruição. Enxurradas fortes que descem sobre o paredão arrancam finas camadas de rocha. Plantas crescem em meio à tela rochosa e esconde a ,obra de arte pré-histórica. Sem barreiras, o gado pisa nas gravuras e deforma o relevo.
A solução para evitar danos ao sítio arqueológico, segundo pesquisadores, seria o controle de visitas e a construção de barreiras para desviar a enxurrada.

Para saber mais
Outras relíquias no DF e Entorno
Formosa não é a única cidade da região do Entorno do Distrito Federal com sítios arqueológicos. Na Chapada dos Veadeiros, a pouco mais de 200 quilômetros de Brasília, há pinturas rupestres diferentes das de Formosa. Na Chapada, existem retratos abstratos. A maioria, de formas geométricas, bem variadas em tamanhos. Até 1982, tinham sido catalogados 90 sítios na região.
Em Unaí, a 180 quilômetros de Brasília, arqueólogos encontraram dois abrigos de pedras com pinturas rupestres. Os estudiosos estimam que os registros foram feitos por uma comunidade que ali viveu há 10 mil anos. O próprio Distrito Federal tem seus sítios arqueológicos.
São 19 espalhados principalmente pelo Gama e Taguatinga.

O pecado da estruturação
As grutas de Formosa estão numa faixa de serras e morros rochosos entre a Serra Geral do Paranã e o Espigão Mestre da Serra Geral, no vão do Paranã. Os blocos se estendem por 8,5 quilômetros e é o divisor de águas entre os rios Paranã e Bandeirinha. A aparente descontinuidade da formação, com quatro picos mais elevados - que na verdade são apenas a ponta de uma montanha rochosa soterrada ao longo de milhares de anos -, levou os moradores da região a batizar o bloco maior de Lapa da Pedra. É nessa área, com 1,8 quilômetro de extensão, que se concentra o maior número de grutas e pinturas rupestres.
Apesar da proximidade do centro da cidade - cerca de dez quilômetros - o acesso à Lapa da Pedra é difícil. Ela está em uma fazenda de gados, em meio à mata fechada. Não há placas de sinalização nem trilhas. Mesmo com os 70 metros de altura, não é vista da estrada. Para chegar à Lapa da Pedra, assim como nas demais grutas de Formosa, é preciso a companhia de um guia experiente, roupas adequadas e alguns equipamentos de segurança. O facão, por exemplo, é fundamental para abrir caminho entre os espinheiros.
Da estrada de terra até a Lapa da Pedra são pelo menos meia hora de caminhada a passos firmes. No trajeto, além dos bois, há outros bichos. Alguns perigosos, como cobras, aranhas e até onças. A gruta também serve de abrigo para esses animais. No cume da rocha, urubus fazem ninhos. Mas também há beleza em volta. Além das pinturas rupestres e das formações rochosas, a vegetação é rica. Nesta época do ano, os ipês roxos e amarelos estão todos floridos.
Há ainda algumas espécies amazônicas, como veredas de buritis e outras palmeiras. Pássaros de todos os tipos descansam nas copas.
Depredação
Mesmo com as dificuldades do acesso, as grutas e demais sítios arqueológicos sofrem com a depredação do homem. Muita coisa já se perdeu completamente. Ao longo dos anos, fazendeiros arrendaram suas terras para mineradoras. Alguns dos paredões e grutas milenares foram destruídos. Pinturas, fósseis e formações que levam milhares de anos para se compor, como estalagtites e estalagmites, simplesmente foram explodidos. Viraram pó ou pedras para exportação. Isso ocorreu inclusive na Lapa da Pedra.
A destruição do patrimônio histórico só é freada pelos governos de Goiás e federal por meio de denúncias da comunidade. Mas elas quase nunca são feitas, até porque poucos conhecem as grutas e sabem do valor que elas guardam. Nem mesmo o secretário de Turismo de Formosa, José Maria Siqueira, que mora na cidade há 18 anos, sabia dos sítios históricos até dias atrás. Conheceu alguns com a equipe do Correio, na quinta-feira. Ficou deslumbrado. "É uma maravilha. Não sabia que havia tanta coisa por aqui."
O secretário pretende criar um roteiro turístico para as grutas. Mas o projeto nem saiu da sua cabeça. Ele se baseia em um inventário feito pelo paulista Wamore Dias Carneiro, 31 anos. Desde que trocou a terra natal, Araras (SP), por Formosa, Wamore tem se dedicado a explorar as cavernas e sítios arqueológicos. "Quando soube que tinha isso a dez quilômetros da cidade, peguei a minha bicicleta e comecei a procurar as grutas", conta.
Vandalismo
Piloto de avião agrícola, Wamore aproveita alguns vôos pelas fazendas de Formosa para fotografar e mapear sítios arqueológicos. A cada descoberta, cresce seu encanto e revolta. Ele não se conforma com o descaso, destruição e falta de infra-estrutura para uma visitação ordenada às grutas. "As pessoas da cidade e os fazendeiros até hoje não se deram conta do valor que tem esses lugares", lamenta.
A maioria dos visitantes não se contenta em ver e aprender com as belezas dos sítios. Muitos deixam seus nomes nas pedras. Alguns riscam as pinturas rupestres. Outros quebram pontas de estalactites para levar como lembrança. "Tem gente que traz maquita para arrancar pedaços de rocha com pinturas rupestres", denuncia Wamore Carneiro.
Preocupado com o futuro dos sítios arqueológicos, o rapaz começou a catar utensílios pré-históricos que encontra nas trilhas. Guarda mais de 120 machadinhos, pontas de lanças e outros instrumentos feitos pelos homens das cavernas. "Se os deixo lá, há o risco de serem moídos pelas patas dos bois, por exemplo", explica.
Nenhuma das 29 grutas tem estrutura para receber os turistas nem mesmo qualquer tipo de proteção. Os fazendeiros não vêem os sítios arqueológicos como fontes de renda. Talvez não saibam que em grutas de Minas Gerais, como Lapinha (Lagoa Santa), Maquiné (Cordisburgo) e Rei do Mato (Sete Lagoas), são cobradas entradas de R$ 5 a R$ 10 por uma visita monitorada e segura. O mesmo é cobrado pelo historiador brasiliense Paulo Bertran para se conhecer o Memorial das Idades do Brasil, montado em sua chácara, no Lago Norte. As pessoas pagam para ver reproduções de pinturas rupestres, como as de Formosa. (RA)

Informações

Secretaria de Turismo de Formosa - 061-632-2673
Guias turísticos - 9693-5550 (Wamore) / 9656-9901 (Wendi)
Memorial das Idades do Brasil - Setor de Mansões do Lago Norte, MI 11, Chácara 258. É necessário o agendamento para visitação. Fone: 9974-0748
Publicações: História da terra e do homem no Planalto Central: Eco-história do Distrito Federal, de Paulo Bertran, Editora Verano, 2000
Projeto Bacia do Paranã, de Alfredo A. C. Mendonça de Souza, Sheila Maria Ferraz e M. Arminda C. Mendonça de Souza, Imprensa da Universidade Federal de Goiás, 1977

CB, 15/08/2004, Cidades, p. 28-29

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.